16 de janeiro de 2014

O “REALISMO” À FLOR DA PELE



Nei Duclós

Não existem filmes realistas. A realidade é fora de forma e um filme é o exagero dos limites – enquadramento, timing, script, interpretação, direção, produção. Assim como não existem reconstituições de época e sim a disposição de cenários em função da narrativa, ser “fiel aos fatos” é só mais um recurso da ficção. Como já notaram os irmãos Cohen que colocaram no início de uma de suas obras o jargão “baseado em fatos reais” pontuando uma história totalmente inventada. Eles zoaram com essa falsa percepção de que o cinema tem a ver com a realidade, quando é pura ilusão, assim como a própria realidade, que depende da percepção de cada um, como destacou brilhantemente Akira Kurosawa em Rashomon.


Como vivemos numa época de denúncias, de desmascaramento dos poderes, de flagrantes no atacado e no varejo, da publicação de todos os segredos oficiais, de revisionismo histórico e de overdose de notícias e imagens sobre acontecimentos por todo o mundo, de multiplicação de mídias e de olhos escancarados de milhões de espionagens, o cinema procura acompanhar as tendências, pesquisando o ineditismo dos enfoques para contribuir com algo original na maçaroca de coisas oferecidas pela indústria do espetáculo (onde foi incluída não apenas as artes, mas principalmente a política).

Dois filmes de 2013 “baseados em fatos reais” funcionam um como o avesso do outro, sob o aspecto de um tema candente e pontual, o racismo. Em 12 Anos de Escravidão, de Steve McQueen, há a abordagem de um aspecto importante do assunto, os negros libertos convivendo com o regime escravocrata. E em Captain Phillips, de Paul Greengrass, o tema são os detalhes sobre a pirataria somali contra navios da marinha mercante americana. No primeiro, os brancos são horrendos e maus e maltratam até o mais absoluto desespero as pessoas negras sob seu domínio e tacão. E no segundo, os negros são horrendos e maus e enlouquecem o branco capitão do navio. Por coincidência, os dois tem exasperantes 134 minutos, mais de duas horas! em sequências intermináveis de maldades e maus tratos.

Para que tantos minutos? São filmes que repisam seus enfoques engessados como a querer provar que a cor da pele faz parte do destino. Quem tem a pele clara em “12 Anos” não passa, com raras exceções, do dito-cujo em forma de gente: destrói famílias, suborna, vai contra a lei, mata inocentes, explora a mão de obra até destrui-la. Há ainda cenas de sadismo como a justificar as retaliações que disso poderão advir. Não se sai impune do filme, mas com chibata na mão para vingar-se de tanta maldade contra os negros. Por sua vez, quem tem a pele escura em Captain Phillips é apresentado como uma monstruosidade física temperada pela crueldade sem limites.

Assistindo penosamente os dois filmes, que usam como escudo os depoimento dos protagonistas, dá para elogiar apenas a performance de alguns atores, como Tom Hanks, que é top, com sua elaboração que sugere naturalidade, e Chiwetel Ejiofor, que promete ser melhor no futuro, já que aqui foi obrigado a fazer caretas demais.  Mas vê-se que tem formação e força de um grande ator. Há excelentes coadjuvantes: o somali Barkhad Abdi (na foto principal, com Hanks) e o ator alemão Michael Fassbender (na foto abaixo, com Chiwetel).Os dois filmes conseguem se estragar pela overdose. Poderiam ser bons.





O que estou querendo provar? Que não houve crueldade na escravidão na América e que não há culpa entre os piratas somalis? Claro que isso seria uma forçação de barra também. Mas estamos falando de cinema, não de realidade. As duas narrativas escorregam para o abismo da overdose. O tempo que se perde em chibatadas sem fim nos escravos negros ou de violência contra o capitão indefeso poderia ser mais enxuto para que a verossimilhança não ficasse a serviço da retaliação e do ódio, muito mais do que da denúncia.

No fundo, são filmes que exageram para conseguir repercussão e plateia, não porque estejam imbuídos de motivos nobres. São filmes comerciais que usam a marca do realismo para justificar seus exageros narrativos. São insumos para uma tendência forte hoje, o de apontar o dedinho contra os interlocutores acusando-s de apartheid, racismo ou politicamente correto, ou seja o que for. Precisamos de cinema mais competente e não de propaganda, tanto a favor da cavalaria americana com sua marinha de guerra tão eficiente, quanto a favor dos despossuídos em sequências múltiplas para provar que tem razão, o que já está explícito desde as primeiras cenas.

O recado em 12 Anos é, claro, de condenação aos algozes, que pertencem a uma outra época, mas que no frigir dos ovos são substituídos pelos contemporâneos. E Captain Phillips se atrapalha ao mostrar um universo mais complicado do que o mundo certinho e correto do navio que vai levar comida para os famintos (veja que ironia!) por águas africanas. Ser branco ou negro pode virar um pesadelo com filmes como esses.