23 de maio de 2012

RECANTO


Nei Duclós

O poema segura o mundo nos ombros.
Verbo feito carne, mecânica celeste.
O que se espatifa é o discurso,
a linguagem em ruinas.

Passo o dia no eito.  Sílaba por sílaba,
verso contrafeito.
Sopro de Lua em rastro de vento.  Sonho
que reparto, quebradas de rua, sobrevidas.

Para isso levei um tempo.
Mais de meio século, passaporte, uivo.
Volto à origem, mas com o alforge cheio:
todas as ranhuras do arco-íris.

Insuportável é vender o tempo
por toda a vida.
Algum dia deve haver ruptura.
Estarei te esperando, poesia.

Não perco mais um minuto.
Quando deito, o verso ressurge.
Estava acomodado em dobras de silêncio.
Mas limpo a voz quando levanto.

És minha companhia nesta era sem segredos.
Tudo se revela como num relance.
Só nós mantemos o mistério,
velas para o Leste, convés de espanto.

Não deves temer os monstros.
Nem confiar demais no comandante.
Segure-se na proa, sereia e partitura.
 Estamos juntos na mesma melodia.

Dirão que não presta esta arte
e que é perda de tempo.
Mas as águas um dia serão tuas,
musa que me leva.

Dou por terminado o poema,
oculto recanto.
Viajarei com ele de agora em diante.
Venha comigo, Lua mansa.


RETORNO – Imagem desta edição: Silvana Mangano.