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21 de março de 2005
PALAVRAS COM PODER
Assim como não existe um John Ford "menor", não pode existir jamais um Inácio Araújo maior. Habituado ao próprio estilo, o crítico da Folha usou essa expressão, na sua coluneta da Ilustrada de domingo, para divulgar O Aventureiro do Pacífico, que Ford filmou com John Wayne em forma de comédia romântica e de costumes, mas que no fundo é uma trama complicada que tenta dar um perfil aos conflitos entre os povos depois da segunda guerra mundial. Tudo encanta em Ford, cineasta sempre maior, hoje confinado ao Programador do Traço, essa invenção sinistra da televisão brasileira, que decide apresentar filmes importantes depois que todo mundo desiste e vai dormir. Ford deveria ser obrigatório, diário, apresentado em horário nobre. E não um refém da nossa insônia, retalhado pela publicidade criminosa, a mesma que impera impunemente em todas as mídias, para desespero espiritual do povo que a sustenta.
SAGRADO - Do que trata O Aventureiro do Pacífico? Um grupo de americanos decide ficar numa ilha da Polinésia, que conquistou aos japoneses com a ajuda da população local. O convívio entre as diferenças é o que dá o tom do filme, apesar da maneira caricata com que é apresentada essa diversidade. Faz parte da cultura americana, a de reduzir o comportamento alheio a alguns gestos de subserviência. Lá estão as domésticas japonesas servindo ao patrão americano, os chineses broncos que tentam jogar no caça-níquel estragado, as nativas se oferecendo aos machões gringos. Mas isso é John Ford ou simplesmente América? Prefiro achar que Ford obedece ao cânone godardiano de que o cinema é a verdade 24 vezes por segundo, mesmo que, nele, essa verdade seja apresentada sempre pelo mito, ou pela versão artística. Ford é o respeito ao sagrado, representado pela devoção à rainha morta e sua legítima descendência, fonte de estabilidade e da paz na diferença; é o destaque à tolerância, representado pelos filhos mestiços, pelo governador negro latino, pelo guarda irlandês bêbado; é a preferência à representação do conflito em detrimento de coisa muito pior, a guerra, como provam as cenas de sua especialidade, as brigas de bar. O que faz a trama andar é a chegada da americana afetada de Boston, solteira, que acaba conquistando e sendo conquistada pelo celibatário John Wayne. A seqüência final, em que Wayne finge dar uma surra na amada, que se entrega aos seus encantos, culmina com o machão carregando as malas em direção à nova casa, numa referência óbvia à mútua concessão que todo casal faz ao abraçar o casamento. Você pode pegar cada detalhe desses e desancar Ford, mas se enxergar o conjunto, a obra magnífica que é esse filme, como todos os outros que o grande cineasta fez, verá que o cinema já teve sua época de esplendor, quando havia alegria em ver e quando os princípios (amor, amizade, paz, sinceridade, luta, respeito) nos eram apresentados em forma de arte. Cinema é civilização e sua decadência define o atual estágio de miséria a que estamos submetidos.
ZERO - A televisão brasileira zera a cidadania a cada fim de semana. A mediocridade triunfante e assassina, que coloca o microfone por horas na boca de imbecis; os filmecos bandidos, repetidos à exaustão nos melhores horários; a apelação ao Falso Bem, onde travecos dão aulas de moral, médicos comerciantes nos assustam com doenças crônicas, pastores evangélicos destilam sua baba, e palavras horrendas nos perseguem por todos os cantos, como a cerveja oficial do nananana, ou ser redondo é ser do bem. Sem falar no Faustão asqueroso. Por que me insurjo contra isso? Porque a TV aberta é a única coisa que a população brasileira dispõe. A TV cabo (que é outra choldra, cheia de propaganda e repetições) é para um minoria. Existem vastas porções do território em que se pega um ou no máximo dois canais. Ou seja, o que você evita com seu zap pagando cem paus ao mês é o pesadelo do povo inerme (desarmado) diante da bandidagem. Depois de tantos atentados, o cidadão brasileiro zerado acorda na segunda-feira sem nenhuma força, mas precisa sobreviver. Antes de ver onde pôs o chinelo, pergunta pela sua auto-estima. Foi-se pelo ralo. Somos, como prova a TV, gentinha, à disposição dos faustões, bigbrothers, gugus, hucks, raul gils da vida. O que pode nos salvar são as palavras com poder. Descubra quais são.
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