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13 de outubro de 2003
AQUELE RÁDIO INESQUECÍVEL
Meu maior presente de aniversário, num longínquo outubro de 1958, foi um potente e pequeno rádio de cabeceira Phillips Mullard, que meu pai me deu num rompante. Liguei na tomada, deixei as válvulas esquentarem e me conectei com o mundo. Numa cidade construída no meio do pampa, paisagem lisa e aberta, todas as ondas desciam pela antena até chegar ao meu travesseiro. Foi quando despertei minha vocação para o jornalismo. E fiz minha vida ser orientada pela música.
OURO PURO – Minhas estações favoritas eram: a Bandeirantes, onde pontificavam grandes radialistas, como Walter Silva com seu Bóssessenta e cinco, que no início da tarde não só tocava música brasileira da melhor qualidade, como trazia grandes intérpretes e músicos para entrevistas; e a Tupi de São Paulo, onde Fausto Canova me ensinava jazz das 11 à meia noite. Mas gostava também da Guaíba de Porto Alegre, que não tinha (não sei se agora tem) propaganda gravada e era uma escola de locução; a rádio Jornal do Brasil, com sua majestade de grande emissora; e a rádio São Miguel, de Uruguaiana, que tocava de manhã à noite só bossa-nova e a partir das 21 horas a maravilhosa música italiana, que sumiu para sempre, levando para o éter infinito melodias e cantores e cantoras sem igual. Adorava música francesa, de Edith Piaf a Jacques Brel, música mexicana de verdade (não essa gritaria de hoje, mal assimilada pelos pseudo-sertanejos), boleros, tangos, samba-canção, música romântica americana. Havia melodia, ritmo, harmonia. Tudo isso antes da hecatombe mundial da cultura, conhecida como rap, que é agressão pura e simples, como se o pobre ouvinte precisasse pagar pedágio por todas as injustiças. Havia a rádio Nacional de Montevidéu, que só tocava música clássica, a rádio General Madariega de Paso de Los Libres, na fronteira da Argentina, que tocava o folclore do país, maravilhoso, especialmente os hilários chamames, dramáticos e rascados; a rádio Belgrano de Buenos Aires, retrato da civilização do Prata, que estava no auge. Mas havia mais, muito mais.
TODAS AS LÍNGUAS – Escutava as transmissões em português da rádio Pequim, da rádio Moscou e da Voz da América, que tinha vozes maravilhosas como Leonardo de Castro e Gaspar Coelho. Havia também a BBC de Londres, que gostava de escutar em inglês, mas tinha também transmissão em língua pátria. As ondas curtas eram maravilhosas, o sinal ficava claro como o dia, de repente sumia, para voltar daí a segundos. Eram assim as transmissões esportivas. Na minha cidade, escutávamos a Cadeia Verde-amarela Norte-sul do País, com Fiori Gigliotti, da Bandeirantes, mas tínhamos também radialistas maravilhosos, como Mario Pinto (cronista da cidade), Mario Dino Papaléo (recentemente falecido, com todas as merecidas homenagens), Degrazia (o maior narrador esportivo do mundo) e o excepcional João Carlos Belmonte, que ganhou prêmios de melhor repórter de campo em três copas do mundo trabalhando para a Guaíba (sim, todos são de Uruguaiana). Esses radialistas da terra faziam parte da dinâmica Radio Charrua, totalmente baseada na clássica Radio Nacional, do Rio , inclusive com programa de auditório e produção própria de radionovelas. Posso garantir: o jogo de futebol era melhor escutado do que visto hoje, quando pernas de pau judiam da bola, como aconteceu nos falsos clássicos.
Os meninos dos anos 40 e 50 (época do nosso estadista maior, Getúlio Vargas), aprendiam futebol na escola, na rua, no campinho da esquina. Tão simples assim. Sobrava craque para todo lado. Para se destacar, só sendo um Pelé. Garanto que o primeiro time do Colégio Santana, com Abeguar à frente, daria de 10 a zero no atual Corinthians. Sem falar em Paret (do EC Uruguaiana) Xirunga (do Sá Viana), Nick (do Ferrocarril), Altamir (que só tirava a bola da área de puxeta, com estilo) Ademir (irmão de Abeguar) e os grandes goleiros Barbosa (que só dava voadora) e Nicanor (que um dia adiantou-se demais, mas voou de costas, virando-se no ar para cair com a bola encaixada). Esse era o Brasil de Getúlio Vargas, o estadista mais caluniado de todos os tempos.
