Nei Duclós (*)
Implicar é uma vocação. A própria implicância gosta de substituir esse verbo pelo agudo inticar. Era proibido inticar com os irmãos, colegas, professores e vizinhos, exatamente as vítimas prediletas da nossa primeira infância. Sentávamos, meu irmão e eu, de cabelo penteadinho, engomado, vestindo calça curta e camisa jersey, olhando inocentemente para os que passavam, no portal da nossa casa de esquina. O espetáculo então começava. As moças que moravam ali perto elogiavam a dupla de anjinhos. Replicávamos com um palavrão caprichado, bem escandido, para que não houvesse dúvidas. Continuávamos com nosso olhar bonzinho, de banho recém tomado.
As gurias sacavam a disposição dos garotos e resolviam implicar conosco. Repetiam a gracinha e saíam dando risotas ao ouvir o nome feio, que naquela época era proibido e causava espécie. Como crianças tão pequenas, tão cordatas, tão de boa índole, podiam dizer aquilo? Mais tarde, éramos nós o alvo dos inticantes, normalmente caras mais velhos, pois naquele tempo era comum gente de barba na cara chegar tarde à escola. Colocavam os bichos junto com os menores, para desasnar, como dizia o Monteiro Lobato. E os pivetes tinham que aturá-los.
Como eu mantinha uma expressão inócua, alheia ao que costumava dizer, e o que eu dizia era sempre assim meio pesado, acabava sendo jurado na saída. Meu irmão “tirava a cara” por mim, isto é, brigava em meu lugar. Mas em casa não tinha moleza. O exercício era de mão dupla e nos revezávamos no aprimoramento daquela arte. Eu era refém de suas implicâncias porque só ele conseguia economizar a mesada para comprar revistas novas. Não gostava de emprestar o gibi ainda com cheiro de tinta, e só cedia depois de muitas recomendações, entre elas a de jamais ler com muita força para não estragar o brilho da novidade. Claro que o mimo, só para inticar, voltava para o dono com os cantos das páginas molhados pelo uso excessivo da saliva.
O gosto pelo ofício, descobri depois, se estendia à maioria dos habitantes do país. Notei como aquele hábito infantil ganhava grande ressonância popular, mas com um verniz bem mais perverso. Sabemos do que se trata. É quando os carros se dividem entre os que te empatam na frente e os que te pressionam por trás. Ou quando alguém vai desocupar uma vaga e, ao notar que estamos na bica para ocupar o mesmo lugar, permanece interminavelmente até desistirmos. Há os que esperam o sinal amarelo para vencer o cruzamento e deixar quem vem depois travado no vermelho.
Se um desavisado (o que perdeu a noção do perigo) emitir uma opinião, imediatamente dezenas de vozes se levantam para sustentar a tese de que a coisa “não é bem por aí”. O conceito de “bem por aí” é ambíguo e mutante, serve maravilhosamente para uma população de implicantes. O expediente adotado é sacudir o dedinho diante de qualquer declaração do interlocutor.
Um amigo pediu para o bruto que divide a mesma rua não usar a serra elétrica às dez da noite do sábado. O implicante replicou: “Ok, posso fazer isso amanhã na hora do almoço, o que você prefere?” Isso é o Brasil! diz em uníssono a população mais implicante do mundo. Tudo o que atrapalha, enche a paciência, é atribuído à essência do país. Não tem saída. Ou você vai implicar e dizer que tem?
RETORNO - 1. Imagem de hoje: mais uma fotaça da peregrina e grande fotógrafa Irene Schmidt, desta vez nos Lençóis Maranhenses. 2. (*) Crônica publicada nesta terça feira, dia 27 de novembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. Com direito a chamada de capa do jornal: "Nei Duclós - Brasileiro é o povo mais implicante".
Implicar é uma vocação. A própria implicância gosta de substituir esse verbo pelo agudo inticar. Era proibido inticar com os irmãos, colegas, professores e vizinhos, exatamente as vítimas prediletas da nossa primeira infância. Sentávamos, meu irmão e eu, de cabelo penteadinho, engomado, vestindo calça curta e camisa jersey, olhando inocentemente para os que passavam, no portal da nossa casa de esquina. O espetáculo então começava. As moças que moravam ali perto elogiavam a dupla de anjinhos. Replicávamos com um palavrão caprichado, bem escandido, para que não houvesse dúvidas. Continuávamos com nosso olhar bonzinho, de banho recém tomado.
As gurias sacavam a disposição dos garotos e resolviam implicar conosco. Repetiam a gracinha e saíam dando risotas ao ouvir o nome feio, que naquela época era proibido e causava espécie. Como crianças tão pequenas, tão cordatas, tão de boa índole, podiam dizer aquilo? Mais tarde, éramos nós o alvo dos inticantes, normalmente caras mais velhos, pois naquele tempo era comum gente de barba na cara chegar tarde à escola. Colocavam os bichos junto com os menores, para desasnar, como dizia o Monteiro Lobato. E os pivetes tinham que aturá-los.
Como eu mantinha uma expressão inócua, alheia ao que costumava dizer, e o que eu dizia era sempre assim meio pesado, acabava sendo jurado na saída. Meu irmão “tirava a cara” por mim, isto é, brigava em meu lugar. Mas em casa não tinha moleza. O exercício era de mão dupla e nos revezávamos no aprimoramento daquela arte. Eu era refém de suas implicâncias porque só ele conseguia economizar a mesada para comprar revistas novas. Não gostava de emprestar o gibi ainda com cheiro de tinta, e só cedia depois de muitas recomendações, entre elas a de jamais ler com muita força para não estragar o brilho da novidade. Claro que o mimo, só para inticar, voltava para o dono com os cantos das páginas molhados pelo uso excessivo da saliva.
O gosto pelo ofício, descobri depois, se estendia à maioria dos habitantes do país. Notei como aquele hábito infantil ganhava grande ressonância popular, mas com um verniz bem mais perverso. Sabemos do que se trata. É quando os carros se dividem entre os que te empatam na frente e os que te pressionam por trás. Ou quando alguém vai desocupar uma vaga e, ao notar que estamos na bica para ocupar o mesmo lugar, permanece interminavelmente até desistirmos. Há os que esperam o sinal amarelo para vencer o cruzamento e deixar quem vem depois travado no vermelho.
Se um desavisado (o que perdeu a noção do perigo) emitir uma opinião, imediatamente dezenas de vozes se levantam para sustentar a tese de que a coisa “não é bem por aí”. O conceito de “bem por aí” é ambíguo e mutante, serve maravilhosamente para uma população de implicantes. O expediente adotado é sacudir o dedinho diante de qualquer declaração do interlocutor.
Um amigo pediu para o bruto que divide a mesma rua não usar a serra elétrica às dez da noite do sábado. O implicante replicou: “Ok, posso fazer isso amanhã na hora do almoço, o que você prefere?” Isso é o Brasil! diz em uníssono a população mais implicante do mundo. Tudo o que atrapalha, enche a paciência, é atribuído à essência do país. Não tem saída. Ou você vai implicar e dizer que tem?
RETORNO - 1. Imagem de hoje: mais uma fotaça da peregrina e grande fotógrafa Irene Schmidt, desta vez nos Lençóis Maranhenses. 2. (*) Crônica publicada nesta terça feira, dia 27 de novembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. Com direito a chamada de capa do jornal: "Nei Duclós - Brasileiro é o povo mais implicante".
Nenhum comentário:
Postar um comentário