24 de novembro de 2007

O ESCRITOR VAI À GUERRA


Mexicano David Toscana articula a fracassada tentativa de reconquista do Texas por um exército improvável para buscar a essência da palavra

Nei Duclós (*)

O novo romance do mexicano David Toscana, O Exército Iluminado, o terceiro lançado no Brasil pela Casa da Palavra, é um drama enjaulado na comédia. Personagens infantis que fazem o papel de adultos, o avesso da série Chavez, revelam que o fracasso do México está sintonizado com a maturidade decepada pela violência.

O país infantilizado por sucessivas derrotas é representado pelo exército improvável de um velho comandando cinco crianças deficientes mentais, que decidem reconquistar o Texas, perdido há 150 anos para os Estados Unidos. Eles partem montados numa carroça puxada por uma mula, numa declaração de guerra do escritor à História como fonte de ressentimentos, à identidade nacional à mercê da exclusão, à realidade a serviço da morte, à vida sob a tirania da falta de imaginação.

Como o personagem principal do filme de Dalton Trumbo, Johnny Vai à Guerra (1971), o autor não dispõe de braços ou pernas para fazer o inventário da sua luta, a não ser batendo com a cabeça na cama em código morse, quando seu desespero emite um SOS. É o que Toscana faz, ao conduzir seu grupo de protagonistas patéticos para mais uma derrota. O líder, um Quixote envenenado por leituras patrióticas, não tem condições físicas para vencer a maratona que teima em participar, apesar de não estar registrado nela. Os quatro meninos e uma menina, seduzidos pelo general de araque, saem de suas rotinas canibalizadas pelo sistema e povoam a narrativa com uma ilógica sucessão de cenas ilusórias.

Toscana, preso na cama da escrita como um sobrevivente do holocausto, oculta o quanto pode o narrador que denuncia a "realidade" da tragédia. A maior parte do tempo faz parte dela, não colocando fronteiras entre diálogos e descrições, entre épocas, geografias, pensamentos e ações. Tudo se mistura de maneira absolutamente clara, numa demonstração de força do seu domínio do ofício. Ele sabe, como poucos, contar uma história pelo seu avesso, ou seja, sem ceder às definições de montagens estabelecidas pela tradição ou vanguarda. Cria uma tessitura particular e original, opondo-se a qualquer camisa-de-força, inclusive a mais recorrente delas, a de enquadrá-lo como um anti-García Márquez.

Agora virou moda falar mal do "realismo mágico". É costume esquecer que esse é um rótulo que não faz justiça à grande quantidade de obras-primas surgidas a partir dos anos 1960, quando um punhado de escritores perto ou dentro do gênio rompeu as comportas da linha evolutiva da literatura do Ocidente. A folclorização nada tem a ver com o conteúdo e muito menos, por oposição, com os livros e autores que agora estão chegando.

Há uma carga excessiva de conceitos, como niilismo ou puro entretenimento literário, como se o talento estivesse a serviço do mundo como mercadoria ou fizesse parte da falsa natureza atribuída aos valores do mercado. David Toscana não se presta ao enquadramento perverso das teorias que procuram enterrar a criação literária num entulho de charlatanices. Ele trata do seu mètier, a literatura, e segue à risca a máxima de que todo romance (pelo menos, os que contam) é sobre literatura.

Como estamos cercados pelas mais diversas ficções - econômica, política, publicitária, jornalística, corporativa, religiosa, turística - , Toscana despe a linguagem de seus mantos virtuais e busca a essência do que a palavra pode render fora desse circo de horrores. É uma saída para os contemporâneos, que, segundo suas palavras, "estão doentes de realidade". Isso não significa alienação, como chegaram a sugerir. Estamos doentes das falsidades sob a capa do real e a única maneira de quebrar esse manto é por meio da literatura.

Um romance é, assim, o último reduto do humano, pois encontra o épico na escassez, sem mascarar as nossas limitações. Em seus livros, Toscana encontra sentido em vidas datadas, inclusive rompendo com a ilusão do falso heroísmo, e apostando na força contida em nossa pequenez. Faz isso sem nenhuma grandiloqüência, mas com a grandeza poética necessária que as palavras inventam para nos redimir. Não há final feliz em seus livros, porque isso seria trair a própria necessidade de escrever. Ao ir à guerra, o escritor sabe, como os garotos que assumiram a batalha perdida, que sua decisão não tem volta.

O escritor relata a dor de perder a guerra, mas não sucumbe à sua principal tentação: a de imortalizar sua saga à custa do sangue alheio. Ele contamina a narrativa forçando, por exemplo, o sacrifício do gordo Comodoro, o escudeiro insubordinado, absolutamente contrário a tudo o que Sancho Pança representa. Comodoro não procura trazer o Quixote Juan Matus (o general maratonista) à mediocridade da vida diária, antes o incentiva e até o supera. Aspirava à glória, mas teve um enterro de mendigo.

O rescaldo do drama não é o riso gerado no ventre do deboche. Nem a celebração das perdas. Ou a entronização das mensagens significativas. É apenas o livro, o que temos nas mãos, idêntico ao livro imaginário de O Último Leitor, também lançado no Brasil, e que ao fim da leitura se revela real. O exemplar que temos nas mãos é a parte que nos cabe neste latifúndio. Não é pouco, já que estávamos à procura não de um passatempo, mas de uma forma de ficarmos habitados neste deserto.

O Último Leitor é o impressionante relato do bibliotecário sem leitores, perdido numa vila cercada pela seca, e que se vê envolvido na morte de uma menina encontrada pelo seu filho no fundo do único poço que ainda mantém um pouco de água. É o que somos, perdidos num mundo ágrafo, obrigados a decifrar um enigma. Não que Toscana detenha a chave, pois a esse papel ele não se presta. Mas ele nos traz um presente, o de acreditar que é possível romper com o círculo de ferro que nos mantém cativos, já que a palavra liberta quando ela é ditada pela coragem.


RETORNO - (*) Resenha publicada neste sábado, 24 de novembro de 2007, no caderno Cultura do Diário Catarinense.

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