29 de novembro de 2007

MANDATO ETERNO


Estão fazendo tudo o que acusaram em Getúlio Vargas: o de ser demagogo, enganando o povo; o de ser censor, amordaçando a imprensa, o de ser ditador, torcendo tudo a seu favor. Vemos a demagogia campeando na mídia comprada pelo marketing político (fachada de lavagem de dinheiro público, segundo acusações) e pelo merchandising, que é a publicidade perversa, embutida no conteúdo de programas culturais e noticiosos. Vemos a censura com o envolvimento societário dos políticos em veículos de comunicação (um terço do Senado, segundo levantamento recente), a indústria dos dossiês, a superficialidade das coberturas, a manipulação dos conteúdos e o esvaziamento das redações, com honrosas exceções.

E vemos a ditadura se manifestar de todas as maneiras: no sistema político engessado, na chuva de medidas provisórias, na política econômica que expropria o povo, na entrega da soberania via política de privatizações (agora privatizaram a o que resta da selva), na reeleição de FHC e agora na ameaça do terceiro mandato de Lula, que não passa de golpe de estado.

Lula quer se eternizar no poder. O político uruguaianense Brasil Carús colocou o dedo na ferida, na sua coluna no Portaluruguaiana: “O presidente Lula comparou a tentativa de Hugo Chávez de permanecer no poder, indefinidamente, com a permanência à frente de governos de figuras como o alemão Helmut Khol (de 1982 a 1998), a inglesa Margareth Thatcher (1979 a 1990), o espanhol Felipe Gonzalez (1982 a 1996) e o francês François Mitterand (presidente por 14 anos, com dois mandatos de sete anos). Em todos os casos citados por Lula, quem ficou no poder por tanto tempo foi o partido político, pela escolha do eleitorado, e não o político, que somente permaneceu no cargo de primeiro-ministro enquanto seu partido o reconhecia como líder. E não foi preciso mudar a Constituição para isso.”

Continua Carús: “A diferença entre parlamentarismo e presidencialismo seria fácil de explicar com a hipótese brasileira. Se fôssemos um governo parlamentarista, Lula teria caído no primeiro mandato, quando seu governo se envolveu com o escândalo do mensalão. Como somos presidencialistas, regime onde o Executivo tem muita força, Lula teve tempo de recuperar sua imagem e se reeleger, graças à popularidade pessoal. E agora começa a preparar a opinião pública para o seu terceiro mandato”.

Lula não quer outra vida. Viaja num avião milionário, leva a vida de um milionário, tem a pose de milionário, fazendo pouco do que os outros dizem e achando que leva todo mundo na conversa. Sua esperteza faz com que acreditem na pretensa perseguição por parte da imprensa, quando acontece exatamente o contrário, já que o governo federal é o maior anunciante da comunicação. Como contrariar o cliente?

Vejam o caso do IDH, Índice de Desenvolvimento Humano. O Brasil caiu no ranking, mas foi anunciado que melhoramos, só que as outras nações subiram. Ora, um ranking é, basiacamente, comparação. Se as outras nações subiram e nós descemos, algo estamos fazendo de errado. Não melhoramos, mas foi anunciado exatamente o contrário.

A toda hora, é difundida a mentira de que a renda está sendo melhor distribuída, quando existe mesmo é um sucateamento da classe média e uma ascensão social de uma parte da população da classe C, que continua lá, na classe C, mas com alguma capacidade a mais de consumo. Enquanto isso, todo mundo é refém da violência, das ruínas urbanas, da falta de paz na cidade e no campo, na falta de infra-estrutura. Não falam mais em desemprego e dívida externa. A propaganda enterrou esses dois assuntos.

Para que um terceiro mandato? Para manter o nível de vida, para não descer na escala social, para não voltar à classe média, o que eu duvido, depois de ficar com as duas patas no cofre por tanto tempo. Para manter o nível de vida também dos parceiros, da canalha denunciada pela Justiça de maneira tão explícita e veemente. Para isso o terceiro mandato. Para se perpetuar no poder e impedir eternamente que o Brasil Soberano reencontre seu destino.

Em 1923, estourou uma guerra no Rio Grande do Sul porque Borges de Medeiros, que era o presidente do Estado, queria um quinto mandato. A guerra durou oito meses e ensanguentou o pampa.

RETORNO - Imagem de hoje: crepúsculo no rio Uruguai, foto de Anderson Petroceli.

28 de novembro de 2007

O CONCEITO DE NORMAL


Há dias quero postar essa foto maravilhosa (intitulada "Posto Seis") de autoria de Irene Schmidt. Incrível: é uma foto recente. Ela enxerga o Brasil no caos atual nesta imagem que une tradição e modernidade. A luz, a composição da paisagem, a presença humana convivendo com o mar, o barco na areia, a cidade ao fundo, tudo é magia. Mas, infelizmente, estamos vivendo época de grande anormalidade.

Anormal era uma palavra recorrente nos anos 50. Serve para definir o país hoje. Pois só mesmo um sistema de anormais para permitir que menores de idade compartilhem o cárcere com inúmeros marmanjos. Só mesmo um governo de um país anormal para gastar meio bilhão de reais para manter a tunga da CPMF. Só mesmo um país anormal para mentir que a dívida externa acabou, que agora só temos a dívida interna, que soma módicos 1 trilhão de reais. Só mesmo um país anormal pra privatizar o que restou da selva.

Só mesmo um país anormal para achar que estamos crescendo e as pessoas estão comprando mais e que nosso IDH - Índice de Desenvolvimento Humano aumentou, apesar de descer no ranking (se os outros países aumentaram ainda mais, algo está errado conosco). Só mesmo um país anormal para transformar a anormalidade em coisa corriqueira, calando assim a boca da insurgência, pois o que adianta remar contra essa avalanche de barbaridades, se tudo é considerado normal?

Ontem, no Jornal Nacional, enfim citaram o nome de Oswaldo Aranha, isso porque Israel está homenageando o grande estadista que viabilizou a criação do estado israelense (o que é altamente polêmico, mas o que vale é a presença internacional de um brasileiro num momento decisivo, sinal de que tínhamos importância, a mesma importância que foi para o brejo depois de 64). Falaram apenas “o brasileiro Oswaldo Aranha”, que foi secretário-geral da ONU em 1947. Um diplomata que deixou uma herança de soberania que acabou desaguando em Sergio Vieira de Mello, isso porque Sergio precisou sair do país para seguir sua carreira brilhante. Uma herança que foi esbagaçada, claro.

Digam: Oswaldo Aranha, ex-ministro da Justiça do governo Vargas, que fez o discurso fúnebre diante do túmulo de Getúlio (enviado na íntegra recentemente para mim por Renan Pinheiro.) Mas isso não. O Brasil soberano precisa ficar oculto e quando ele mostra a cara deve-se maquiá-lo até ficar parecendo uma coisa qualquer. No Comunique-se, site de jornalistas, debato sobre 1964. É um tema “fora de moda”. Há consenso de que derrotamos a tirania e vivemos numa grande democracia.

Ao mesmo tempo, o site divulga que um terço do Senado está envolvido nos negócios da comunicação e que uma boa porção do Conselho Curador da TV pública de Lula tem nomes que, apontei, fazem parte do regime de 64, como Delfim Neto (sempre ele), a filha de Andrade Gutierrez, o dono da Marcopolo, o ex-secretário de Planejamento do governo Maluf, o Claudio Lembo, e assim por diante.

Quer dizer, é normal achar que estamos numa democracia e anormal de que vivemos numa ditadura. Mas se a atual democracia quiser um monumento, basta olhar em torno. Vejam o Enjôo Soares. Deitou e rolou com apelações sobre Angola e agora invoca Darci Ribeiro (claro, onde mais ele vai conseguir exemplos honrados, na não ser no Brasil soberano?), entrevistado no seu programa, para provar que ele, Enjôo, sempre foi um cara democrático, legal, politicamente correto. É nada.

Na Espanha, um enorme sistema de usinas movidas a energia solar aparece como solução limpa, enquanto aqui esfregamos as mãos porque temos um bostilhão de gás e óleo sujo bem abaixo do nosso maravilhoso mar. Vão emporcalhar tudo, sujar o litoral e ainda terminar de encher de cana-de-açúcar e soja todas as terras aráveis, além de arrancarem do chão árvore por árvore. Normal, normal. Viramos magnatas de petróleo no momento em que o petróleo se transforma num pesadelo.

Enquanto isso, o Iraque continua invadido, Evo Imorales cuida de ensangüentar a Bolívia e Côco-Bicho Chavez, vestido de vermelho-sangue (nada a ver com o marxismo, que de marxismo ele não entende nada) promete colocar fogo no continente.

27 de novembro de 2007

OS IMPLICANTES


Nei Duclós (*)

Implicar é uma vocação. A própria implicância gosta de substituir esse verbo pelo agudo inticar. Era proibido inticar com os irmãos, colegas, professores e vizinhos, exatamente as vítimas prediletas da nossa primeira infância. Sentávamos, meu irmão e eu, de cabelo penteadinho, engomado, vestindo calça curta e camisa jersey, olhando inocentemente para os que passavam, no portal da nossa casa de esquina. O espetáculo então começava. As moças que moravam ali perto elogiavam a dupla de anjinhos. Replicávamos com um palavrão caprichado, bem escandido, para que não houvesse dúvidas. Continuávamos com nosso olhar bonzinho, de banho recém tomado.

As gurias sacavam a disposição dos garotos e resolviam implicar conosco. Repetiam a gracinha e saíam dando risotas ao ouvir o nome feio, que naquela época era proibido e causava espécie. Como crianças tão pequenas, tão cordatas, tão de boa índole, podiam dizer aquilo? Mais tarde, éramos nós o alvo dos inticantes, normalmente caras mais velhos, pois naquele tempo era comum gente de barba na cara chegar tarde à escola. Colocavam os bichos junto com os menores, para desasnar, como dizia o Monteiro Lobato. E os pivetes tinham que aturá-los.

Como eu mantinha uma expressão inócua, alheia ao que costumava dizer, e o que eu dizia era sempre assim meio pesado, acabava sendo jurado na saída. Meu irmão “tirava a cara” por mim, isto é, brigava em meu lugar. Mas em casa não tinha moleza. O exercício era de mão dupla e nos revezávamos no aprimoramento daquela arte. Eu era refém de suas implicâncias porque só ele conseguia economizar a mesada para comprar revistas novas. Não gostava de emprestar o gibi ainda com cheiro de tinta, e só cedia depois de muitas recomendações, entre elas a de jamais ler com muita força para não estragar o brilho da novidade. Claro que o mimo, só para inticar, voltava para o dono com os cantos das páginas molhados pelo uso excessivo da saliva.

O gosto pelo ofício, descobri depois, se estendia à maioria dos habitantes do país. Notei como aquele hábito infantil ganhava grande ressonância popular, mas com um verniz bem mais perverso. Sabemos do que se trata. É quando os carros se dividem entre os que te empatam na frente e os que te pressionam por trás. Ou quando alguém vai desocupar uma vaga e, ao notar que estamos na bica para ocupar o mesmo lugar, permanece interminavelmente até desistirmos. Há os que esperam o sinal amarelo para vencer o cruzamento e deixar quem vem depois travado no vermelho.

