7 de fevereiro de 2008

A IDEOLOGIA DA SEDUÇÃO


Todo mundo sabe, mas finge esquecer: os Estados Unidos inventaram o exército dos talibans para peitar a invasão soviética no Afeganistão. Mas isso não importa, porque é necessário enterrar a verdade para que triunfe a ideologia do Império. Só agora houve a denúncia de que a CIA inundou a indústria cultural depois do macarthismo, que foi o divisor de águas entre a liberdade e a manipulação de filmes, livros, carreiras inteiras de autores notórios. O projeto vingou e hoje temos um cinema totalmente amarrado aos objetivos e interesses americanos. A intervenção pode ser direta, quando há grana explícita para incensar instituições criminosas como a CIA ou o Pentágono, ou indireta, quando somos seduzidos pela mentira pura e simples.

É o caso de O caçador de pipas, de Marc Foster, que já nos deu bons filmes, como Em busca da Terra do Nunca e Mais estranho do que ficção. Adaptação do mega-sucesso de Khaled Hossein nas livrarias, o filme é sobre a punição de uma cultura, a afegã, que pecou ao viver sob o tacão do autoritarismo e da divisão entre castas, e pagou caro quando os homens maus da URSS invadiram o país, cortaram as árvores, queimaram mesquitas e queriam comer as mulheres que carregavam bebês no colo.

A única redenção é se entregar como um filho da mãe para a civilização americana, pagar seus pecados revisitando o país de origem, destruído, trazer o órfão violentado pelos monstros muçulmanos e resgatar a inocência perdida num parque verdejante, cheio de pipas coloridas. De quebra, o protagonista estéril e hiper-culpado por ter expulso o próprio irmão de casa, ainda peita o ex-general afegão que está grudado a uma cultura morta. Todos precisam se adaptar ao politicamente correto, para usufruir dos lençóis limpos do quarto impecável e de uma carreira brilhante como escritor reconhecido.

O pai do protagonista, que fez o filho na empregada e deixou que seu rebento legítimo expulsasse o outro de casa, é punido com uma doença terminal. O algoz da infância, o que violentou o amigo do protagonista, se transforma num perverso taliban. A noiva pecou no passado, mas o casamento na Califórnia vai redimi-la. O amigo do pai, que compactuava com as corrupções na época áurea de Cabul, também é punido com a doença e a morte. Mas de tudo resta um pouco: a necessidade de recomeçar na América, de abandonar a cultura afegã e de se reconciliar com a religião desvirtuada pela barbárie, desde que ela não o prenda à sua terra de origem, tornada inabitável.

Vamos ver se eu entendi: os americanos tocam o puteiro no Afeganistão junto com os russos, mas são lavados de toda a culpa colocando os pecados do mundo nos ombros dos cidadãos retirados de suas vidas e de seu país. Como acontece essa mágica? Dentro do coração e da mente do autor, que é afegão e mora na América. Não é mais um autor afegão, mas americano, mas isso não importa. O que fica é o exótico (e exímio) contador de histórias de terras distantes fazer uma autocrítica de sua cultura e se render às maravilhas do Império.

Tudo isso é mostrado num filme quase impecável na narrativa, com bons atores, bons diálogos, e momentos de grande tensão (só uma cena ridícula, o do resgate do garoto no ninho dos talibans, hilária e inverossímel). É a sedução da ideologia. Você se emociona, você sai de alma lavada. Que coisa esses afegãos, como são culpados, mas felizmente tudo volta ao normal na América. Lá está de novo a luta de pipas, representação inocente dos conflitos. Cerol na cultura alheia é refresco.

É moda atribuir à cidadania a responsabilidade que cabe ao poder. Aqui no Brasil, a ditadura põe a culpa em você por ter eleito essas coisas que ela nos impõe e nos governam. O Afeganistão foi destruído pela disputa do butim mundial por parte dos países imperiais e não porque um garoto sacaneou seu irmão ilegítimo. Pecado original de ex-cidadãos, criaturas sem pátria. É o que nos tornaremos se continuarem a sucatear nossa soberania. É preciso ficar atento: os brasileiros, pela quantidade, não cabem na Califórnia.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de "O caçador de pipas".

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