4 de agosto de 2007

O ESCRITOR FANTASMA




É possível que Lula não estivesse mentindo quando disse recentemente que o caos aéreo o pegou de surpresa. Para contrapor essa declaração, a Folha lembrou neste sábado o longo artigo publicado na Gazeta Mercantil em 2002 e assinado por Lula, onde ele define o sistema aéreo brasileiro como terminal. Era época de campanha eleitoral e o texto acabava com um “até quando, senhor presidente?” (referia-se ao FHC) . Mas Lula realmente poderia não saber do caos aéreo, um dos muitos assuntos em pauta na época e não o mais urgente e prioritário, segundo os critérios da campanha. É porque o texto foi escrito por um ghost writer.

Talvez o atual presidente nem tenha lido. Alguém da sua equipe redigiu e outro veiculou. Lula estava ocupado com outras coisas. Não é do tipo, por falta de hábito, tempo e formação, que batuca nas teclas uns três ou quatro mil caracteres para fazer uma análise ou dar sua opinião. Nem Lula nem a maioria dos líderes brasileiros. Para isso existe o ofício de ghost writer.

Já passei por essa experiência. Numa empresa que trabalhei, escrevi todos os editoriais da newsletter, tanto do presidente, quanto dos outros diretores. Numa grande corporação, meus textos foram parar na grande imprensa, devidamente assinados por pessoas eminentes do mundo empresarial, e mais tarde em antologias em forma de livros. Uma vez fui a um lançamento da Livraria Cultura e lá estava o grande empresário autografando meus textos. Mas não eram apenas artigos de fundo, editoriais. Eram discursos, análises e longas conferências.

Eu era brifado pobremente. Quem me encomendava dizia coisas como: “A globalização é irreversível”, e fazia aquela pose de produção de pensamento. Na época, estudava História, e aprendera a perguntar e ouvir e a melhorar a escrita. Saía coisa boa. Os conteúdos normalmente eram sobre essa onda avassaladora da direita dita esclarecida, esse discurso privatizante, antitrabalhista e anti-tributação, tão comum em entidades patronais. Cheguei a acreditar um pouco que o Estado era obsoleto e pesadão demais e que o mercado poderia dar um jeito em tudo. Depois vi o que fizeram com esse discurso, formatado nas universidades e pelos jornalistas. Foi para tungar o patrimônio nacional.

Mas teve momentos divertidos. Quando, por exemplo, a grande e poderosa ministra do Comércio da China veio visitar a entidade e deu de cara com um diretor desancando os produtos chineses. Eu tinha sido o autor do texto, a pedido da cúpula, que não queria dar moleza para os piratas. A ministraça saiu bufando. Da outra vez, num evento sobre cinema, coloquei a indústria audiovisual como estratégica, vitrine da indústria do país. Até o Barretão gostou, dizem, além do Aníbal Massaini, que chegou a me convidar para escrever um projeto para ele. Não nos acertamos no preço e ficou por isso mesmo. Mas “meu melhor auge”, como dizia aquele maratonista, foi ter escrito o discurso de abertura de um grande centro cultural e depois fazer a reportagem sobre o evento. No meio do parágrafo, abria aspas...para meu próprio texto. Isso sim é dramaturgia.

Não era um emprego como qualquer outro. Era a entrega diária da alma, como acontece sempre em assessorias e também na grande imprensa. Você consegue, existe uma lógica, até mesmo um esboço de uma ética. Você compõe o discurso, o que fazem com ele são outros quinhentos. Ou são os mesmos? Fatalmente os mesmos. Mas o escritor fantasma é um lugar comum na vida pública e a maioria dos textos que você lê, esses artigalhões que tomam conta dos espaços editoriais dos jornalões, são feitos pelos escribas.

Contra ou a favor? É a velha piada de Assis Chateaubriand, que pedia um editorial. Há também a célebre história do Otto Lara Resende, que escreveu a carta de demissão de Walter Clark e a carta de resposta de Roberto Marinho. Ou do Castelinho, acho, em que de manhã atacava o jornal adversário e à tarde replicava seu próprio editorial, pois trabalhava também no concorrente. Várias vezes fui pesquisar um assunto e me confidenciavam que tinham um belo material à mão e...me mostravam o que eu escrevera anos antes. Eu era minha própria fonte.

Quem fez o texto que Lula publicou na Gazeta? Quem escreveu, sabe.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: a arte suada de Helcio Toth, na volta do Metrô depois da greve. 2. Agora podemos saber quem é Ral, o artista que Urariano Mota destaca no La Insignia deste domingo. Podemos enfim dizer: somos Ral desde criancinha. Um belo perfil, um texto esclarecedor. 3. Li no sábado a entrevista que Decio Pignatari deu para a Folha. Ele acha o Drummond um intelectual mediano e considera o livro Sagarana, de Guimarães Rosa, uma mistura entre Rui Barbosa e Euclides da Cunha. Diz que não concorda que existam categorias de escritores, mas "níveis". O repórter não perguntou, mas fatalmente ele estaria no primeiro nível. Que coisa. Disse também que o Ferreira Gullar queria ser o "Pablito Neruda" do Brasil. Impressionante.

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