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23 de março de 2005
ARMAS NO QUARTO DE DESPEJO
Espingardas de dois canos, revólveres, pistolas, pentes de balas, cartuchos sempre existiram na minha casa, estocados num quarto especial, o de badulaques. Jamais foram usados contra ninguém. Era armas de caça, de tiro ao alvo, de comemorações quando havia necessidade (como a passagem do ano novo). A gurizada aprendia cedo a atirar. Gastei muito tiro de repetição das automáticas em caixas velhas de goiabada, nas pescarias. Raramente acertava o alvo. Nas caçadas de perdiz, meu pai gostava de oferecer o bicho bem perto, no chão, de bandeja, como dizia. Era preciso acertar na cabeça para não estragar o almoço. Havia também longas sessões de carregamentos de cartuchos, feitos minuciosamente com bucha, chumbo e pólvora. Ninguém saiu atirando dali. Quando parte minha geração optou pela luta armada, eu sabia do que se tratava. Falei: conheço as armas, quero distância delas. Não vou usar o que aprendi na infância para atirar em gente. A guerrilha foi uma furada, mas meu pai, caçador que nos ensinou a respeitar a artilharia, continua na minha memória como um exemplo.
INERMES - A palavra inerme aparece muito na literatura de memórias dos militares, acervo no qual mergulhei por vinte anos, fascinado pelas histórias e pela proximidade com o ethos paterno. Descobri o senhor Elo Ortiz Duclós ali, conversando, participando de guerras (foi da Brigada Militar do Rio Grande do Sul), resgatando personagens. Inerme quer dizer desarmado. É o que somos hoje, uma população inerme (que rima com verme, que lembra imóvel, parado, sem forças nem resistência). Não reajam, nos ensinam, e lá vamos em massa para o matadouro. Num dos livros que li sobre a revolução de 1924, está descrita a cena magnífica de um tremor de terra em São Paulo. O barulhão provocado pelo evento fez com que os moradores da cidade saíssem atirando a esmo, pois acreditava-se em alguma investida dos muitos inimigos à espreita. Era uma época, como a nossa, de bandidagem, e oposta à nossa, de revolução. Não existe mais revolução porque acabaram-se os revolucionários. Foram todos mamar no Planalto e franzir o nariz para mostrar como são tigrões diante das câmaras do Jornal Nacional. Pegaram em armas só para fazer durar eternamente a ditadura que nos consome. Justificaram a repressão e depois aderiram aos inimigos ao entrar no jogo do poder. Fingiram que se revoltavam, mas no fundo queriam as mordomias do poder, para poder chorar de emoção em visitas oficiais a Havana. Lambem botas em Washington, onde garantem que são bons meninos e vão nos arrochar até o osso para que tudo continue a mesma coisa. Agora vão assinar a lei do abate, que reforça nosso papel de paga-pau do império que quer conflagar totalmente o continente sul-americano. Veja qualquer cena de qualquer filme americano hoje: o Mal está armado, torturando e matando. Enquanto nós, espectadores inermes, estamos à mercê da bandidagem e tendo como único e grande apoio, Deus. Enquanto isso, a extrema direita, que continua no poder de fato, afia as garras para voltar ao governo.
REFORMA - Não entendo a reforma ministerial. Estão negociando cargos, ou seja, verbas. Quem vai pegar o butim aonde. Aí essa excrescência que é o Severino (que a mídia adora, enfim encontraram o seu Ratinho no Congresso) vem a púlpito para ameaçar, pois quer uma porção para seu partido. Os jornalistas ficam semanas, meses, fazendo matéria sobre o assunto, quando deveriam denunciar a grande porcaria que é isso. Um ministério deve ter comando técnico. O que um político vai fazer na Educação, na Comunicação, nos Transportes a não ser exercer seu domínio sobre a verba disponível? (um americano descobriu que tomar posse é uma expressão essencialmente brasileira). Os ministérios deveriam ser geridos pelos técnicos, que implantariam projetos votados publicamente. Saneamento básico, salvação da rede rodoviária e criação de vasta, extensa e moderníssima malha ferroviária deveriam ser prioridades. Outra: construção ou reforma de prédios escolares da educação pública. Mais uma: disponibilização de sistemas completos de televisão e banda larga para Internet para toda a população, em todo o território nacional. São coisas simples como idéia, e complexos operacionalmente, que precisam de grandes recursos e gente capacitada. Mas ficam perdendo tempo com gracinhas diante das televisões, comemorando os vinte danos de democracia (quá, quá, quá), um regime espúrio abençoado pelo Jarbas Passarinho e o José Sarney na sua origem, e que nada mais é do que a consolidação do regime autoritário e ditatorial de 1964. Regime do qual usufruem todos os inimigos do trabalhismo. Dá vontade de dizer: chumbo grosso neles. Ou será que existe prazer coletivo em ficar vendo os falsos menores matando e se drogando em horário nobre, debochando da nossa enorme incapacidade de nos governar com o mínimo de eficiência? Ei, inermes, estamos cheirando agora para depois ir atrás de você e sua família!
CAÇA - Finalmente a perdiz, entocado pelo cachorro, levanta vôo no pampa. Meu pai mira a arma 32, de tiro mais leve, melhor do que a calibre 12, que é para matar capincho. Está de chapéu de feltro, casaco, calça posta nas botas encharcadas de barro. O cão ainda está estático. O caçador segue o vôo com a mira. O cano obedece a ondulação suave da ave em fuga. O tiro seco então ecoa no campo. O baque surdo do pássaro no chão desencadeia a trilha nas patas afiadas de Pingo, o cão ensinado. Meu pai acertou em pleno vôo.O matraquear da perdiz sucumbiu diante do rei daquelas terras. Dentro do carro, de olhar cruzando o vidro, meu coração aos pulos grita: Matoou? Matoou? Meu pai volta seu olhar profundo em minha direção. Ele sorri. A arma fumegando descansa em seu braço. A outra mão segura mais um cartucho. Uma grande nuvem azul, chumbada pela luz do entardecer, toma conta da paisagem. O carro fica estacionado no acostamento, na curva da carreteira. Pingo late para Deus, que está a cavalo.
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