19 de setembro de 2004

O PAÍS EM FARRAPOS

O Brasil foi retaliado em postas para melhor ser servido à mesa internacional. Nações internas, divididas pela geografia e a História, disputam empresas e fazem guerra de impostos. Uma febre aftosa no gado do Pará é encarada como algo externo, até os russos lembrarem que tanto faz no sul como no Norte. A suspensão, por parte do império sangrento de Putin, das importações de carne e frango do Brasil, significa que teremos prejuízo na nossa atividade de exportar proteína enquanto a população briga por um pouco de farinha. Somos uma comunidade em farrapos, palavra que nos remete à semana que começa hoje, e que comemora o consenso gaúcho em relação ao tempo da Colônia, quando um povo levantou-se em armas e hoje sente saudade dessa luta.

DIVISÃO - Imagens da implantação do Estado Novo em 1937 mostram estudantes, em cerimônia cívica, queimando bandeiras estaduais. Hoje essas bandeiras tremulam, imponentes, a provar que vivemos num federalismo radical e que a União continua sendo um sonho distante. Temos antecedentes dessa divisão interna, que hoje serve ao coronelato da ditadura civil. Nosso território dividiu-se, por algum tempo, entre o Estado do Grão-Pará, que pegava toda a Amazônia e o Maranhão, com capital em São Luís, e o Estado do Brasil, que compunha-se do resto do país, com capital em Salvador. Depois da Revolução do Porto (segundo historiadores, a única guerra de libertação da Europa, que em 1820 libertou Portugal do jugo imperial com sede no Rio de Janeiro) enviávamos representantes regionais para as Cortes Portuguesas, que queriam eliminar a centralização do Brasil. Dividiam assim em porções para melhor dominar. Frei Caneca, por exemplo, foi um representante baiano nas Cortes. O sentimento regional tornou-se muito forte, já que cada estado da América Portuguesa era uma nação com representação própria na sede imperial, Lisboa. O Rio de Janeiro, com sua vocação para a neutralidade e de síntese nacional, foi a capital da integração até que o Juscelino Kubistchek deu-lhe um golpe de morte, fazendo a festa das empreiteiras e da inflação ao mudar a capital para o ermo do cerrado. Com o Estado Novo, a capital da República irradiou a imagem do Brasil soberano, tanto pelas ondas do rádio e pelas telas do cinema, quanto pela organização política. Em 1964, para que a direita tomasse o poder, foi preciso que alguns imperadores provincianos (os governadores da época) dos principais estados se unissem para acabar com a nação. Mas a retaliação foi adiada, pois os militares tomaram a rédea do processo e continuaram com a idéia de um Brasil unido, o que encheu de equívocos a integração. Esta, ficou totalmente ligada à idéia de ditadura.

MIGRANTE - Com um plebiscito, a Nova República de Sarney tentou implantar o parlamentarismo, o que consolidaria a federalização do país totalmente dividido. Mas o povo, que é carente da proteína atualmente exportada para outros países, mas não é trouxa, disse não. O presidencialismo venceu, mas só de onda. O que temos é um conjunto de republiquetas, todas com sentimentos nacionais exacerbados, e nem tente opor-se a essa idéia, pois todos dirão que são brasileiros, o que não é verdade. Ninguém é brasileiro. Todos são paulistas, baianos, mineiros, gaúchos, catarinenses. Em São Paulo, todo santo dia, me lembravam que sou gaúcho. Nos outros estados, é a mesma coisa. Para quem é migrante como eu, isso significa ser estrangeiro no próprio país. A argumentação contrária é que te tratam bem, te aceitam. Isso não basta. É preciso sentimento nacional, sermos o que o Brizola dizia em todos os discursos, compatriotas, compartilhando a mesma idéia de Pátria, e não apenas na propaganda ou na seleção brasileira. No fundo, a percepção de um Brasil unido é complicada. Parece que o tamanho do território, a complexidade da nossa realidade, a quantidade gigantesca de etnias e culturas que se cruzam, tornam impossível uma síntese. Mas temos cultura, experiência e História para tanto.

CASCUDO - A Semana Farroupilha, que chega ao auge neste próximo dia 20 de setembro, começou de fato, para mim, num churrasco ontem oferecido em Jurerê pelo meu irmão Elortiz, estudioso e entusiasta tanto da história gaúcha (com ligações profundas com as brigas castelhanas) como da História em geral. Fui presenteado por ele com dois volumes da magnífica História da Alimentação do Brasil, de Câmara Cascudo, um monumento cultural a essa complexidade brasileira a que me referi acima. Hoje a Semana continuou quando me levantei cedo no domingo para assistir ao Galpão Crioulo, programa de música nativista da RBS e que deveria ganhar horário nobre, pela enorme quantidade de informações sobre o que está pegando na cultura do Rio Grande do Sul, que mobiliza multidões e convoca uma geração após a outra para algo impensável em outros recantos. Meu Rio Grande é o único lugar, hoje, onde a História é tema permanente de música popular. Como sou gaúcho urbano, e mais ligado às águas do que à terra, não montarei a cavalo (que aliás, é uma arte que desconheço totalmente) nem desfilarei com bandeiras tremulantes. Ao contrário, como sou implicante, vou lembrar que a festa reduz-se às lembranças do século 19, já que o século 20, quando os gaúchos lutaram entre si e contra os paulistas, ainda está muito vivo para comemorações. Na História, prefiro os anos 20 do século passado. Dos Farrapos sei muito pouco, apenas que lutaram dez anos e acabaram assinando a paz com a União com uma ajuda substancial do Duque de Caxias. A República sonhada pelos farroupilhas tornou-se real no final do século 19 e a partir dos anos 30, virou assunto dos gaúchos, quando seu mais ilustre filho subiu ao poder, graças às divisões internas, para reunir as bandeiras dispersas numa só. A mesma que hoje nos enche de orgulho ao som do Hino Nacional.

RETORNO - 1. O escritor Urariano Mota explica para que serve a literatura no La Insignia. Para comover as pedras. Para fazer justiça. Para chover uma bênção, pequena que seja, para seu querido Canhoto da Paraíba. Leia Urariano e veja onde sua oração, transmitida em rede nacional, foi parar: direto no coração dos contemporâneos. 2. Raul Elwanger envia comentários sobre o que escrevo aqui. Diz ele: Para investigar, pois não sei bem: o genocidio de Hiroshima foi acompanhado de um bombardeio à população civil de Dresden, Alemanha já de joelhos. Sei de orelhada, mas a lógica é a mesma: punir o povo pelos crimes dos safados. José Dirceu: também de orelhada, lembro que ele nunca foi exilado, viveu com uma operação plástica no interior de SP ou Paraná. 11 de setembro: a midia podia ter um pingo de vergonha e lembrar os trinta mil mortos, os desaparecidos, os mutilados, os exilados, os sofridos, os enlouquecidos, os apatriados pelo golpe CIA/Democracia Cristã/Nacionales no Chile em 1973.

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