31 de agosto de 2007

ÁGUA PURA PARA O PEREGRINO


Transcrevo hoje uma pequena jóia da memória, de autoria de Clovis Heberle, jornalista e escritor. É um passeio que ele faz junto com Dedé Ferlauto até a casa do poeta Barbosa Lessa, em Camaquã, interior do Rio Grande do Sul. Aqui está resumida toda a história de uma geração que se insurgiu contra a violência invasiva de inúmeras maldades e tentou criou algo fora do circuito. É uma narrativa enxuta, primorosa e que atinge o alvo: recupera o que foi construído nas últimas décadas e joga para frente o que podemos inventar nesta vida que ainda foge da natureza apesar de tantos alertas. A foto mostra Dedé bebendo a água pura que tanta falta faz para todos nós. Atenção: o texto a seguir é de Clovis Heberle.


"UM DOMINGO COM DEDÉ


Clovis Heberle


Numa dessas noites de verão, na cozinha da casa dos Ferlauto na rua São Luís, entre uma e outra fatia de pão integral quentinho (feito pelo Dedé) com queijo e suco de uva, decidimos passar o domingo no sítio de Barbosa Lessa, no interior de Camaquã. Lessa era um dos inúmeros frutos cultivados na fértil lavoura da amizade do Dedé. A cada sábado ele a regava na feira ecológica da José Bonifácio, em longos papos com o poeta, folclorista e então produtor de erva-mate e travesseiros aromáticos, que ali vendia os seus produtos e encontrava os amigos.

Partimos bem cedinho, pois a viagem seria longa. O dia, de sol sem nuvens, estava perfeito. Cheguei antes das oito horas, e a Usha, o Dedé e a nossa amiga Ana Zilles já estavam me esperando. Colocamos no porta-malas macarrão, molho de tomate (preparado pelas gurias), água mineral e um bom vinho tinto chileno para ajudar no cardápio do almoço.

Até Camaquã, o único incidente da viagem foi uma tentativa de estrangulamento: Ana, sentada ao meu lado, começou a sufocar, apertada pelo cinto de segurança. Olhei para trás mal consegui conter o riso: com cara de sádico a la Jack Nicholson, Dedé puxava o cinto, enquanto Ana, quase sem ar, tentava concluir uma frase. Gargalhamos todos. O papo estava sério demais para uma bela manhã de domingo na estrada, e ele o encerrou à sua maneira.

Lessa havia dado todas as informações para chegarmos até o sítio. Depois de Camaquã a estrada de terra não tinha nenhuma sinalização, e volta e meia parávamos para perguntar onde estávamos. Conseguimos identificar a porteira do sítio e seguimos por uma estradinha estreita onde mal cabia um carro - depois ficamos sabendo que aquele caminho já não era usado há meses.

Algumas descidas e subidas eram tão íngremes que tememos não conseguir passar. Em alguns trechos, os galhos das árvores roçavam as laterais do carro. Mas o Fiat Mille (e o seu experiente motorista) superaram todos os obstáculos, e finalmente chegamos à casa de madeira, construída no alto de um pequeno vale. Da varanda sevê um riacho, que rola pelas pedras e forma um pequeno lago depois de despencar em cachoeira. Aquele sítio comprado por Barbosa Lessa depois de sua aposentadoria era a realização do sonho de voltar a viver na sua terra natal sem precisar parar de pesquisar, de ler, de criar e de se comunicar com seus amigos residentes na capital.

O casal morava no meio de uma área de mata nativa, onde cultivava e processava artesanalmente erva-mate e colhia plantas aromáticas na mata virgem para a fabricação de travesseiros. Aos sábados viajava até Porto Alegre num jipe Lada Niva para vender o seus produtos e encontrar os amigos. Perto da casa principal, Barbosa Lessa tinha o seu “escritório” - uma casinha de madeira cheia de livros, com uma janela voltada para o vale, onde podia ler e escrever sossegado, desfrutando de uma paisagem belíssima.

Os abraços e beijos dos nossos anfitriões foram interrompidos por gritos guturais vindos da mata. Rindo, o poeta explicou: são os bugios dando boas-vindas a vocês... Naquela mata virgem viviam bugios ainda em estado selvagem, que se alvorotavam ao ouvirem sons diferentes dos que estavam acostumados.

Quando entrávamos na casa com os alimentos, Nilza, a mulher de Barbosa Lessa, nos deteve, dizendo: “Tudo bem com o macarrão e o vinho, mas aqui não há ncessidade de água mineral engarrafada”. Em seguida nos levou até uma fonte de onde jorrava água para uma bica, saída da terra, fresquinha, sem qualquer impureza. Uma bebida rara.

Máquina fotográfica na mão, desci por um caminho entre as árvores até a beira do riacho para fazer fotos da cascata. Estava com pouca água, depois de três meses de estiagem, mas mesmo assim impressionava. Lá em cima, piscinas entre as pedras. Embaixo, as águas límpidas escorriam entre as árvores, toda esta beleza no quintal de casa. Dedé chegou apoiado num cajado, como se tivesse peregrinado léguas e léguas para chegar até ali. Se agachou e bebeu a água da sanga com as mãos em concha.

O almoço foi um banquete. Degustamos com vagar, quase em silêncio, o feijão com arroz, carne de panela e legumes preparados no fogão a lenha pela Nilza. De vez em quando Dedé exclamava “hummmmm, hummmmmm”, o melhor elogio que conseguia fazer quando gostava muito da comida. Bebemos o excelente vinho chileno, mas fiquei encantado mesmo pela água da fonte. Passei o dia bebendo. Tomei um porre daquela água.

Depois do almoço passeamos pelo sítio, envolvidos pelo carinho do Lessa e da Nilza. Foram horas de felicidade, paz e harmonia naquele pequeno paraíso.

Nas fotos, imagens para lembrar de um Dedé despreocupado, risonho, moleque, dedicado ao que mais gostava na vida: dar e receber afeto."

RETORNO - Imagem de hoje: Dedé Ferlauto, fotografado por Clovis Heberle.

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