JOGOS – Naquela época, eu me recostava na cadeira preguiçosa para olhar o céu, contar satélites que passavam e ver estrelas cadentes, além do lento subir e descer da lua. Todos na minha casa tinham direito a uma cadeira preguiçosa. Apagávamos as luzes para ver melhor as estrelas (isso depois de um crepúsculo no rio Uruguai encantador) e ligávamos a eletrola Hi-fi da sala, onde tocávamos nossos discos, de Luiz Gonzaga a Liberace, de Os Gaudérios a Trio Los Panchos (“Pasarán más de mil años, muchos más”). Hoje, quando o grande compositor José Gomes, arranjador e maestro, que ajudou a fazer de Os Gaudérios um dos maiores fenômenos musicais do Brasil, provocando uma revolução que infelizmente não teve continuidade, coloca música em dois poemas meus, fico pensando na magia no mundo.
Escrevendo para nosso conselheiro editorial Moacir Japiassu, abordei um tema muito comum naquela calçada, a brincadeira do diabo rengo. Rengo, naquelas lonjuras, quer dizer coxo. A brincadeira se dava assim: uma fileira de crianças tentava passar para o outro lado (da rua, da calçada) mas tinha que driblar o diabo rengo, ou seja, aquele outro que, com uma perna levantada (para aumentar a dificuldade e portanto, a graça) tentava pelo menos tocar em algum dos passantes para livrar-se da maldição e transferir para o atingido o papel de diabo rengo. Quando conseguia, o antigo diabo então somava-se aos felizes cruzadores, que de um lado para outro divertiam-se em não ser o condenado pegador. A complexidade de uma brincadeira tão simples é arrebatadora. Há uma condenação no meio do caminho na figura de um demônio. Mas este tem uma desvantagem: não consegue alcançar ninguém se não se esforçar muito, pois tem uma só perna funcionando. Ou seja, só se a pessoa que tenta chegar ao outro lado da vida prevaricar muito será alcançado por um pobre diabo. Se cair na armadilha, por distração, falta de velocidade ou de estratégia, assumirá toda a herança bandida. Será sua vez de tentar agarrar um inocente para conseguir sair do seu inferno.
O que espanta é a radicalidade do jogo. Não existe duplo papel simultâneo dos figurantes: ou você está livre, ou está condenado. Se estiver livre, precisa correr, driblar, aproveitar as brechas para poder passar. Se não for ladino o suficiente, ou corajoso, será agarrado pela terrível maldição. Então, ao se transformar no indigitado, livrará o outro da sua impostura, libertando-o para a inocência. Há queda, mas há perdão. Há rodízio democrático de papéis.
Simplesmente uma maravilha. Um verso de um poema meu, “não há como enganar o diabo rengo” aborda essa maldição: há tempos, fomos condenados, não conseguimos passar para o outro lado, cumprir nosso destino. Só há um jeito de mudar a situação, e nós sabemos qual é. Sendo o mais eficiente cruzador, o mais bravo, o mais clarividente, o mais lutador. E o que é mais importante: contando com a solidariedade alheia, pois se não houver amigos para distrair o perigo, não há como enganar o diabo rengo. Depois que você cruza, você precisa voltar de onde partiu e enfrentar de novo o problema. A vida é feita dessas corridas de um lado a outro, junto com os companheiros, a família, vencendo a sombra que se atravessa. Naquele tempo, a brincadeira tinha hora de acabar. Hoje, não temos a mesma sorte: não há recreio no acampamento de guerra. E o que é mais grave: não dispomos mais de todo o tempo do mundo. Perdemos o que é extremamente valioso e insubstituível: a eternidade nas nossas vidas.
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