Nei Duclós
A danação é perder a segunda chance. Na contramão da cultura
americana, que sempre aposta na volta por cima dos perdedores, a queda, em Blue
Jasmine, de Woody Allen, é sobre a
verdadeira natureza dos vitoriosos, ou seja, sua vocação para o desastre. Destino
não definido pela natureza humana ou pela luta de classes, mas pelo cinema.
Cate Blanchett é o vestígio de uma
situação de conforto, que ao rolar para o abismo ocupa espaço na periferia do
dinheiro representado pelo apartamento brega, a irmã pobre e os namorados grosseiros.
Trata-se de cenários e figurinos pontuados pela narrativa
das falas dos personagens. E da montagem que alterna a memória a princípio
deslumbrada em direção ao tombo com o impacto do presente sem solução ou saída.
A protagonista cava sua tragédia ao virar o rosto para o outro lado quando o
marido lhe enche de fortuna sem perguntar de onde vem tudo aquilo. E ao mentir
quando poderia ter dito a verdade para que sua segunda chance passasse pelo
teste e encontrasse um desfecho favorável.
O paraíso onde ela se movimenta na memória é falso, cevado
pela economia marginal, a caixa 2 dos contratos criminosos, a especulação ou o
roubo puro e simples de poupanças alheias. O casal primordial é composto por um
Adão culpado e uma Eva seduzida e cega. A mordida na maçã é a denúncia depois da
descoberta de uma traição e o arcanjo é a Lei que prende o marido na rua e o
leva para a morte na prisão. Condenada a ganhar o pão do suor do seu rosto, a
ex-milionária é submetia ao assédio, ao confronto com o passado e à miséria. Resta-lhe
algumas lembranças, como bolsas caras, vestidos de festa, utensílios de marca.
Que funcionam até o limite da transparência, quando a verdade vem mais uma vez
à tona.
Falar sozinha na rua dispensando o interlocutor é a
insanidade provocada pelos sucessivos traumas, que desmancham a intérprete de
maneira arrasadora, numa performance antológica. Eva leva a culpa de tudo e não
há lugar no mundo para ela. Quando havia dinheiro, não havia base para a
situação se sustentar pois a família vivia à margem da lei. Na pobreza, a
solidez da realidade é o pesadelo de quem usufruiu da riqueza e não se
sintoniza com a possibilidade de um retorno.
Quebra-se assim o mito do sucesso financeiro, revelando a
insustentável leveza do sistema, feito de mentiras. Não há também honra no
mundo precário dos despossuídos, prisioneiros dos seus fracassos, que exasperam
a ex-madame agora às voltas com suas origens pobres. A ascensão social é uma
impossibilidade no mundo hostil. O único
happy end é a música inesquecível, Blue Moon. É a cultura que costura os
farrapos humanos e não lembrar da letra ou perder as pistas da melodia que some
num piano distante é a verdadeira tragédia. Se o cinema, neste caso, é denúncia sobre a queda,
a canção é a arqueologia de um sonho chamado humanidade que só existe quando
acordamos para dentro, salvando o coração antes transformado em pedra.
Fica o desespero da mulher que assumiu o nome da flor que é
celebrada à noite, perfume do jasmin que se espalha pelo tempo. Ela perdeu-se
em suas duas oportunidades. Foi desmascarada, expulsa do paraíso verdadeiro,
que é a chance de amar, foram dos trâmites da vida perversa. Cate Blanchett tem
tudo: talento, fôlego, garra. E principalmente classe. Ou ganha o Oscar ou esse
prêmio não vale nada.