12 de setembro de 2004

O MENSAGEIRO DE BRONZE


Nei Duclós

Minha estréia no Diário Catarinense teve caprichada edição do jornalista Dorva Rezende, com belíssima ilustração de Samuel. O artigo está na edição deste domingo no caderno Donna. Vou participar uma vez por mês neste suplemento, graças à recepção de Dorva e do editor-chefe Claudio Thomas, responsável por um jornal que faz História aqui em Santa Catarina. A seguir, reproduzo o texto que já está disponível, para quem se cadastrar, no site do jornal.

HISTÓRIA - Maratona é mídia. No exemplo clássico, o mensageiro usa o fôlego e o físico para transmitir uma informação de importância estratégica: o desfecho de uma batalha e a necessidade de proteger o flanco desguarnecido da retaguarda. O esforço brutal do atleta não era só para chegar a tempo, como dar o recado certo, para que não houvesse dúvida sobre o seu conteúdo. Costuma-se apontar apenas causas físicas para explicar a morte do mensageiro logo depois de cumprir sua missão. Prefiro entender a morte de Filípides, o corredor, como a metáfora mais contundente da função do jornalista: o de colocar a vida na tarefa e sair de cena quando é plenamente realizada, para que a notícia, e não o mensageiro, seja o verdadeiro destaque. O primeiro maratonista fez História ao cumprir sua função de mídia (com perdão do anacronismo da palavra). Assim também o jornalismo, que só pode fazer História quando faz jornalismo e não quando ocupa postos-chave de testemunha ocular sobre fatos previamente escolhidos como momentos especiais. A História não pode ser vista a olho nu. A Revolução Francesa, por exemplo, foi inventada pelo gênio de Michelet, que, quarenta anos depois da Queda da Bastilha, desceu aos porões dos arquivos públicos e de lá tirou o tesouro de uma história sobre o povo francês e a radical transformação do mundo. É conhecido o fato de que não havia quase ninguém na prisão famosa, que mais tarde serviu de ícone de um tempo em transformação. Assim também a História da nossa Independência, inventada como incruenta pelo talento do diplomata Oliveira Lima, autor do clássico Dom João Sexto no Brasil. Faltam historiadores para compor a presença da guerra na História do Brasil. Com oito milhões e meio de quilômetros quadrados, o território foi conquistado palmo a palmo por nossos ancestrais, a ferro e a fogo, não apenas pelo brilho da diplomacia, que negociava nos fóruns internacionais o que tínhamos conseguido na marra. A Guerra da Independência, que ocorreu entre 1821 e 1823, teve batalhas de mais de quatrocentos mortos no Nordeste, segundo o relato do historiador José Honório Rodrigues na sua grande obra sobre os eventos que eliminaram o domínio português entre nós. É tida como obsoleta a História do momento histórico, tão hegemônica no império da imagem que nos domina. O que vale é a composição da História por meio das várias metodologias disponíveis, a cargo ou não de historiadores. Esse tecido invisível que se transforma em acervo do conhecimento humano está a anos-luz do que a mídia hoje entende como História.

PAUTA - A lição do maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima é que ele não estava programado para vencer, não fazia parte da pauta, totalmente voltada para outras expectativas. O que houve, primeiro, foi a surpresa do seu desempenho, que o colocou na ponta da corrida. Essa aparição sem nenhum aviso prévio trazia a mensagem de um país que pode se superar desde que se acredite no povo que ocupa o seu território. Mas essa notícia foi boicotada por outra, a do fim do mundo. No fundo, o ex-padre apocalíptico colocou Vanderlei no lugar a que estava destinado pela indiferença da cobertura. Roubou-lhe a glória, mas não a missão, que foi retomada com o espírito desarmado de um herói moderno, o que encarna a paz e reage com o perdão. Não ganhou ouro nem prata, metais de extração, mas bronze, que é uma composição humana a partir de tesouros naturais. Simbolizou portanto a independência de quem assume a responsabilidade e dribla as cartas marcadas da percepção. Esse é o desafio que o jornalismo deve entender ao convencer-se que está a reboque dos fatos que não obedecem a explicações prontas. A História é outro departamento e pode surgir numa curva, nas pernas de um atleta anônimo.

PASSAPORTE - Cumprir o próprio destino exige desprendimento e preparo. Abrir mão da ansiedade do reconhecimento, mas não da meta, parece ser o segredo de um novo tipo de sucesso, o que humaniza o protagonista e não o destaca pela exclusão em relação aos outros. Em plena agonia, Sérgio Vieira de Mello preocupava-se com a continuidade da missão da ONU no Iraque. Ele sentira o quanto o mundo poderia chegar perto da paz, desde que houvesse determinação para isso. A coragem nasce dessa força interior que combina o pânico de estar vivo com a necessidade de cumprir uma tarefa essencial, que seja a marca da nossa passagem pela terra. A predestinação apenas confirma o que o espírito humano criou para si mesmo: se queremos chegar ao destino, mesmo que nos joguem para o canto, é melhor estar disposto a dar a vida por essa missão. Ela vale mais que nosso corpo exausto e datado. E é o único passaporte para uma vida plena, a que não se deixa levar por decisões prévias, inspiradas na mesquinharia.

RETORNO - What is Brazil? perguntou um dia Charles Bronson. A resposta correta é: o Brasil é o site Fotogarrafa, de Marcelo Min. É impressionante: além de acompanhar o povo em Sampa, Min foi até o sertão nordestino e trouxe de lá não apenas fotos inesquecíveis (a das menininhas de vestido comprido rosa é de chorar) como denúncias, procissões, gente perdida deste país-continente, um material que merece estar em toda a imprensa. Sorte que a ficha dos editores começou a cair (sempre tem um dia em que eles acordam). A Carta Capital já está usufruindo do talento do nosso genial fotógrafo, um cara tão contundente e talentoso que tenta nos convencer que o Fotogarrafa é apenas enrolação virtual, o que é a única inverdade do site. A foto deste blog, em que estou abraçado a uma das minhas obras, as edições da revista Notícias Fiesp/Ciesp, é dele. O Diário da Fonte nivela pelo alto.

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