27 de setembro de 2004

OS FIOS SOLTOS DA NARRATIVA


Contar uma história é uma arte em desuso. A literatura voltou-se excessivamente para o próprio umbigo e não conta mais com a sua origem, o apoio da conversa ao redor do fogo, já que o fogo (a luminosidade digital e televisiva) tornou-se a própria narração. Mudos, contemplamos qualquer coisa que é inventada indefinidamente. Mas como nas histórias criadas na rua no quadro do Fantástico, tudo o que é solto some no ar (e empobrece pela falta de ligação com a vivência humana). O que resta são técnicas de narrar, que ganham síntese absoluta nos casos de Luis Fernando Veríssimo (onde cada personagem é definido em poucas palavras, a começar pelo nome escolhido pelo autor) ou de Aguinaldo Silva, que em Senhora do Destino usa a técnica tradicional de soltar pessoas aparentemente sem nenhuma ligação entre si e que acabam se cruzando ao longo da história. Isso amarra a narrativa ao pequeno universo que ele pretende desenvolver.

PENSATAS - O termo pensata, tão comum no jornalismo de resenhas, veio de uma comédia italiana com Totó e Pepino de Felippo, como já nos ensinou Mino Carta. Surgiu como deboche e hoje é levada a sério. A pensata nasce da necessidade de preencher espaços na mídia impressa e, dependendo do resenhista, cria vida própria, muitas vezes desvinculada do acervo acadêmico que se debruça profundamente sobre o fazer literário. Quando são acadêmicos que fazem resenhas, espera-se que exista um mínimo de metodologia e geração de pensamento original. O resultado é híbrido. Amarrados pelo rigor da Universidade, que obriga a definição de parâmetros e a sintonia total entre o que se escreve e as referências clássicas, o resenhista especialista nem sempre se sai bem na tarefa. Existem outros limites fora do câmpus, bem no miolo da vitrina jornalística: é preciso referendar o colega que publica, pagar o mico da convivência obrigatória. É difícil desvincular as análises de qualquer outro interesse aparente, para que o texto tenha credibilidade, senão para o público maior, pelo menos entre os pares. Na parte dos jornalistas que fazem resenhas, o resultado também é híbrido. Sem as ferramentas em uso e em contínua mutação no meio universitário, diante do vasto espaço a ser preenchido por dever de ofício ou de contrato, o jornalista que aborda o conteúdo dos livros prefere tomar um caminho que fica entre o rigor da análise e a atratividade da mídia. Poucos autores de resenhas fogem dessa cela. Escrever com a língua solta e ousar criar novos conceitos ou tirar conclusões originais é para poucos. Do outro lado do balcão, há a mútua consideração pelo trabalho alheio, pois quem analisa é autor de romance e vice-versa. Nessa roda de divulgação, perde o leitor, que fica sem saber o que cada um realmente pensa.

ARQUÉTIPOS - Quais são os arquétipos mais comuns da narrativa cinematográfica, hoje, pelo menos no cinema de massa, veiculado pela TV aberta (que sempre reproduz o que foi veiculado nos canais pagos, com pequena diferença de tempo, o que gera uma pergunta: paga-se apenas para ver com antecedência os filmes que vão ganhar o mundo?)? Outro parêntese: veiculação obrigatória de filmes nacionais em cinemas para mim é dose, mas nas redes de TV abertas deveria ser implantada. Tantos filmes brasileiros que vão para a geladeira depois de célere carreira deveriam ocupar o horário nobre, no lugar das baixarias de praxe. Voltemos aos arquétipos. Um deles: o serial killer tem um vínculo poderoso com o detetive, que está no desvio da profissão e vê na resolução do caso a tábua de salvação. Outro: família muito feliz na primeira seqüência está prestes a enfrentar uma barra pesada no envolvimento com o crime, como vítima. Mais um: sujeito perde a memória e tenta encontrar sua verdadeira identidade. Querem mais? Herói vinga-se de um revés com os criminosos e viaja para algum não-país para fazer a justiça que as instituições do Estado lhe negam. Com esses recursos, a narrativa fica cada mais repetitiva e medíocre. O cinema americano é quase todo voltado para a segunda chance. País de formação religiosa que não inclui o perdão (daí vem tantos filmes contra a igreja católica, entidade que eles não conseguem entender) os cidadãos americanos ficam num beco sem saída quando se transformam em perdedores. O cinema então os devolve para a vida normal, aquela situação em que eles tornam-se novamente vencedores. Na América, a perda é ferramenta de humanização dos personagens. Quando eles voltam, estão marcados, prontos para seguir em frente com outra persona, já que a original não poderá mais ser resgatada. Mas a radicalidade da segunda chance só é completa no conto O Duelo, de Guimarães Rosa, transformado em filme, a obra-prima de Roberto Santos, A hora e a vez de Augusto Matraga. O anti-herói é reduzido realmente a pó e só consegue uma revanche quando não possui mais nenhum vínculo com a situação anterior. O final é antológico: Depois, morreu. Somos criaturas com data de validade. A segunda chance, assim como qualquer vitória, é provisória. A não ser que seja transferida para semelhantes ou descendentes. O Outro é a verdadeira salvação.

NOVELA - Aguinaldo Silva, que é um romancista competente, faz gato e sapato na sua atual novela da Globo. A anos luz da terrível Celebridade, que o antecedeu, o autor conseguiu, com a ajuda de grandes atores, criar alguns espaços de excelência na narrativa, apesar de, quase toda ela, ser o que toda novela global é, uma chatice. José Wilker e Raul Cortez estão em papéis e cenas antológicas. Ioná Magalhães, infelizmente, está sub-aproveitada, assim como o grande Flavio Migliaccio. E Gloria Menezes, na caricata baronesa, consegue superar-se. O forte da novela é a amarração de histórias individuais que aparentemente não possuem ligação. Mas o falso sotaque nordestino, a vilania explícita que não convence e os maneirismos de galãs colocam tudo a perder.

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