17 de junho de 2012

THE DAY OF THE LOCUST: AMBIGUIDADE E DENÚNCIA



Nei Duclós

Manter o povo sob dominação, não deixá-lo ir em busca da salvação, desencadeia uma das pragas bíbliças do Antigo Egito, a dos gafanhotos, que cobrem toda a terra e devoram tudo, não apenas num primeiro momento do ataque, mas o que restou depois dele. A salvação, para Nathanael West (1903-1940) em O Dia do Gafanhoto, seria desvencilhar-se da indústria do espetáculo, que suga e vampiriza o público prometendo-lhe a felicidade e dando-lhe o vazio e o desespero. Mas como na Bíblia, em que o Faraó, apesar da força da praga,  manteve o povo cativo, aqui também a fábrica de sonhos de Hollywood continua a imperar. Vivemos à mercê dessa ambiguidade, entre a explosão do público frustrado e a manutenção de uma atividade que usa a ilusão para o lucro e a manipulação das consciências.

O livro The Day of the Locust foi lançado em 1939, na véspera da morte do grande autor, que foi-se num acidente de automóvel, um dia depois do desaparecimento de Scot Fitzgerald, que fez outra obra fundamental sobre Hollywood, The Last Tycoon, aqui traduzido como O Último Magnata, quando nada tem a ver com ricaço, mas com alto executivo. Há uma diferença entre os dois livros: Scott jamais teve um filme à altura , ao contrário de West que em 1975 teve sua obra prima filmada por John Schlesinger, que foi extremamente fiel  ao texto, graças ao roteiro de Waldo Salt.  Tudo, em The Day of Locust, tanto no impresso quanto na tela, é a flor da ambiguidade, que serve para o escritor e também o cineasta fazerem sua denúncia. O crime está claro, mas para se ter a percepção dele o leitor e o espectador leem e assistem situações ambíguas de personagens divididos.

Começa por Homer Simpson, que foi inventado neste romance e encontrou em Donald Sutherland, no cinema, seu grande intérprete.Homer é o psicopata manso e prestativo, bem comportado e insano, mudo e loquaz, que se apaixona por uma starlet alpinista social, voraz manipuladora de homens em busca da realização rumo ao estrelato. A filha dedicada que também é uma prostituta, a falsa com plena consciência do que diz e faz, a figurante que se comporta como estrela, a frígida que se entrega ao orgasmo: a ambiguidade da personagem desafia a atriz, Karen Black, que consegue destacar-se num papel que tinha tudo para ser óbvio e é uma exposição de nuances contraditórias.


Quem interpeta o pai dela é Burguess Meredith, que faz do seu palhaço decadente e enfartado Harry um candidato supremo aos grandes prêmios, que ele não levou. Indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro, Meredith é o artista que virou vendedor de solvente, e que superpõe na desgastante luta de porta em porta seus talentos de circo e de vaudeville, numa performance  de grande carga de ambiguidade. Ele está á beira da morte ou só finge? Está morrendo ou sempre vai se recuperar? É engraçado ou trágico? Foi realmente elogiado pelo Variety (como aparece no livro) ou foi só marketing, já que ele mesmo teria feito o texto (como aparece no filme)? Seu momento maior é quando se submete à Igreja mercenária que tem como sacerdotisa a grande atriz Geraldine Page, numa cena premonitória da atual endemia de igrejinhas caça níqueis. Ele está sendo curado ou empurrado para o desfecho trágico da sua vida?

Nesse jogo de ambiguidades, vemos o que Los Angeles faz com os americanos. Todos vão lá para se divertir, nos conta West, mas acabam se frustrando, pois a terra das laranjas é enjoativa e nada acontece, ao contrário do que aparece nos filmes. Tudo é feito em estúdio, que, no texto de West, adquire uma força literária rara. A mistura de realidade e ficção, própria do cenário, também está presente no texto, em que o Waterloo filmado se mistura ao real, em que soldados em guerra são também figurantes. Sem fazer a divisão entre realidade e ficção, mas mantendo a transparência dessa transfusão, West denuncia o quanto Holywwod depende de seus carpinteiros e figurantes e o quanto os despreza, expondo-os a acidentes e driblando a fiscalização com propinas.

