28 de fevereiro de 2008

O RESPONSÁVEL PELO GOLPE

Agora posso contar. Fui o responsável pelo golpe de 31 de março de 1964. Por isso não me livrei dessa data e a carrego intacta para um futuro ajuste de contas, que jamais virá. Lembro bem. Foi o dia em que briguei com meu pai. Eu estava naquela idade apressada, em que os anos se contavam aos pares, contrariando a lógica, mas forçando o amadurecimento: tinha 15 “para” 16 anos, como se alguém pudesse fazer 17 depois dos 15. Mas o 16, no caso, era para dizer que eu me tornaria adulto logo ali, depois da esquina do tempo. A ansiedade acumulada explodiu numa recusa.

Queriam que fizesse uma compra, mas uma ocupação qualquer me impedia. Talvez porque fosse já tarde da noite e eu restava concentrado em casa, entre ausências de irmãos e irmãs, que tinham ido embora. Eu ficara, tardio na espera da liberdade, que viria numa viagem definitiva à capital nos próximos anos. Escrevia alguma coisa naquela noite, talvez. Ou escutava rádio. Ou simplesmente imaginava olhando para o teto, tela favorita de um cinema particular. Desaforado, fiquei indiferente à ordem que emanara da autoridade paterna, e que tinha, para meu espanto, o mudo consentimento materno.

Eu me enganara. Achava que a mãe ficaria ao meu lado, pois nos entendíamos sobre as manias e pressões a que éramos submetidos. Talvez tenha sido essa defecção, que soava como uma traição, que me deixara desconfortável, para não dizer furioso. Tive de cumprir o encargo, mas antes contrariei a formação católica pautada pela obediência e a civilidade (10 em comportamento todos os anos no colégio) e vigorosamente bati a porta ao sair.

Para compensar a fúria, não encontrei o que pediam. Voltei triunfante e avisei a novidade, pronto para voltar ao quarto. Ao que o seu Ortiz, sacudindo o dedo, ordenou para que eu fosse mais adiante conseguir o que queria. E advertiu para não bater a porta, senão haveria a punição merecida. Foi então que, lavado em desonra, saí silenciosamente e raspei calçada por um bom tempo, até encontrar a encomenda. Não lembro o que era. Talvez um remédio, ou algo assim.

Só sei que, feito o carreto, como se dizia, pude ir para a cama, onde providenciei o delírio de uma terceira guerra mundial. Liderava os vitoriosos, trucidando cada adversário com um esmigalhar de cabeças, apertadas entre os vãos de inúmeras portas. Exausto, aos prantos, dormi, decidindo não comparecer à aula do dia seguinte, o primeiro de abril, dia da Mentira.

Era um ato de covardia, pois aproveitaria a ausência do pai, que viajaria cedo. Seria também uma forma de me vingar, exibindo a revolta que me consumia. Precisava deixar claro que tudo aquilo provocara uma ruptura profunda. Seria o começo da vida adulta? Ou sua impossibilidade eterna, já que me entregara a birras e tratava meus pais como se eu tivesse o direito de jamais crescer?

Peter Pan foi sacudido em cima da hora, por Dona Rosinha, que prometia contar a teimosia do filho para o marido. Achei prudente levantar e sair. Não tomei café, pois isso fazia parte da batalha. No colégio, marista, rigoroso, fui impedido de entrar. Somei a atitude miserável a de outros, já escolados naquele tipo de gazeta escolar. Chegar tarde, perder a primeira aula fazia parte dos hábitos dos preguiçosos. Como eu era um dos primeiros da classe (havia meritocracia naquela época) causou revolta a punição promovida pelo irmão Diretor, cognominado O Roxo (pelas veias saltadas no rosto) de me deixar junto com o resto.

Então nos reunimos no grande campo de futebol que existe na parte inferior da área externa do Colégio. Lá, um dos gazeteiros, suspirando, disse, aliviado: “Enfim rebentou a revolução”. Imaginei a revolução das esquerdas, dos trabalhistas, da redenção, da ressurreição e da carne. Como, onde? gritei, afoito. “Claro que rebentou a revolução”, disse o outro. “Ou vamos ficar nessa situação até quando?” Ele se referia à republica comuno-sindicalista, promovida pelo governo João Goulart, a mais sinistra calúnia histórica do Brasil.

Foi aí que caiu a ficha. Minha desobediência, neurastenia, desaforos contra a autoridade dos pais, a chegada em atraso no colégio, tudo isso tinha provocado uma grande punição. Eu desencadeara o golpe. Achava que seria perdoado. Pelos meus pais, sim. Pela História, jamais. “Vejam o que você fez”, me dizem no tribunal do Destino. “Aluno exemplar hem? Menino bem educado, sei!” Eu tinha rompido os laços com o Bem. E o Mal caíra em cima com todo o seu ímpeto.

Por isso continuo com a vã esperança de reverter esse processo, desconstruir a ditadura e retomar o que perdi naquela data fatídica. Quero me reconciliar com o que poderia ter sido, se fosse cordato e obediente e comprasse aquela joça sem fazer barulho. Nada aconteceria e estaríamos ainda gozando o Brasil soberano, o país inventado exatamente pelos que nos criaram com tanto rigor.

Se isso não for possível, se não der para des-rebentar o golpe, se não houver possibilidade de retomar o footing na praça, o cinemascope das quatro, a glostora e a gomina, a calça de brim-coringa, a missa das oito na catedral, a família sentada nas cadeiras preguiçosas no verão, o rio Uruguai cheio de piavas, as pandorgas com roncador, o campeonato de bulitas, o peão com duas puas, a águida de cinco palos, os cadernos caprichados, as redações elogiadas, as gurias do Horto desfilando em massa no Sete de Setembro, se tudo isso não for possível, então peço desculpas aos tribunais e quero que tudo vá para a puta que os pariu.

Porque dá raiva ser responsável pelo golpe e continuar fazendo desaforo, sem jamais assumir o poder.

RETORNO - Imagem de hoje: o presidente João Goulart, ao lado da esposa Maria Teresa, no famoso comício da Central do Brasil.

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