Se um desavisado (o que perdeu a noção do perigo) emitir uma opinião, imediatamente dezenas de vozes se levantam para sustentar a tese de que a coisa “não é bem por aí”. O conceito de “bem por aí” é ambíguo e mutante, serve maravilhosamente para uma população de implicantes. O expediente adotado é sacudir o dedinho diante de qualquer declaração do interlocutor.

Um amigo pediu para o bruto que divide a mesma rua não usar a serra elétrica às dez da noite do sábado. O implicante replicou: “Ok, posso fazer isso amanhã na hora do almoço, o que você prefere?” Isso é o Brasil! diz em uníssono a população mais implicante do mundo. Tudo o que atrapalha, enche a paciência, é atribuído à essência do país. Não tem saída. Ou você vai implicar e dizer que tem?

RETORNO - 1. Imagem de hoje: mais uma fotaça da peregrina e grande fotógrafa Irene Schmidt, desta vez nos Lençóis Maranhenses. 2. (*) Crônica publicada nesta terça feira, dia 27 de novembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. Com direito a chamada de capa do jornal: "Nei Duclós - Brasileiro é o povo mais implicante".

26 de novembro de 2007

UMA CHAMA NO CORAÇÃO


Reproduzo aqui meu prefácio para o livro de Moacir Bastiani, uruguaianense e nosso amigo, conterrâneo e colega dos tempos do colégio Santana, sobre a peregrinação que fez em 2004 para comemorar o centenário dessa magnífica instituição marista na fronteira. No ano seguinte, em 2005, Bastiani homenageou Leonel Brizola, que tinha conseguido para ele uma bolsa de estudos que permitiram que continuasse com sua formação, indo a pé até São Borja. Queria fazer uma outra, até Buenos Aires, para homenagear Eva Perón.

Foi um engenheiro exemplar e aposentou-se, quando então começou a se dedicar a grandes caminhadas. Um ataque cardíaco levou Moacir Bastiani recentemente do nosso convívio. Lembro do entusiasmo com que me falou do seu livro, quando veio me visitar aqui em Florianópolis com os originais para eu ler antes de publicar, manifestando assim sua consideração por mim, que há tanto tempo não o via.

Coloco abaixo o prefácio, acompanhado por esta foto magnífica de Irene Schmidt, tremenda fotógrafa gaúcha (tinha dito que ela era do Rio de Janeiro, mas me enganei, nasceu no Rio Grande do Sul) que nos deslumbra com seu talento e seu olhar pleno de magia.

Este é o livro pessoal de uma Peregrinação coletiva. Ao assumir a tarefa de percorrer a pé 640 quilômetros entre o colégio dos seus filhos, o Rosário de Porto Alegre, e o colégio da sua vida, o Santana de Uruguaiana, Moacir Bastiani levou consigo não só sua geração, mas toda uma população identificada com os mesmos ideais. Trata-se de um relato direto, que pela sua objetividade nos surpreende com a carga de emoção que transmite. Esse é o recurso dos textos escritos com sinceridade: o de chegar ao ponto sem ter outra intenção do que deixar um testemunho.

A palavra do autor anda pelo território da Pátria sem a cerimônia dos eventos cívicos, mas carregado da essência que gera as comemorações legítimas. A História se faz ao andar e dar sua própria versão é a tarefa obrigatória de quem sabe que viver é preciso, mas navegar no trabalho de resgatar cada passo da vivência define o perfil da vida verdadeira que é legada para os semelhantes. Por ser profundamente identificado com a religião católica, Moacir Bastiani não cai na armadilha do fundamentalismo. Seu relato é ecumênico e a todos congrega, transmitindo não apenas emoção, mas também revolta quando necessária, colocando não apenas sua trajetória, mas a extensa teia que o une aos seus contemporâneos, familiares, colegas, professores, amigos.

Assim se constrói a cidadania: o agradecido aluno que volta cinqüenta anos depois para homenagear o colégio que o formou é a marca de uma vontade única, que conforta pela sua mensagem, que envolve pela saga, e que nos conquista pela aventura bem sucedida, símbolo de uma vida cheia de vitórias. Não há como escapar desse sopro de luz que vem da caminhada de um brasileiro em direção à Memória. Não há como não se deixar levar pelos pés que sabem o tamanho da empreitada, mas não desistem porque receberam, muito cedo, as lições fundamentais que fazem de uma criatura um ser consciente da sua própria imortalidade.

24 de novembro de 2007

O ESCRITOR VAI À GUERRA


Mexicano David Toscana articula a fracassada tentativa de reconquista do Texas por um exército improvável para buscar a essência da palavra

Nei Duclós (*)

O novo romance do mexicano David Toscana, O Exército Iluminado, o terceiro lançado no Brasil pela Casa da Palavra, é um drama enjaulado na comédia. Personagens infantis que fazem o papel de adultos, o avesso da série Chavez, revelam que o fracasso do México está sintonizado com a maturidade decepada pela violência.

O país infantilizado por sucessivas derrotas é representado pelo exército improvável de um velho comandando cinco crianças deficientes mentais, que decidem reconquistar o Texas, perdido há 150 anos para os Estados Unidos. Eles partem montados numa carroça puxada por uma mula, numa declaração de guerra do escritor à História como fonte de ressentimentos, à identidade nacional à mercê da exclusão, à realidade a serviço da morte, à vida sob a tirania da falta de imaginação.

Como o personagem principal do filme de Dalton Trumbo, Johnny Vai à Guerra (1971), o autor não dispõe de braços ou pernas para fazer o inventário da sua luta, a não ser batendo com a cabeça na cama em código morse, quando seu desespero emite um SOS. É o que Toscana faz, ao conduzir seu grupo de protagonistas patéticos para mais uma derrota. O líder, um Quixote envenenado por leituras patrióticas, não tem condições físicas para vencer a maratona que teima em participar, apesar de não estar registrado nela. Os quatro meninos e uma menina, seduzidos pelo general de araque, saem de suas rotinas canibalizadas pelo sistema e povoam a narrativa com uma ilógica sucessão de cenas ilusórias.

Toscana, preso na cama da escrita como um sobrevivente do holocausto, oculta o quanto pode o narrador que denuncia a "realidade" da tragédia. A maior parte do tempo faz parte dela, não colocando fronteiras entre diálogos e descrições, entre épocas, geografias, pensamentos e ações. Tudo se mistura de maneira absolutamente clara, numa demonstração de força do seu domínio do ofício. Ele sabe, como poucos, contar uma história pelo seu avesso, ou seja, sem ceder às definições de montagens estabelecidas pela tradição ou vanguarda. Cria uma tessitura particular e original, opondo-se a qualquer camisa-de-força, inclusive a mais recorrente delas, a de enquadrá-lo como um anti-García Márquez.

Agora virou moda falar mal do "realismo mágico". É costume esquecer que esse é um rótulo que não faz justiça à grande quantidade de obras-primas surgidas a partir dos anos 1960, quando um punhado de escritores perto ou dentro do gênio rompeu as comportas da linha evolutiva da literatura do Ocidente. A folclorização nada tem a ver com o conteúdo e muito menos, por oposição, com os livros e autores que agora estão chegando.

Há uma carga excessiva de conceitos, como niilismo ou puro entretenimento literário, como se o talento estivesse a serviço do mundo como mercadoria ou fizesse parte da falsa natureza atribuída aos valores do mercado. David Toscana não se presta ao enquadramento perverso das teorias que procuram enterrar a criação literária num entulho de charlatanices. Ele trata do seu mètier, a literatura, e segue à risca a máxima de que todo romance (pelo menos, os que contam) é sobre literatura.

Como estamos cercados pelas mais diversas ficções - econômica, política, publicitária, jornalística, corporativa, religiosa, turística - , Toscana despe a linguagem de seus mantos virtuais e busca a essência do que a palavra pode render fora desse circo de horrores. É uma saída para os contemporâneos, que, segundo suas palavras, "estão doentes de realidade". Isso não significa alienação, como chegaram a sugerir. Estamos doentes das falsidades sob a capa do real e a única maneira de quebrar esse manto é por meio da literatura.

Um romance é, assim, o último reduto do humano, pois encontra o épico na escassez, sem mascarar as nossas limitações. Em seus livros, Toscana encontra sentido em vidas datadas, inclusive rompendo com a ilusão do falso heroísmo, e apostando na força contida em nossa pequenez. Faz isso sem nenhuma grandiloqüência, mas com a grandeza poética necessária que as palavras inventam para nos redimir. Não há final feliz em seus livros, porque isso seria trair a própria necessidade de escrever. Ao ir à guerra, o escritor sabe, como os garotos que assumiram a batalha perdida, que sua decisão não tem volta.

O escritor relata a dor de perder a guerra, mas não sucumbe à sua principal tentação: a de imortalizar sua saga à custa do sangue alheio. Ele contamina a narrativa forçando, por exemplo, o sacrifício do gordo Comodoro, o escudeiro insubordinado, absolutamente contrário a tudo o que Sancho Pança representa. Comodoro não procura trazer o Quixote Juan Matus (o general maratonista) à mediocridade da vida diária, antes o incentiva e até o supera. Aspirava à glória, mas teve um enterro de mendigo.

O rescaldo do drama não é o riso gerado no ventre do deboche. Nem a celebração das perdas. Ou a entronização das mensagens significativas. É apenas o livro, o que temos nas mãos, idêntico ao livro imaginário de O Último Leitor, também lançado no Brasil, e que ao fim da leitura se revela real. O exemplar que temos nas mãos é a parte que nos cabe neste latifúndio. Não é pouco, já que estávamos à procura não de um passatempo, mas de uma forma de ficarmos habitados neste deserto.

O Último Leitor é o impressionante relato do bibliotecário sem leitores, perdido numa vila cercada pela seca, e que se vê envolvido na morte de uma menina encontrada pelo seu filho no fundo do único poço que ainda mantém um pouco de água. É o que somos, perdidos num mundo ágrafo, obrigados a decifrar um enigma. Não que Toscana detenha a chave, pois a esse papel ele não se presta. Mas ele nos traz um presente, o de acreditar que é possível romper com o círculo de ferro que nos mantém cativos, já que a palavra liberta quando ela é ditada pela coragem.


RETORNO - (*) Resenha publicada neste sábado, 24 de novembro de 2007, no caderno Cultura do Diário Catarinense.

23 de novembro de 2007

ONDE MORA O PERIGO

Os jornais se ocupam dos atores pelados na novela das nove, que está meio por baixo do Ibope; ou do tucanoduto, notícia requentada que volta à tona para nos lembrar para onde vai o dinheiro do país. Mas o que pega é saber o que veio fazer no Brasil o George Soros, o megainvestidor incensado pela mídia como o novo Rockfeller, o cara que quer deixar como legado suas idéias e não a bufunfa que arrecadou em décadas de imperialismo econômico.