O protagonista, Tod Hackett, interpretado por William Atherton, é artista que pinta uma Los Angeles incendiada, com pessoas mascaradas de horror, uma visão que ele atinge na realidade, na grande apoteose, quando a estréia de um filme acaba em pancadaria, violência, estupro e assassinato, numa sequência terrível que alcança intensidade feroz tanto no livro quanto no cinema. Tod é pintor ou comerciante, é um puxa-saco ou um autêntico, ama de fato a starlet ou a odeia? Ficamos divididos entre as possibilidades duplas da personalidade dele para enxergar o que o talento sofre quando se submete à aridez dos donos indústria do espetáculo, que não dão a mínima para a História, o público ou os profissionais que trabalham para eles.



E há Homer Simpson, personagem que foi criado neste romance e ganhou performance magistral de Donald Sutherland. Mat Groening, o criador dos Simpsons, sucesso da TV há uma década, é evasivo em relação a essa origem. Diz que tirou o nome de familiares, mas é óbvio que seu Homer é extraído do personagem de West e de Donald, que adora o filme principalmente por ter sido odiado nos EUA (ele é canadense). Há livros sobre West e o filme, e um dos destaques é o que Sutherland faz com as mãos (enormes, sempre estalando e migrando de lugar no toque do próprio corpo), como dispõe as expressões do rosto (psicopata manso que explode no final), ou expressa o tom patético de gestos e falas, e como é bizarro com seu andar catatônico.

Foi daí que Mat tirou a radicalidade do personagem, que funciona tão bem na indústria do espetáculo. Pode-se dizer que o Simpson da TV é uma retaliação da indústria à denúncia de West. O Homer de Mat é uma manutenção eterna da psicopatia, uma atitude suspeita que acaba sendo encantadora devido ao entorno familiar do personagem, o que falta ao Homer de West. Este, mora sozinho e acaba sendo anfitrião da estrelinha e seus comparsas. Ele é um assassino em potencial, uma implosão de personalidade, um refugiado do sistema econômico opressor que tenta se salvar em LA. No filme fica mais clara essa situação de classe média que mora em casas amontoadas que imitam as mansões das grandes estrelas. No livro West escreve que a massa demolidora é da pequena burguesia, da classe média frustrada que passa  vida economizando dinheiro, trabalhando numa atividade vazia e depois chega em Hollywood para morrer.

O livro é uma obra prima. Algumas páginas pertencem ou deveriam pertencer ao cânone da literatura mundial. Como as do estúdio, em que West viaja por pintores da decadência e do Mistério, como Salvator Rosa , Guardi , Daumier, Monsu Desiderio, Goya, Magnasco, comparando-os ao visual sinistro dos cenários em ruínas, que leva junto figurantes e estrelas, com conseqüências legais nulas, pois tudo está arranjado entre as leis e os donos do espetáculo. Ou com o resultado final, a apoteose, quando o protagonista vê a multidão em fúria identificada com o quadro que pintou sobre um incêndio em Los Angeles.



Quando vemos hoje as turbas enfurecidas e frustradas nas saídas dos jogos de futebol ou nos arrastões predatórios, sabemos que West nos anos 30 previra o perigo de insuflar a massa com cenas de violência e de lazer dando em troca de absolutamente nada. O personagem infantil, Adore (Jackie Earle Haley), é o futuro dessa tragédia: imitador de Mae West no filme, mal criado e agressivo, acaba vitima de sua personalidade adoecida pela ambição da mãe que queria ver nele um astro.  O anão  Abe Kusich (Billy Barty), com mania de grandeza, é o patético exemplo do excluído que tenta desesperadamente um lugar no convívio dos “normais”.  No fim, tudo é exclusão nesta hecatombe social e cultural.

The Day of the Locust, o livro: cânone literário, obra prima de carpintaria, em que nada parece acontecer, mas onde nenhuma letra está fora do lugar, pois tudo é resultado do talento dobrado pela genialidade da técnica. O filme: inesquecível e demolidor, com cenas arrasadoras que ficam na memória para sempre e interpretações que pertencem à antologia do cinema. Todo filme é sobre cinema: este, mais do que qualquer outro.

RETORNO -  Imagens desta edição: na foto maior, a apoteose trágica da multidão enfurecida e o personagem Tod, o desenhista, sendo engolfado pelo horror. Na seguinte, Karen Black e Burguess Meredith, a starlet e seu pai palhaço. Mais embaixo, Donald Sutherland como Homer Simpson. E por ultimo, William Atherton no papel de Tod. Cenas de The Day of Locust (1975).