16 de março de 2005

A IMPLOSÃO DO CENÁRIO

"Longe do Paraíso" é uma exposição de pintura em busca da divindade

Nei Duclós

Não existe reconstituição de época. O que existe é a disposição de elementos do cenário em função da narrativa. "Longe do Paraíso", de Todd Haynes, é a composição de um ambiente que implode ao fazer o cruzamento com seu oposto. A dona de casa que serve de modelo para a publicidade e confunde seu vestido com as cores da parede descobre que está prisioneira de lustres, bibelôs, sofás e cortinas. O arco que a sustenta, o marido, abdicou da sua função, sufocado pela cela construída como um evento social.

Ao refugiar-se no jardim, para expressar sua dor, ela é capaz de seduzir-se por um cenário diferente, que começa nas folhas do outono e deságua na dança enfumaçada de um bar da periferia. Sua busca da salvação está definida na opinião do seu jardineiro, que enxerga a divindade na arte moderna - vista aqui como transgressão do cenário. Enquanto as pessoas "normais" confessam seu desagrado por Miró e invocam Michelangelo parta justificar seu preconceito, ela descobre que Deus pode também estar fora da arte clássica.

O lugar onde ela habita, que era uno graças ao hábito e o olhar contaminado pelo Mesmo, dissolve-se junto com o casamento. Primeiro, os elementos que eram poucos multiplicam-se, como uma revelação do olhar abismado pela surpresa e a descoberta. Depois, impedida de assimilar tudo o que acumulou e de partir para o lugar que descobriu, seu mundo desmorona e o que era diverso torna-se azul, ocre, quase sépia. A felicidade,que era a harmonia da repetição dentro da diversidade das cores e formas, é substituída pelo sofrimento, que é o cenário múltiplo virando uma grande e única massa espessa. A possibilidade do amor é representada pelo lenço lilás, aquele que voou por cima do telhado e foi encontrado pelo Outro.

O marido que procura libertar-se do casamento que entronizou o Mesmo, foge para o Outro que é sua imagem no espelho. O marido perde a luta contra o cenário e dele se retira para continuar com sua maldição. Ela entrega-se à luz que as flores brancas acenam como uma trégua.

O amor inter-étnico e o homossexualismo são apenas as formas de rupturas de cenários hegemônicos. Quando a vida é composta de objetos que ditam os destinos, a transgressão é a única saída para o que é humano. Mesmo que essa ruptura seja involuntária, de seres colocados contra a parede, fica evidente que o drama é render-se ao pincel que determina os papéis e que a emoção verdadeira é a viagem em direção ao oculto e desconhecido - o bairro negro, a estrada de ferro, a música que sugere o desespero e que não faz parte da falsidade representada pelas imagens. A verdade surge num flagrante no escuro, numa dança acanhada, numa visita noturna. O amor que escapou do cotidiano assoma na despedida e dissolve o horror da repressão, exercida pela tocaia de quem faz parte do cenário de badulaques efêmeros.

. O cinema existe em função do que lhe escapa. Por mais objetos que componham sua trama, por mais personagens que o povoem, por mais emoção que desperte, ele só se revela inteiramente quando a palavra soa depois que o filme acaba. A palavra sobre o filme é o sonho marginal do cineasta que pinta um afresco como um Mestre insuperável. Mas ela se revela só quando levantamos da cadeira, quando perdemos enfim o filme todo para reencontrá-lo, inteiro, num texto insolúvel.

RETORNO - Uma gripe que não vai embora, um dinheiro que não chega, um verão que se apressa em nos deixar, umas palavras que não descem, um país que não anda, uma vida que não desata: tudo conspira para a não renovação das edições do DF. Mas hoje republico texto-base do meu futuro livro (futuro, mas já escrito) sobre cinema.

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