A Revista da Indústria, editada pelos jornalistas da Fiesp, entrega: ele veio especular com terra barata, especialmente no Mato Grosso, onde os especuladores internacionais fazem a festa comprando terra a preço um quinto inferior em relação ao meio oeste americano. Será como foi feito no Texas: eles compram, depois anexam como mais um estado americano. Paranóia? Não, fatos. Estamos nos lixando para a Amazônia e o cerrado. O Brasil quer sumir do mapa, tem complexo de culpa atávico.

Na mesma Revista da Indústria, a chamada de capa é: Corrupção – O Brasil tem cura. Deveria ser o contrário: Brasil – Corrupção tem cura. Pois a doença é a corrupção, não o Brasil. Mas fazemos parte de um país que precisa ser “curado” da pior das doenças, a de ter nascido. Curar o Brasil significar varrê-lo do mundo. Culpar o Brasil de nossos deslizes é a forma mais cômoda de se transformar em inocente.

Há grande celebração pelo fato de a Alemanha ter descoberto uma parte da Pan Germânia aqui em Santa Catarina. Acredito que não sejam os alemães os interessados em não enxergar o Brasil, isso eles devem ver com olhos bem abertos, pois só nós para não notar o que está explícito para os estrangeiros.

O perigo mora dentro de nós: tem muito brasileiro que se acha alemão, só pelo fato de os germânicos terem chegado por estas bandas há uns 200 anos. Sabem como era o nome da Natalie Wood? Natalia Nikolaevna Zakharenko. Filha de pais russos, mais americana impossível. Ela não dizia: sou russa pura. Não era cavalo árabe.

Vi dois filmecos recentemente. Um é “O poder secreto das palavras”, com Tim Robbins (ficha ténica via Google, please), produção européia que lambe as feridas da guerra dos Bálcãs, e outro é “Infância roubada”, produção sul-americana que ganhou Oscar de melhor filme estrangeiro e que aborda a grande favela de Johannesburgo. São descrições de horrores para emocionar europeu e americano. Cheios de bons sentimentos e obviedades narrativas, com o agravante da inverossimilhança do roteiro, como acontece com “A vida secreta...”, pois para quê manter o moribundo na plataforma abandonada, no lugar de levá-lo para o hospital? Só para manter relação com a refugiada de guerra?

Bem mais contundente são os nossos “Tropa de Elite” e “Cidade de Deus”. Perto das favelas mostradas por esses dois filmes brasileiros, o lixão sul-americano parece ser de classe média. Pelo menos é mais organizado. O cinema brasileiro atingiu a lucidez necessária para chegar ao nível de arte maior (o argentino, nem se fala), ao contrário de outras obras que ficam rodopiando, enfocando o presente com olhos do passado. Não se trata de chafurdar na crueldade nem de analisar suas origens, mas o de reportar as manifestações do horror em toda a sua complexidade. Há diferença.

RETORNO – Imagem de hoje: Natalie Wood, eterna. Na frente das câmaras, nem precisava tirar a roupa para atrair a multidão.

21 de novembro de 2007

LEITURA OBRIGATÓRIA


Ninguém pode escapar deste texto lapidar do neto de Ernest Hemmingway, publicado no Direto da Redação. É puro Diário da Fonte.


"A TORTURA É AMERICANA COMO A TORTA DE MAÇÃ

John Hemmingway

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A tortura é americana como a torta de maçã. Ela é parte do que nós somos, a atual política da administração dos EUA, e considerada uma ferramenta prática por 40% dos americanos na guerra contra o terror (segundo recente pesquisa). Isso é o que nós fazemos com os estrangeiros capturados nos campos de batalha do Afeganistão e do Iraque e com cidadãos americanos presos no Aeroporto Internacional O’Hare, em Chicago. Nós colocamos todos na prisão e então usamos o que Bush e companhia gostam de chamar de “avançadas técnicas de interrogatório”, para extrair confissões e “colocar a inteligência em ação”.

Nós praticamos a privação de sentidos, cobrindo os prisioneiros com capuz preto e conectando seus órgãos genitais e unhas a baterias de carros no Iraque ou no "gulag"cubano. Nós os ameaçamos com cães latindo, nós quebramos seus ossos e os violentamos com cabos de vassoura, nós praticamos o “water-board” (técnica de tortura que consiste em jogar um balde d’água no rosto do prisioneiro amarrado pelos pés e pelas mãos), fazendo-os acreditar que serão afogados, lentamente deixando-os sufocar e engasgar enquanto a água enche seus pulmões e estômagos.

Nós somos uma nação de criminosos e gangsters e mesmo que a maioria de nós nunca tenha praticado qualquer uma dessas torturas, isso não nos deixa de fora. Os crimes são sempre cometidos em nosso nome, pelo nosso governo, e enquanto esse governo está aí, nós somos responsáveis por tudo que acontece. Isso é verdadeiro em qualquer lugar do mundo , e muito especialmente nos EUA, onde a Declaração de Independência fala em “governo para o povo, pelo povo e do povo”. Essa administração de tortura pertence a nós. Nós a criamos e Bush é nosso garoto, nosso pequeno homem cruel.

Nós compartilhamos com Bush de seus desejos mais obscuros porque fundamentalmente nós não somos diferentes. Nós fingimos que queremos o fim das guerras de Bush mas nunca acabamos com elas. Nós elegemos um novo Congresso e um novo Senado para “trazer as tropas de volta para casa” e então assistimos, sem reclamar, este Congresso e este Senado votarem pela manutenção das guerras, liberando mais dinheiro e mais homens.

Não tem limite o que nós toleramos. A decadência moral é significantiva e completa. Nós nos destruimos a nós mesmos, a nossa economia e o nosso país ao matar mais de um milhão de pessoas no Iraque e ninguém vai para as ruas protestar e exigir um novo governo.

Enquanto não houver convocação obrigatória, a guerra não nos afeta e nossos filhos e filhas estão seguros, ou achamos que sim. Somente os pobres e membros das minorias se alistam como voluntários. Os outros são isentos. Livres para continuar gastando enquanto o mercado imobiliário despenca, o dólar se desvaloriza e a mais recente nomeação de Bush para o cargo de Advogado Geral, Michael Mukasey, declara diante do Senado que não sabe se “water-boarding” é tortura ou não. Mukasey, é claro, acha a tortura “repugnante” mas não sabe o suficiente sobre “water-boarding” e os efeitos de uma simulação de afogamento para dizer se a prática pode constituir uma violação da Constituição americana.

E o Senado o que faz? Rejeita furiosamente a indicação dele porque é óbvio que qualquer idiota sabe muito bem que “water-boarding” é tortura e como tal viola a Convenção de Genebra e a Constituição (que proíbe “castigo cruel e incomum”)? Coloca ele pra fora e ao mesmo tempo manda um recado a Bush e seus assassinos cobrando dignidade moral? Nos leva a percorrer o longo caminho de reparar os prejuízos que nós causamos?

Nada disso. O Senado aprova a indicação e Mukasey será confirmado no cargo de Advogado Geral dos EUA, ou seja, o xerife encarregado de cumprir a lei nessa terra de tortura."

20 de novembro de 2007

SESSÃO DE AUTÓGRAFOS


Nei Duclós (*)


Autografar é o mais difícil gênero literário. Para cada leitor, é preciso criar uma frase, descobrir um mote, abordar um tema. Também é importante saber temperar o tom, não rasgar o verbo quando o momento pede prudência, nem deixar-se levar pela frieza se a ocasião impõe o arrebatamento. Entre a proximidade e a distância, o autógrafo precisa adivinhar a senda correta para que não haja constrangimento nem frustração, nem a timidez engula a emoção, ou o desprendimento gere inimizade.

Uma sessão de autógrafos é homenagem de mão dupla. A fila paga tributo ao autor e este precisa retribuir, expondo sua arte em estado puro. Pois é de caligrafia que estamos falando, é escrever sobre o papel em branco sem o auxílio das ferramentas digitais, sem o recolhimento necessário para achar a palavra certa. Não basta olhar para o interlocutor rezando para que a inspiração, não agora, o abandone. É preciso sangue frio e um mínimo de planejamento.

O leitor tem um nome que precisa ser lembrado nesse momento, que é o mais tenebroso porão da falta de memória. Amigos de 30 anos ficam sorrindo para o escritor que está com a caneta suspensa na mão. Eles aguardam a prova de tão longo relacionamento, pontuado pelas décadas afora em intermináveis conversas, viagens, segredos compartilhados. São até compadres, chegaram a apanhar juntos da ditadura, mas como é mesmo que você se chama?

Os livreiros já resolveram em parte esse embrulho, identificando, na hora da compra, o aspirante a um autógrafo. Mas isso funciona em parte, pois o melhor amigo rompe todas as barreiras e dribla o assessoramento. E assim dá-se a tragédia. "Por que ainda não autografaste o meu exemplar?" pergunta o fiel escudeiro de tantos anos. "É porque não lembro o teu nome. Deu branco, acontece a toda hora".

Não adianta. Nenhuma explicação é plausível. As grandes amizades não perdoam o que agora se revela apenas fingimento. Não conseguem entender a luta para se chegar até ali com um livro pronto, ter convencido os editores a investir, batalhar para que algo saísse na imprensa, fazer questão do verniz na capa, exigir um reparte de muitos livros para distribuir entre os resenhistas, milhares, existentes em todas as mídias e em todos os pontos cardeais do país continente.

Não dá para perdoar, mesmo que mil motivos detalhem essa briga. Não é um caminho fácil até sentar-se, enfim, na frente de alguém que se abalou de casa só para comprar seu livro e ter o privilégio de um autógrafo, que será exibido nas estantes, nas conversas, nas travessias. Quando todos se forem, e vir aquela jovem estagiária saber como era "aquela coisa" de estar vivo no início do milênio, então o primeiro leitor, o que chegou a ler o livro nos originais, com as mãos trêmulas, irá abrir o raro exemplar daquele escritor esquecido, mas agora cult.

Os garranchos eternizados em tinta azul são os vestígios definitivos. "Está aqui", dirá, mostrando, orgulhoso, sua prenda. "Para o meu grande amigo Fabiano, estas histórias que o tempo não leva". Haverá súbito silêncio. "Mas o senhor não se chama Fabiano. Pelo que eu saiba, seu nome é Márcio", replicará a estagiária. Ela terá então uma vaga noção daquele drama, a sessão de autógrafos, o mais maldito dos gêneros literários.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 20 de novembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Anderson Petroceli. 3. Com grande destaque, o editor e escritor Edson Cruz colocou na capa da sua importante revista literária Cronopios, meu conto Írio e os animais.

18 de novembro de 2007

MAIS DO MESMO

Há uma overdose da frase “é a economia, estúpido”, originalmente dita por um assessor de Clinton na campanha contra o Bush pai. O assessor explicava que a economia era definitiva na política, ou algo assim, e por isso decifrava os eventos fundamentais da vida americana e mundial. Só uma besta para não perceber isso, dizia nas entrelinhas. Milhares de versões dessa frase se reproduziram infinitamente por todas as mídias, pois nada mais agradável do que chamar os outros de estúpidos. Serve para destacar a auto-imagem, a onisciência, contra a obtusidade alheia. Todos se acham no direito de usar a frase, pois as manifestações do pensamento hoje são pautadas pelo xingamento.

As frases contundentes, que possuem o charme de impactar o interlocutor, perdem o brilho pela repetição, mas a reiteração apenas revela o vazio que elas representam. Não são mais as leituras que definem os debates, as vidas ou as memórias. São as quinquilharias da indústria do entretenimento. As pessoas sentem saudades do Topo Gigio, ou do primeiro skate, ou da Disneylândia, ou da série Perdidos no Espaço, ou da Jovem Guarda ou da Legião Urbana. Mas não podem sentir saudades do primeiro livro, pois ele não existe mais como vivência dos primeiros anos de vida.

A leitura não se presta mais à memória, porque sumiu há décadas. Como não há mais leitura de verdade (diária, intensa, pela vida afora), pelo menos a leitura de grandes escritores, então há uma dependência de frases ferinas, cheias de veneno e que passam o atestado de inteligência e criatividade para seus "descobridores". A tragédia é que não se dão conta que a grande tirada perdeu a força, como provou a frase “toda unanimidade é burra”, atribuída ao Nelson Rodrigues, que se transformou na própria burrice da unanimidade.

“Eles passarão, eu passarinho”, verso de Mario Quintana, foi tão explorado que se formou uma legião de passarões/passarinhos poéticos, pessoas que, de poesia, só conhecem isso. É uma injustiça a Quintana que tem inúmeros versos maravilhosos, mas é assim que funciona. Mesmar (se é que existe tal verbo) sobre as coisas é a palavra de ordem. O pior é a cara de inteligente que as pessoas fazem depois de cair num lugar comum.

No mundo corporativo, foi além da conta a história de que crise e oportunidade estão incluídas no mesmo ideograma chinês. Ouvi e li isso milhões de vezes, em artigos, palestras e livros, sempre dito de maneira que parecesse uma grande novidade, uma grande sacada. Crise é o seguinte: você se fode, entende? É a oportunidade de você ficar puto e não de dar a volta por cima. Você acaba vencendo não porque teve a crise, mas porque precisa sobreviver, seguir adiante e esquecer aquela crise filha da puta, não é mesmo? Você vence porque não é o imbecil que todos pintam.

Então chega disso. Não devemos nos mirar em sabedorias milenares chinesas, haja visto o que a China faz com as criancinhas, inventando brinquedos que matam para dar lucro. Nas consultorias isso virou conversa para empreendedor dormir. O cara investe a poupança de duas vidas, monta uma birosca, quer que tudo seja oficializado, paga os tubos de juros e impostos, vem um concorrente e leva a freguesia (competitivo o cacete, isso é malandragem e predadorismo) e ainda tem que aturar o consultor dizer que ele não se preparou, a culpa é dele, que a crise deve ser aproveitada para criar oportunidade, porque os chineses...Precisa jogar um pacote de merda em pó industrializada na China na cara do sujeito.

Outra coisa que explode o saco é esse negócio de que a realidade é mais incrível do que a ficção. O que chamam de realidade, reportada nos jornais e televisões, é pura ficção. É por isso que a literatura se volta cada vez mais para a verdade. Não a “verdade” confundida com a realidade ficcional do noticiário, mas a verdade que nos faz menos idiotas e burros, que nos livra das armadilhas da babaquice metida a correta, que nos devolve o humor e que nos dá força para continuar cagando em cima de tanta asneira que despejam por todo o canto.

Se um repórter de televisão vier fazer gracinha perto de mim com essas historinhas humanas que entopem os programas, dou-lhe uma chapuletada. Se você não souber o que é chapuleta, merece uma na oreia. Mas não fique em crise. Levar uma chapuletada é a oportunidade de não dizer besteira. Eles passarão, você (hummm) passarinho.

RETORNO – 1. Imagem de hoje: o tal ideograma chinês que coloca no mesmo saco crise e oportunidade. Haja. 2. Mudei o título, que estava muito parecido com o do outro post.

17 de novembro de 2007

ENQUANTO ISSO, PERTO DALI...


A reportagem acima foi publicada no jornal Imagem da Ilha, aqui de Florianópolis, na sua edição de novembro. Para ler o texto, é só clicar na foto.

Recebo a seguinte mensagem de um leitor: "Nei, moro em Niterói (RJ), tenho 44 anos, sou casado com uma gaúcha e temos dois filhos. Comprei o livro Meu vizinho tem um rottweiller (...e jura que ele é manso) para o meu filho Pedro, de 8 anos, porque achei o título intrigante, sugestivo e pela história se passar em Floripa, sonho de consumo da nossa família. No entanto, ele deu mole, e acabei por começar a leitura. Fui me envolvendo a cada página, pois adoro histórias de bruxas (mesmo depois dos 40!)".

"Terminei de ler no feriado de 15 de novembro. O livro é muito interessante, até porque estamos na iminência de ir morar em Floripa, no Campeche. Será que isto é um sinal de que devemos realmente ir para lá? Temos 4 cães, nenhum deles é um rottweiller. Estou ansioso para ler a continuação da trilogia. Quando é que sai do forno? Grande abraço para você e para o Tabajara. Continuem nesse pique, valorizando nossa cultura, nossas praias e, principalmente, nosso paraíso chamado Floripa."

Tem acontecido com freqüência: adultos compram o livro para a meninada e acabam lendo, e gostando. Sinal de que a trilogia é para todas as idades. O próximo livro está no forno e será publicado em 2008.

16 de novembro de 2007

DATAS DE NOVEMBRO



Novembro tem muitas datas e todas passam ao largo da cidadania em fuga, ou sob a forma de escapadas para o litoral ou em desconhecimento puro e simples. O 15 de novembro, por exemplo, passou em brancas nuvens. Não vi nada sobre a Proclamação da República na mídia. Fizeram feriado, com direito à folga nesta sexta-feira, e pronto. O Consciência Negra, dia 20, está sendo bem comemorado pelos turistas, já que cai numa terça-feira, o que permite enforcar a segunda. Juntando com esta sexta, fica assim uma semana de férias.

Viva as férias, por mim ninguém teria que encher o saco nos empregos. O que me invoca é o que fazem com as datas. Já o 10 de novembro foi muito lembrado. Setenta anos de Estado Novo! Quanto ódio, quanta bílis. Falaram que o Estado Novo deveria ser expurgado do imaginário nacional e que as “festas da redemocratização” de 1945 e 1985 deveriam ser celebradas.

Celebrar o quê? 1945 começou com um golpe militar (em 29 de outubro), continuou com a expulsão do Partido Comunista para a ilegalidade e teve seu primeiro governo orientado pela direita, a UDN, que sentou em cima do presidente eleito, Marechal Dutra. Este, recebeu como pagamento da dívida que os americanos contraíram conosco durante o conflito mundial alguns navios cheios de brinquedos de plástico. E 1985 já estamos fartos de saber: arreglo de elites que consolidou a ditadura de 1964.

O Estado Novo foi a vitória da ala nacionalista do Exército contra a ala nazista (nas Forças Armadas argentinas, essa tendência nazista de extrema-direita foi vitoriosa, por isso Perón apoiou Hitler e recebeu toda a nazistada depois da guerra) O Estado Novo lutou com armas na mão contra o nazi-fascismo, consolidou as leis trabalhistas, negociou com os aliados a siderúrgica de Volta Redonda, a base da nossa industrialização, zerou a dívida externa, combateu o banditismo, enfrentou uma tentativa de golpe dos fascistas brasileiros, os integralistas (em 1938). Durante o Estado Novo, o Brasil foi paparicado, respeitado e os operários brasileiros tinham salários com níveis de Primeiro Mundo. O Rio de Janeiro, capital da República, era um encanto. Hoje é uma cloaca.

Perseguiu comunistas? Sim, pois os comunistas tinham dado o golpe de 35 contra um governo democraticamente eleito pela Assembléia Constituinte. Perseguiu adversários? Sim, mas não fez como 64 que destruiu a inteligência nacional e massacrou sucessivas gerações. A literatura e a música brasileira não foram destruídas durante o Estado Novo, ao contrário (Monteiro Lobato e Graciliano Ramos, entre outras grandes personalidades literárias, publicaram suas obras). Erradicou o voto direto? Sim, foi um regime de exceção que coincidiu com a Segunda Guerra Mundial. Imaginem FHC ou JK durante a Segunda Guerra. Ficariam de calças abaixadas para que viessem os gringos meter aqui.

Fez mal para o país? Também, pois manteve o cunho autoritário do governo, o que tínhamos desde a Colônia. Mas pelo menos não era um arremedo de democracia como hoje, em que estamos nas mãos dos tiranos e ainda nos culpam por elegê-los. Getúlio era querido e respeitado pelo povo. Tanto é que foi eleito pelo voto direto em 1950 (o que jamais perdoaram).

Vamos à Consciência Negra. Fizeram um teste de DNA na ginasta gaúcha Daiane dos Santos (nome próprio americano, grafado conforme aqui se pronuncia, dos Santos, sobrenome dado pela Igreja aos órfãos cativos), pretíssima e descobriram que ela tinha 60% de ascendência européia. É consenso entre os cientistas que raça humana não existe, tudo é fruto de muitas misturas (inclusive os alemães, resultado de mistura de povos não arianos). Por que então celebrar a raça negra e, pior, chamar os brasileiros de afro-descendentes? Isso significa negar a cidadania brasileira. Os povos africanos que foram trazidos para cá se misturaram como nunca fizeram no continente de origem. Então não temos africanos nenhum, temos brasileiros.

Revi ontem um filmeco com o Nickolas Cage e a Penélope Cruz, o “Capitão Borelli” (única qualidade é ter o grande John Hurt como um dos protagonistas). Como o Cage se acha italiano, fez o papel de um italiano. É de chorar. O cara é americano. Apenas imitou trejeitos que ele identifica com a Itália. Somos seres culturais. Sem essa de sangue. Mas o Consciência Negra é para lutar contra o preconceito, dizem. Replico: não se pode lutar contra o preconceito colocando outro no lugar. Mas o negro é perseguido no Brasil e precisa se auto-afirmar, encontrar sua identidade, continuam. Acho o seguinte: o negro, o branco, o pardo, o índio, todos somos brasileiros. Nossa identidade é o Brasil. Não o Brasil de “isso é Brasil”, da negação da nacionalidade, da unidade territorial. Mas o Brasil soberano, aquele fundado em 1930 e que foi erradicado em 1964.

Precisamos ter claro isso: somos o Brasil, país sucateado pela ditadura de 1964, que continua no poder, só que sem os militares. Tendo isso claro, fica fácil entender o resto. O cineasta Sérgio Bianchi, diretor de “Cronicamente inviável”, identifica a raiz dos nossos males na nossa endêmica falta de competência para lidar com conflitos e problemas. Como se fossem fruto de causas naturais! Somos assim, Sérgio, porque houve um golpe de Estado em 1964, dado contra o trabalhismo. E por que a ditadura continua? Porque quem lutou contra ela foi assassinado e nós não lutamos porra nenhuma. Ficamos sentados vendo o Delfim Neto gargalhar com seu passo de elefantinho.

RETORNO – Imagem de hoje: captura de escravos na África (acervo UFRGS). Atentem: os dois tem pele escura, mas são de povos diferentes, nacionalidades diferentes, culturas diferentes. Então um escraviza o outro.

15 de novembro de 2007

O GORDINHO VILÃO


Gordura é vilania, no cinema e na literatura. O obeso é Goldfinger, oposto ao sarado herói 007 (que é assassino consentido, por ser magro). Há sempre um chinês gordo entre as gangs dos filmes de pontapés, ou um mexicano arrebentando os botões, barbudo, tabagista, suado e sanguinário nos faroestes. Excesso de peso é identificado com falta de escrúpulos, com gula, com a necessidade de ocupar um espaço que não lhe pertence. Ser gordo é um perigo e por isso há tanto gordo comediante. É preciso provar a cada segundo que ele é, no fundo, inofensivo.

Todo esse acervo é ditado pela aparência. O gordo não compactua com o consenso de que não faz parte da normalidade. Por dentro, ele é o que imagina ser. A única coisa que atrapalha é a falta de cálculo. Uma dobra da mesa a ser transposta por um pé virado do avesso, um obstáculo subitamente aparelhado para derrubá-lo, um canto onde não cabe seu gesto. Fora isso, é como todas as pessoas, só que é tratado como um aborto da natureza.

Hoje a obesidade é considerada doença. Nem sempre foi assim. Houve época em que existia um gordo para qualquer ocasião. Era um tipo especial, diferente, pois a humanidade não tinha ainda inventado a televisão e o fast-food, que transforma todo mundo em elefante. Mas havia também outro espécime, o gordinho, que tomava emprestado a vilania do gordo, mascarada por um perfil pragmático.

O gordinho não era o sujeito com peso muito excessivo, mas o cara um pouco redondo com excesso de auto-estima e que não se flagrava. Não era o obeso, que precisa perder uns 30 quilos para ficar gordo, mas é aquele cara que precisava mesmo de mais espaço, por isso tinha o aspecto de gordinho. Era um traidor da classe. Gostava dessa estampa, fazia parte do seu show. Usava o preconceito a seu favor.

Quando a festa estava animada e em alto astral, chegava o rei da cocada preta fazendo Vês com os dedos indicador e pai-de-todos, estendendo os braços e sacudindo a cabeça de maneira cool. Era ele. Você ia fechar um negócio e tudo andava tenso, difícil? Pois sempre tinha o gordinho que queria festejar antes da hora. Você quebrava a cabeça trabalhando e estava prestes a chegar a uma solução. Quem anunciava o feito para a chefia? Adivinhem. E era o gordinho que chamava todo mundo de cascateiro, chiando nos esses, como se fosse carioca. O gordinho era aquele chiado de chaleira criado no interior e que aspira a ser capital. Sempre tinha um, onde você estivesse.

Só porque ele era gordinho, todos precisavam prestar-lhe homenagens. O mundo nasceu para celebrá-lo. Se houvesse dança, ele dançava mais do que todos, fechando os olhinhos enquanto se sacudia todo (ridicularizá-lo seria preconceito, pois ele era gordinho). Se tivesse roda de gente importante, era o mais altaneiro, de braços cruzados, levantando a sola dos sapatos para denotar segurança e também para se sobrepor aos demais. De vez em quando, dava olhares assassinos para quem estava de fora, enquanto emitia ordens para os garçons.

Grudava-se numa celebridade e ao passar por um mortal dizia: "Já falo contigo". O gordinho era também especialista em assumir cargos de chefia antes de ser nomeado (nunca seria, mas ele tinha o direito, já que era gordinho). Por isso afrouxava a gravata , colocava os punhos na mesa, se debruçava sobre sua vítima e vibrava seu bafo de dragão para que não houvesse dúvidas sobre quem mandava ali. Mas bastava chegar algum graduado para se desmanchar todo.

Gordinho gostava de falar fino para dizer a piada mais estridente e contava com a tolerância geral pelo fato de ser gordinho. Era o boa praça na chegada, o chato quando ficava alguns meses, e insuportável depois de um ano. Todo mundo queria fazer o gordinho. Mas o cara deitava raízes fortes na corporação. Ele servia qualquer coisa e inapelavelmente acabava tendo acesso ao caixa.

Conheci gordinhos sem nenhuma instrução que fizeram fortuna colocando-se no caminho entre a empresa e os clientes. Depositando uísque envelhecido na frente de consultores recém chegados. Convencendo que podia fazer qualquer tarefa, para isso foi talhado em seu perfil de gordinho. Quando sentado na platéia, o gordinho se sacudia todo e fazia brilhar suas bochechas. Se estivesse na mesa, era o autor das piadas oficiais, pois sempre tinha um gordinho fazendo meio de campo.

A fala do gordinho era uma composição estratégica com a parte final das frases alheias. Essa espécie de eco o tornava parte integrante de qualquer roda. Imitava a intimidade como ninguém. Se alguém estivesse com cara preocupada, ele estaria lá, misturando as cartas de maneira convincente, ou seja, sendo sério e ao mesmo tempo hilariante, para que soubessem o quanto é superior à situação, como combina com tudo e como pode ser extremamente confiável.

Por isso não adiantava fugir. Era inútil tentar escapar de um gordinho. Haveria outro, para substituí-lo. No momento mais importante da sua vida, quando tudo se dirigia para um desfecho favorável, eis que chegava o gordinho. Ele te conhecia. Ele se lembrava. Ele batia com os cotovelos na pessoa ao lado, que por sinal era o jurado que iria te dar o prêmio de um milhão de dólares. Talvez não desse mais. O gordinho entrou em ação a tempo. Se você saísse derrotado desta, ele estaria na saída, com cara de boi compungido, pronto para te dar apoio. E se despedia com um tapa nas tuas costas. Você jamais iria reagir. Ele era um gordinho.

Não é que tenha espírito de porco. Isso todo mundo tem. Ele era um especialista, um mestre. Um gordinho sempre saía pela tangente para reaparecer em outro local, pois em todo lugar existia a chance de haver a invasão de um gordinho. Hoje fica difícil identificar um gordinho. Mas, não se enganem. Ele está por toda parte. Principalmente para notar, aos berros, como você engordou.

RETORNO - Imagem de Hoje: Gert Fröbe como Goldfinger.

14 de novembro de 2007

GETÚLIO E GRACILIANO: O OUTRO LADO


Sempre desconfiei que havia algo errado na história de Graciliano Ramos e Getúlio Vargas. O poeta Sidnei Schneider, de Porto Alegre, que participou do debate na Feira do Livro no dia 8 de novembro, “A nova poesia não nasceu nem vai nascer” (que teve a mesa composta por Marco Celso Viola, Dilan Camargo e eu), coloca num artigo alguns pontos importantes, que lançam luzes sobre o episódio que envolveu as duas grandes personalidades. Selecionei alguns trechos que publico aqui. Atenção: o que vem a seguir é de autoria de

Sidnei Schneider

A partir de dados do livro Os Saltimbancos da Porciúncula, de Antonio Carlos Villaça, sobre a prisão do escritor Graciliano Ramos e a intervenção de Getúlio Vargas para a sua soltura, Sidnei Schneider lança luz sobre o relacionamento entre o governo e os mais importantes intelectuais da época

No livro Os Saltimbancos da Porciúncula, anotações do jornalista e escritor Antonio Carlos Villaça (1928-2005) sobre personalidades do mundo literário, surge alguma luz sobre fatos que envolvem o escritor Graciliano Ramos e o presidente Getúlio Vargas. Inicialmente, examinemos o texto:

Graciliano estava preso, sem processo. Aquilo era um absurdo. Pois, certa manhã, José Lins do Rego, seu grande amigo, foi ao Palácio da Guanabara para conversar com Herman Lima, oficial-de-gabinete de Getúlio, que só lhe chamava Tigipió, por causa do seu livro de contos. Getúlio adorava dar apelidos. José Lins ia pedir a Herman Lima que pedisse a Getúlio a libertação de Graciliano. O cearense prometeu que sim, que ia pedir a Getúlio. Assim fez. Quando sentiu que o presidente estava de bom humor, fez o pedido.

Getúlio respondeu (e Herman Lima contou-me a cena) – não mandei prender Graciliano, não mando soltar Graciliano. Mas telefone em seu nome ao general Pinto (Francisco José Pinto, chefe da Casa Militar, ele usava pincenê) e lhe peça para telefonar ao Filinto, perguntando por que o Graciliano está preso. Veja-se a psicologia getuliana, em todo o seu esplendor.

Assim fez Herman Lima, com solicitude. Foi tiro e queda. Filinto mandou soltar Graciliano. Este saiu da cadeia e foi hospedar-se em casa do seu amigo Lins do Rego, na rua Alfredo Chaves, em Botafogo. José Lins estava feliz.


Diga-se que Villaça não é exatamente alguém disposto a defender posição em relação a Vargas, está mais interessado no pitoresco e na anedota que reconta literariamente, como se pode ver em outro trecho do livro, no qual fala de dois acidentes automobilísticos envolvendo o automóvel oficial da presidência. Todavia acrescenta dados, cita a fonte e ficamos sabendo como Graciliano foi posto em liberdade pela intervenção do Presidente.

Graciliano Ramos, diretor de Instrução Pública de Alagoas, tendo já publicado Caetés (1933) e São Bernardo (1934), de fato é preso como subversivo, sem provas de acusação, na cidade de Maceió em março de 1936, num clima pós-levante da Aliança Nacional Libertadora, encabeçada pelo PCB, de novembro de 1935. Demitido do cargo, é enviado para o Recife e de navio para o Rio de Janeiro, onde permanece detido até janeiro de 1937. Na prisão, escreve o romance Angústia, publicado ainda em 1936; as famosas Memórias do Cárcere, ele começaria a redigir dez anos depois, sendo editadas apenas em 1953, logo após a sua morte.

Chama a atenção que comunistas e fascistas estejam juntos na prisão, sugerindo que algo devia estar errado na política de oposição do incipiente PCB ao governo Vargas. Isso num momento em que a política independente e desenvolvimentista do governo manda às favas as pressões do imperialismo inglês e os seus barões do café, fortalece a indústria nacional proibindo a importação de artigos de luxo e de produtos já fabricados aqui, taxa em 8% as remessas de lucro das empresas estrangeiras, nacionaliza as minas, inventa a legislação trabalhista e atende reivindicações dos trabalhadores consideradas até então mero “caso de polícia”.

Jorge Amado, num livro de entrevistas a sua tradutora francesa Alice Raillard, conselheira da editora Gallimard, dá mais informações: Getúlio tinha boas relações com os escritores, ele lia muito. (...) Com alguns, José Lins do Rego, por exemplo, Getúlio até mantinha um relacionamento bastante freqüente. E quando Graciliano Ramos saiu da prisão, obteve um emprego no Ministério da Educação. Ele e muitos outros, não é?.

Em 1937, o ano mesmo da sua libertação, Graciliano Ramos recebe do governo o Prêmio do Ministério da Educação pelo livro infanto-juvenil, ainda hoje de todo recomendável, A Terra dos Meninos Pelados. O fundamental Vidas Secas, um dos livros mais bonitos da nossa literatura, é publicado em 1938. No mesmo ano, ao cair da noite de 10 de maio, hordas integralistas assaltam o Palácio Guanabara na tentativa de eliminar Getúlio, mas são surpreendidas pela resistência da família Vargas de armas na mão, até às cinco horas da manhã, quando o levante fascista é enfim sufocado.

Em 1939 ocorre a aludida nomeação de Graciliano para Inspetor Federal no Ensino Secundário. Em 1941 o governo cria a Companhia Siderúrgica Nacional e dois anos depois a Vale do Rio Doce, empresas essenciais para alavancar o desenvolvimento do país. No ano de 1945, a convite de Luis Carlos Prestes, Graciliano filia-se ao PCB. Como se sabe, é um momento em que o partido já mudou a sua política. Após dar apoio a Vargas contra o nazi-fascismo durante a Segunda Guerra, avança e passa a compreender melhor o que está em causa no Brasil, equacionando na prática a sua estratégia: as forças nacionais, democráticas e populares de um lado e o imperialismo com seus lacaios de outro.

O PCB participa então da campanha Constituinte com Getúlio em 1945, com Prestes e Vargas no mesmo palanque – a foto é famosa – e apóia o Presidente contra os golpistas e pseudoliberais até o fim do seu governo, em outubro do mesmo ano. Aliás, essa política e estratégia recebem grande apoio popular, como mostram a Constituinte de 1946 - Prestes eleito senador com número recorde de votos e uma boa bancada na Câmara dos Deputados - e o extraordinário crescimento do número de militantes, que atinge cem mil.

Temos, então, Graciliano e Getúlio lado a lado. Depois disso, vem a eleição de Getúlio à Presidência (1950), criação da Petrobrás (1951-53), nacionalização das reservas minerais e energéticas (1953), nova lei da remessa de lucros, os alicerces da Eletrobrás, o aumento de 100% no salário mínimo (1954) e o que mais se sabe.

Quem ainda hoje pretende cobrar coerência de Graciliano por essa trajetória, ou anda muito desavisado quanto à história do país, sendo esta a melhor das hipóteses, ou bandeou-se com suas idéias, inconsciente disso ou não, para o lacerdismo-entreguista que naufragou com FHC e teima em boiar por aí nauseando o ar.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Capa do livro infanto-juvenil de Graciliano Ramos premiado pelo Ministério da Educação do governo Getúlio Vargas.

2. Invocado com a falta de comentários, acabei recebendo pelo Orkut a seguinte manifestação, assinada por Leonardo Batista, de Cachoeira do Sul (RS): " Já há algum tempo estou querendo entrar em contato com o senhor, desde que li um texto seu intitulado As Verdades Definitivas ( DC 24/Junho). Não me lembro de outra vez na vida em que tenha me identificado tanto com um texto! A sua capacidade de síntese foi impressionante, bastou o primeiro parágrafo pra resumir o que eu ainda levaria alguns anos pra conceber! Porém a decisão de procurá-lo pra agradeçer veio justamente quando lí e reconheci em O Sopro Imortal ( DC 11/Nov.), também arrebatador, uma possível continuidade do primeiro. "... Acumular historias, informações, falas, não importa. O que vale é o gatilho do texto, a faísca que bota fogo na montanha de coisas que juntamos, o grude que garante a massa, quando tudo faz sentido. O gatilho aciona o sopro imortal..." Visceral!!Tenha certeza de que o senhor sacode muitas almas!! Obrigado!!"

Quem sacode a alma do escritor são leitores como você, Leonardo. Muito obrigado.

13 de novembro de 2007

A PRÓXIMA CHANCE


Nei Duclós (*)

E se fosse o contrário, o Nilo como dádiva do Egito? E se as cheias periódicas depositando húmus para a lavoura não fossem obra do acaso, mas dos homens fartos do deserto? E se a grandiosidade do rio fosse o resultado de paciente e interminável trabalho de gerações que não queriam mais ficar à mercê da sede e da fome?

É possível que a natureza, tal como a conhecemos, e que está quase totalmente destruída, com suas cachoeiras deslumbrantes, cercadas por pedras lisas e horizontais estrategicamente colocadas para o deleite dos banhistas, tenha sido projetada por raças ancestrais. Elas moldaram montanhas, orientaram nascentes em direção aos leitos, que cavaram na areia, e assim levantaram não apenas pirâmides, mas florestas.

Seus vestígios estão por toda a parte. Taças gigantes de granito que se erguem em conjunto com enormes abóbadas ou arcos. Ruínas não catalogadas, cheias de sinais extravagantes à espera de um Champollion. O que dizem traços, figuras, cenas, sinais gravados eternamente, cercando baías mansas, escondendo-se em cordilheiras indevassáveis, brotando em cerrados e planaltos? Foram os índios, ou isso é obra da chuva, dos ventos e do tempo, dizem os acadêmicos céticos. É a Atlântida, dizem os sonhadores empedernidos.

Descobriram há pouco tempo enormes estruturas quadradas no chão do Acre desmatado, formadas por canais, que se repetem por quilômetros. A verdade é que a abundância dos vestígios é assimilada de maneira tosca pela escassez das teorias. Nada temos a descobrir nas pedras empilhadas do litoral e interior, nas esfinges que grudam em costões ou pontuam paisagens no ermo. Tudo está catalogado como mistério intransponível e qualquer especulação é recebida com bocejo ou gargalhada.

Acostumados a esse tipo de tratamento, alguns estudiosos de fôlego maior continuam com suas descobertas e, para não assustar os leigos, circunscrevem esse tesouro a espaços temporais conhecidos ou a idéias rudimentares e mansas. Mas no fundo eles sabem. Habitamos a terra lavrada pelo gênio dos antigos, de tal maneira que toda a natureza se voltava para a sobrevivência. Fizeram do habitat um lugar aprazível, já que cansaram de serem chicoteados pelas tempestades, terremotos e nevascas.

Para se defenderem, imitaram o Criador. Ou seja, no planeta bárbaro geraram o Éden, com suas águas providenciais, os bichos sob controle, o clima favorável. Dizem que a Ilha da Páscoa se transformou num deserto pela falta dos seus habitantes, que destruíram os insumos para persistirem vivos. Ou que antes da Amazônia tínhamos o deserto. E que antes do Saara, tínhamos a floresta. Na tentativa e erro, as populações ergueram e destruíram suas obras que se confundiram com a natureza.

Tudo é obra do homem e sua loucura. Estamos cercados por planetas inabitáveis. Fomos também assim e nos dirigimos para esse destino. Herdamos o paraíso e acabamos com ele. Sentimos saudades do trabalho de fazer brotar a flor provisória, a árvore imortal, a cascata em forma de véu de noiva. Perdemos a pista de como se faz. O único caminho para resgatar esse saber será, parece, acabar com tudo. Nus diante do horror, teremos que recomeçar.

Não será fácil. Já tivemos nossa chance. Haverá uma próxima?

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça feira, 13 de novembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: uma das inúmeras pedras furadas existentes no Brasil. Esta fica em Ubirici, Santa Catarina.

12 de novembro de 2007

PORQUE NÃO NOS CALAMOS


Graças a Tabajara Ruas, que me incluiu no evento, conheci essa grande figura que é o David Toscana, romancista celebrado em todo mundo como um dos grandes talentos da literatura mexicana atual. Uma pessoa concentrada, silenciosa, séria, mas ao mesmo tempo dotada de grande bom humor. Deu uma aula sobre romance e México no encontro que tivemos no Centro Érico Veríssimo no dia oito. David, Tabajara, Marcio Pinheiro e eu (pela ordem, na foto acima) falamos para uma sala lotada de participantes atentos. Foi bom demais. E ainda ganhei um autógrafo de David no seu lançamento “O Exército Iluminado” que, junto com o Último Leitor, de 2006, será comentado aqui em breve.

David Toscana é a porção latino-americana que admiramos e que nos ilumina. A que ninguém manda calar a boca, porque não adianta. Exatamente o contrário de outra porção, que nos envergonha. Pois o destempero do rei Juan Carlos, que mandou Chavez se calar na recente reunião Ibero-Americana, aconteceu quando o presidente venezuelano não tinha o direito de falar. A fala era de outro, não dele, tanto é que seu microfone estava mudo.

Mas o idiota não deu bola e continuou com sua arenga à margem, recebendo então o troco do rei. Esse é um detalhe importante. A mais alta autoridade espanhola não mandou o latino-americano se calar quando este estava no direito de falar, mas sim no instante em que Chavez usurpou esse direito. Surgiu assim a chance para que a Espanha cagasse novamente na cabeça da América Latina. Para isso serve Chavez, o boquirroto: para dar razão aos poderosos.

Serve também para passar a mão em Lula, que saiu todo doce do encontro, pois foi chamado pelo côco-bicho venezuelano de “magnata do petróleo”. Era tudo o que alpinista social Lula queria ouvir. O presidente, que se orgulha do seu analfabetismo e vibra a pobreza na infância para destacar sua vitória do sujeito que deu certo na vida, queria mesmo era chegar a ser magnata. É o ápice de sua trajetória. O resto não importa.

Posar sorrindo com Evo Morales, o cara que tungou os investimentos brasileiros na Bolívia, é de um acinte sem precedentes. Nunca em nenhum país um mandatário que foi desmoralizado por um dos seus pares foi lá apertar a mão do cretino.

Gozar diante dos algozes parece ser a opção petista no poder. Querem agora entrar na Opep, porque acharam a riqueza a sete quilômetros da superfície, incluindo uns três quilômetros de rocha. Para quê? Para exportar, pois o Brasil serve para isso. A Petrobras, sem acento, deixou de ser brasileira. Pode achar óleo à vontade, já que nossas riquezas não fazem mais parte da nossa soberania. Está tudo liberado. O Brasil é o rabo do mundo.

Enquanto isso, quando o Estado Novo getulista completa 70 anos, sobrou merda contra o presidente do Brasil Soberano. Emérito colunista gaúcho, uma espécie de Diogo Mainardi da província , mas com diploma da Sorbonne, liga o Estado Novo às ejaculações de Getúlio. Estou falando sério. Para o articulista, o processo que levou à implantação do Estado Novo se resume às prepotências seminais do presidente, que descarregava sua força em mulheres da vida. Foi o que ele escreveu.

Dá para responder? Ou vamos deixar para lá, e apenas confirmar que não há limites para a cretinice e a insânia? O pior é que essa, digamos, “tese”, faz parte de um livro dele sobre o grande estadista. Certamente deve ser lido na privada.

11 de novembro de 2007

EM BUSCA DE PERSONAGENS


A apresentadora do programa esportivo e a atleta de saltos ornamentais ficam fazendo gracinhas em frente as câmaras. Dão risotinhas, fingem corridinhas e mastigam alguma coisa. Há uma certeza na mídia de que o público adora ver jornalista e celebridade dando trabalho aos dentes e deglutindo. O motivo é simples. Os esportes fazem parte da grande maracutaia do patrocínio subsidiado das grandes empresas, que assim pagam publicidade com dinheiro público. Não importa a informação, o que vale é mostrar a logomarca, grudada em camisetas, shorts, meias, calçados.

Nesse cenário de irreal valor, sobram expressões como “melhor do mundo”. Notaram como sempre tem alguém melhor do mundo? E o pior é que dizem eternamente que Falcão é o maior jogador do mundo de futsal e assim por diante. Porque Fulano, o melhor do mundo. São as trombetas do marketing. O tempo que se gasta reiterando a presença de tanto sovaco suado é de amargar. E o "Imperador"? O coitado do jogador que caiu na balada quer "voltar a reinar". Inventaram um Império para Adriano, que caiu do pódio. Deixem o sujeito jogar, sem cercá-lo de expectativas frustrantes.

Depois fazem óóós de espanto quando tem algum caso de doping. Queriam o quê? Criam um ambiente de exclusão, de hierarquia, de pirâmide social entre os melhores do mundo e o resto, e aí, pronto: sempre vai ter esse expediente maroto de driblar os juízes e a multidão que aplaude para ser vista em casa (“Galvão, filma eu!”). A mídia cria desesperadamente personagens sem querer investigar nada, sem fazer jornalismo. É para embalar o “conteúdo” (que nada mais é do que o acerto entre a publicidade e os jornalistas). Como não há mais jornalismo, e o leitor só paga quando há reportagens, então sobram jornais gratuitos. Tem cada vez mais jornal de graça. Publicidade, em forma de matéria ou não, tem que ser distribuída. Já está paga.

Disso ninguém reclama. É “normal”. Mas quando um cineasta acerta na veia e faz um filme maravilhoso, com personagens verossímeis e encantadores, então é hora de cair de pau em cima de dele. É porque ele não “inova”, ou “dá o que o público quer”. Quando Silvio Soldini lançou “Pão e Tulipas” em 2000, o público lotou os cinemas. Os pseudo-inovadores de plantão viram apenas estereótipos, personagens falsos. O filme é magnífico (feito com dinheiro público, pois o roteiro foi considerado de interesse nacional). Não se trata da dona de casa que abandona família para viver um grande amor, isso é leitura torpe de quem vê apenas o que quer confirmar na sua cabecinha de porongo.

Cinema é outra coisa. Cercada pela pobreza estética globalizada (as roupas da família que a despreza, os móveis da casa sem alma, os monumentos das viagens turísticas mentirosas) a protagonista se refugia num ambiente clássico (a Veneza popular, não turística, dos becos, da umidade colorida, da classe média despossuída) para encontrar objetos que resgatam sua infância (o acordeon), afazeres poéticos (a loja de jardinagem), o pouso amoroso (o quarto de despejo do garçom suicida). A vizinha massagista, o detetive encanador, o lojista erudito são personagens da sua nova vida que a cercam e a afastam do marido neurastênico, dos filhos vazios, das amigas traidoras.

Onde está o crime neste filme primoroso? Um crítico sustentou a tese de que nunca o cinema apresentou tanta gente feia. O cara deve ser um espanto narcisístico. A ótima Licia Maglietta e o antológico Bruno Ganz, festejado ator europeu de cinema e teatro, são presenças marcantes neste filme enxuto e emocionante. Mas é porque querem “o novo”. Quando o novo vem com força, não só desprezam, como matam o autor. O que fizeram com Glauber?

Esses temas, o novo e o belo, foram assunto para caloroso debate sobre poesia na mesa redonda da Feira do Livro na sexta-feira. Participei da mesa, formada por Marco Celso Viola e Dilan Machado. Lá estiveram vários poetas e ainda meu antigo amigo Paulo Loguércio, que eu não via desde os anos 60. Lembrei ao Paulo algumas músicas que fizemos juntos e que ele esqueceu. Ingrato compositor! Mas fiquei feliz em vê-lo bem, orgulhoso dos filhos artistas, músicos e compositores.

Esse foi um do grandes momentos da minha passagem por Porto Alegre, a Cidade da Cultura, que encerrou mais uma Feira do Livro neste domingo. Agradeço à Câmara Riograndense do Livro, que me garantiu uma estadia de príncipe, e que, junto com editora Record, me proporcionou viagem de avião, ida e volta. Teremos mais Feira, claro, nos próximos posts. Nem falei ainda do encontro com Tabajara Ruas, Marcio Pinheiro e David Toscana, para sala lotada, na quinta-feira, dia 8. Nem de minhas conversas com o amável Rubens Ewald Filho, que viajou para lançar seu livro sobre cinema e gastronomia. Nem falei sobre Miguel Ramos, o maior ator do Brasil, que compareceu aos eventos com sua atenção, seu entusiasmo e sua força.

São muitas as personagens e as cenas vividas durante dois dias em Porto Alegre, a Cidade da Cultura.

RETORNO - Imagem de Hoje: cena de "Pão e Tulipas", de Silvio Soldini, com Bruno Ganz e Licia Maglietta.

7 de novembro de 2007

ENCONTROS NA FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE


Como tenho feito todos os anos, viajo nesta época para participar da Feira do Livro de Porto Alegre, a convite da Câmara Riograndense do Livro e dos amigos escritores. Desta vez, a agenda está mais animada do que de costume. Junto com Tabajara Ruas, vou participar de um encontro com David Toscana (foto acima), o excelente romancista mexicano da nova geração (44 anos), autor de “O Último Leitor” e “O Exército Iluminado”, entre outros livros. Li “O Último Leitor” num exemplar emprestado da Biblioteca Barca dos Livros, da Sociedade Amantes da Leitura, aqui da Ilha, e fiquei impressionado. Toscana merece toda a festa que a crítica internacional está fazendo para sua obra.

Também estarei numa tarde de autógrafos junto com Tabajara Ruas para o lançamento oficial do primeiro volume da trilogia Diogo e Diana. Convocado por Cícero Galeno Lopes, participo de uma mesa redonda sobre escritores fronteiriços. E, com meu grande amigo e poeta Marco Celso Viola, converso sobre poesia. Está de bom tamanho? A seguir, a programação.

Data: 8/11/2007 Hora: 16:00
Histórias iluminadas
Participante(s):
David Toscana, Tabajara Ruas e Nei Duclós
Mediador:
Márcio Pinheiro
Sala: Sala O Arquipélago
Local: Centro Cultural CEEE Erico Verissimo

Data: 9/11/2007 Hora: 15:00
Escritores fronteiriços
Participante(s):
Colmar Pereira Duarte, Cícero Galeno Lopes, José Édil Alves, Ricardo Almeida, Nei Duclós e Dagoberto Mendes
Mediador:
Carlos Appel
Sala: Sala O Retrato
Local: Centro Cultural CEEE Erico Verissimo

Data: 9/11/2007 Hora: 16:30
Meu vizinho tem um rottweiler (e jura que ele é manso) - Record - Selo Galera
Participante(s):
Tabajara Ruas e Nei Duclós
Local: Praça de Autógrafos
Área: Sessão de Autógrafos

Data: 9/11/2007 Hora: 17:00
A nova poesia não nasceu nem vai nascer
Participantes:
Marco Celso Viola, Nei Duclós e Dilan Camargo
Sala: Sala O Retrato
Local: Centro Cultural CEEE Erico Verissimo

RETORNO - Hoje, dia 7/11/2007, às 20h30min, meu amigo e conterrâneo Ricardo Peró Job vai autografar seu livro solo de estréia, "A Sereia do Luminoso", que os leitores do Diário da Fonte conhecem pela resenha que publiquei aqui. Pois o texto originalmente escrito para o DF serve de apresentação para o livro, que tem capa de Ricky Bols. O coquetel de lançamento será na Secretaria da Cultura, Juventude e Esporte de Uruguaiana. "A sereia do luminoso" (Editora Evangraf, Coleção Holoedro), é um livro que reúne 19 contos da melhor literatura.

6 de novembro de 2007

ANTES DO BAILE


Nei Duclós (*)

As multidões não estavam soltas, impregnando cidades, ou forrando estradas, como agora. Eram reunidas em lugares fechados, e na maior parte do tempo ficavam em repouso. Pessoas de todos os tipos e lugares obedeciam a fila, ou permaneciam lado a lado, mudas, extáticas, a um braço de distância uma da outra. Usavam uniformes de cores neutras, um azul marinho nas blusas e casacos, um filete branco nas mangas. Golas engomadas exageravam na pontualidade.

Os olhares eram duros, fixos, e os corpos se submetiam à posição de sentido ou se debruçavam sobre carteiras, mesas, balcões. Somavam centenas, milhares, milhões, mas eram invisíveis. Onde se escondiam, enquanto a sesta devorava a tarde, ou os descampados sofriam o jugo dos nossos passeios secretos, quando praticávamos tiro nas andorinhas? Embaixo de qual pedra se situavam? Fugiam dos nossos crimes que atulhavam quintais imensos sem testemunhas? As massas habitavam lugares excêntricos, longe de nossa vista, à espera de um sino, um alarme, um bater de palmas, para se desencadearam em ruidosa e irresistível avalanche.

Ocupávamos então nossos postos na saída dos colégios das freiras. Sapatos de seda, adornados por laços de fita violeta, transportavam as meninas. Pernas amaciadas por meias de puro cetim marchavam sob o surdo farfalhar de saias cada vez mais próximas do sonho. Aquele mar de mulher saía compacto abraçando cadernos e livros e tapando a boca na hora das confidências. O riso era abafado, como é comum até hoje entre garotas chinesas e coreanas. Tínhamos algo de oriental. O cabelo escovinha coroava a rigidez dos pescoços. Os guarda-pós desciam até os pés.

A reunião do estado-maior era ao redor de uma garrafa de soda-laranja, depositada sobre um tampo de mármore ou fórmica. O garçom às vezes chegava perto para oferecer algo ou simplesmente recolher os copos. Exibia distinção envergando gravata borboleta, enquanto o grande guardanapo pendia no braço como um pingente de ouro. Moleques, pedíamos mais uma “dose” e assim corriam as horas até chegar o momento da súbita procissão dos habitantes.

Aglomerações bem vestidas saíam dos estádios. Uma recorrente fábrica de gritos encerrava as sessões de cinema. Comícios desaguavam num tropel de votantes convictos. Um deslizamento silencioso tomava conta de calçadas e praças depois da missa matinal. Grandes brigas atraíam gigantescos ajuntamentos. E os corredores improvisados dos parques de diversões tinham o poder da imantação coletiva.

Em todo lugar havia gente saindo pelo ladrão. Mas o planeta estava vazio. O vento batia nos eucaliptos no colégio abandonado. O melhor amigo se mudara para sempre. O professor insubstituível não voltaria no fim das férias. A menina dos olhos namorava firme com alguém.

À tardinha, as multidões se recolhiam, para depois sentarem na frente das casas, a receber visitas. Saíamos então em direção ao centro, contando cadeiras preguiçosas. Em cada uma delas, alguém iria dar um aceno. Pois esse era o nosso objetivo. De toda aquela imensa quantidade, uma só pessoa sairia do miolo do devaneio para chegar até nós. Pisaria macio como fada em baile de formatura. Nosso único trabalho era tirá-la para dançar.

RETORNO – (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia seis de novembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

4 de novembro de 2007

CHUTAR O BALDE


O bom-mocismo pensante não inclui nada que seja estranho ao equilíbrio dos gestos e expressões que representam os grandes pensadores. Quais são esses gestos e expressões? Todos conhecem e são desdobramentos da obra “O Pensador”, de Rodin. O cenho carregado, a mão semi-fechada com o dedo indicador estendido acompanhando a linha da boca, o tronco levemente inclinado, a ruga significativa na testa. Para que servem? Para orientar o vulgo sobre quem dá as cartas na produção de pensamento.

Você até pode imitá-los, mas vão deixar você a ver navios pois ninguém vai assestar as câmaras para seu rosto carregado de insights, a não ser que esteja acompanhando com o olhar alguém que está deitando e rolando nas palavras. Normalmente, quem é platéia clona o proferidor de “coisas como um todo”, ao mesmo tempo em que lança um olhar assassino para quem está ao redor. Significa que o grandalhão bem pensante está falando para esse marmanjo da platéia, que servirá de reprodutor daquelas idéias para a massa ignara que o acompanha fisicamente, repartindo lugares na fila do gargarejo.

Portanto, não se iluda achando que vão prestar atenção em você, especialmente se você chutar o balde e tentar desmascarar essas nulidades bem remuneradas. Vejam o caso do eminente filósofo tucano. Ele diz neste domingo no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, que “o bom momento que vive a economia brasileira acentua, por contraste, a fragilidade das instituições democráticas no país”. Começa seu artigo com a expressão “faz pensar”. O que faz pensar é quanto ele ganha para escrever barbaridades. O que chama de fragilidade das instituições democráticas não passa de ditadura. E o que chama de bom momento da economia nada mais é do que superconcentração de renda, negociatas internacionais, sucateamento da poupança nacional, entre outras sacanagens.

Hugo Carvana, que recentemente deu entrevista para a Angélica do alto de sua mansão rural, escreve no mesmo caderno que “O cinema, para mim, não é resultado de um processo intelectual; não pretendo mudar o mundo”. O ator de “Os fuzis” e o reiterador da figura do malandro no imaginário brasileiro nem precisava assinar esse atestado da pior ideologia. O cinema é sim resultado de um processo intelectual, senão não teríamos nenhum dos grandes cineastas. E o cinema já mudou o mundo, então Carvana ficou de fora.

Mas Carvana é necessário para confirmar a miséria filosófica em que estamos mergulhados. É importante dizer todos os dias, minutos, horas e segundos que o capitalismo, que transformou todos nós em mercadoria, é irreversível e onipotente, não adianta espernear. Certo? Não chute o balde lembrando que “Os Fuzis”, de Ruy Guerra, é sobre a tomada de posição de alguns soldados que não se conformaram em ver a comida sendo impedida de chegar aos famintos do Nordeste. E que correu bala exatamente para transformar o mundo, para impedir as injustiças, impedir que nababos ostentando mansões cuspam em que está embaixo.

No mesmo caderno, outro sujeito escreve que Pelé “restará como uma das relíquias do getulismo”. Disse de maneira debochada, como se o Rei fosse mosca a ser estapeada pela mediocridade, como se Getúlio Vargas fosse o resultado das defecções do articulista. Aliás, há uma má vontade dos bem pensantes contra a Copa do mundo no Brasil em 2014. A Copa deveria ser no Brasil muitas vezes, somos pentacampeões ou não? Mas eles gostam mesmo é do futebol inglês, tanto é que no esmo caderno debocham da Copa brasileira e publicam texto condoreiro sobre um time inglês. Adoram dizer football association. Enquanto desancam Romário e Pelé.

Sabemos assim para que servem os bem pensantes: para entregar o país soberano. E para que serve chutar o balde: para denunciar essa canalha e mirar bem no miolo deles, porque lá é que eles formatam essa merda toda.

RETORNO – Imagem de hoje: Nelson Xavier em "Os Fuzis", clássico do cinema intelectual e de confronto, de Ruy Guerra.

2 de novembro de 2007

DECÁLOGO URGENTE DE BOAS MANEIRAS


Algumas orientações para evitar ofensas inúteis aos semelhantes e assim garantir a sobrevivência da espécie:

1. Quando ligar para a casa de alguém, e outra pessoa atender, não pergunte se quem você procura está dormindo.

2. Se você encontrar um conhecido, não comente sua aparência, nem sequer diga “como você está bem”.

3. Também não pergunte onde ele está trabalhando “agora”.

4. Não faça de conta que você não escutou seu semelhante;não ignore seu interlocutor; principalmente para sobrepor ao que ele acaba de dizer algo que não lhe diz respeito nem nada tem a ver com a conversa.

5. Não lamente que seja crespo o cabelo da criança, da mulher ou do homem que você está vendo, pela primeira vez ou não.

6. Não clone seu interlocutor com algo que o anule; por exemplo, se ele disser que é escritor, não revele que você conhece um escritor igualzinho ou melhor do que ele, mesmo que isso seja verdade.

7. Retribua os favores, mas não retalhe; se a pessoa lhe estendeu a mão, não tente pagar com a mesma moeda ou dar-lhe o troco; qualquer favor é impagável.

8. Não demonstre insatisfação se alguém cumprir um compromisso com você; não deixe escapar que você esperava mais e que o Outro ficou devendo.

9. Não trate absolutamente ninguém como subalterno, dando-lhe encargos ou comparando-o à escravaria.

10. Não resenhe, ao vivo, a cores e ferozmente, o livro que outra pessoa diz que vai ler ou o filme que promete ver; não diga que você já usufruiu daquela obra todo o prazer possível que alguém já poderia ter.

RETORNO – Imagem deste post: Jab, por Hélcio Toth.

PASTORES DA LUA


Nei Duclós

Pássaros cercam o minguante na tarde morta
Não gostam da luz torta dessa tosca forma
Querem que suma no cinza antes da noite
Que desapareça em proveito das estrelas

Vésper se aproxima com vestes de seda
E não será o corpo azedo de uma fase feia
Que irá abafar a anunciação da festa.
São servas dos anjos essas aves de esporas

É um rodeio de asas armadas de relhos
Que tecem mortalhas num berrante de teias
É um estalar de ossos, uma troca de medos

Mas a lua que hoje está ferida no queixo
Prepara a vingança quando romper a cerca
Na noite em que explodir como lua cheia

RETORNO – Imagem de hoje: foto de Anderson Petroceli. O poema é a legenda da foto.

1 de novembro de 2007

O JOGO DOS SETE ERROS


A Scotland Yard foi condenada pela Justiça britânica não por matar a sangue frio e sem nenhum motivo o brasileiro Jean Charles de Menezes, mas porque colocou a população (ou seja, os ingleses) em risco. A polícia londrina argumenta que foi um erro, mas não um crime. Como Charles levou sete tiros na cabeça, então foi sete vezes o mesmo erro. Os caras deram o primeiro tironaço, foi um erro, ok. Aí deram o segundo. Mais um erro. Mais outro e assim por diante. Erraram, erraram, erraram, erraram. O fato do cara ser destruído numa estação de metrô não conta. O que vale é o quanto os cidadãos ao redor correram perigo na hora do fuzilamento.

No fundo, não há culpados. São todos inocentes e voltaram ao trabalho numa boa. Quem foi processada foi a polícia “como um todo”, ou seja, ninguém. Você não pode colocar na forca a Scotland Yard, pois a forca era a condenação mais óbvia para quem acaba com a vida de um inocente pelo uso prepotente da força. Agora, a gracinha absoluta é a fotomontagem entre os dois rostos, um de Charles e outro do terrorista procurado. Como eram parecidos, não é inglesinhos de merda? Como toda essa gente do Terceiro Mundo é igual, parecem até japoneses. Desafio: veja as duas metades de rosto e ache os sete erros, as sete diferenças. É simples: o cara da esquerda não tem sete balaços na cabeça.

A questão é o seguinte. Já ouviram falar de um errinho desses em relação a um americano em Londres? Jamais confundiram um americano com o terrorista nem colocaram sete bitucas no côco dele. Mas como é um brasileiro, ou seja, ninguém, então o negócio é matar. Mas chega dessa merda. Nem ia comentar, mas a coisa vai tão fundo que chega a dar nojo. A verdade é que a polícia, mais ou menos em um país ou outro, mata sem parar. Aqui no Brasil, nem se fala. É a polícia que mais mata no mundo.

Aqui outros crimes são punidos sem dó. No Brasil você pode matar, esfolar, estuprar, foder, roubar, chantagear, seqüestrar, enganar mentir. Mas não pode ter cabelo crespo. Ou não pode conviver com alguém que tenha cabelo crespo. Porque sempre vai ter um boi corneta para punir esse crime, dizer que ele é crespo, não é mesmo? Tão crespinho, que coisa. Você matou, está limpo, mais limpo do que policial londrino. Mas não invente de ter cabelo crespo. Notam, apontam, indicam, jamais deixam escapar: puxa, eu conheci alguém assim também com o cabelinho bem crespo. Cabelo rebelde, não é? Cabelo ruim, mas ruim mesmo. Precisa fazer uns apliques, umas escovadas, aí fica normalzinho.

Não se trata de deixar para lá que passa. É uma pressão hegemônica, plural, vinda de todas as partes, na parentada, na vizinhança, no comércio. Qualquer conversa en passant e lá vem o comentário. Que crespo esse cabelo, puxa. Porque o cabelo normal é o liso e de preferência louro. Crespo quer dizer desvio de conduta, raça triste, negrada. E como pode ser assim tão crespo, por que crespo meu Deus, olha só, ele ou ela tem cabelo crespo.

Como o cabelo nos países baixos de todo mundo é crespo, fico imaginando como vou começar a reagir e dizer para cada um que cuide da sua própria crespice. Mas não vá andar por aí com seu cabelo crespo. Multidões vão se aglomerar gritanto: é crespo, crespo! Se for pegar o metrô em Londres, mesmo que tenhas cortado o cabelo, algum cara de barata vai atirar milhares de vezes contra essa invasão. Toma, toma, toma, toma, cabelo crespo. Viu no que dá ser tão crespo crespo crespo?

RETORNO – Imagem de hoje: foto montagem da política inglesa misturando Hussain Osman com Jean Charles. Matei a charada: ambos têm cabelo crespo!