15 de setembro de 2011

WIM WENDERS: O VÔO DO FLÂNEUR


Nei Duclós

Os anjos de Asas do Desejo (e sua seqüência, Tão longe, tão perto), de Wim Wenders, são uma radicalização da figura do flâneur, encarnado por Baudelaire: o cara que andava pelo avesso da cidade transformada subitamente pelas forças do capital, que entregava-se à contemplação e à reflexão nas largas avenidas que brotaram junto com os edifícios e as multidões. Há um componente nostálgico nesse personagem notório da História da Cultura, que teria resgatado, em plena metrópole, o modo de viver do campo, inconformado com a avassaladora presença das máquinas e a desumanização dos habitantes. Os anjos de Wenders, testemunhas da pequenez e da imensidão das criaturas que contemplam, expressam-se, como Baudelaire, pelo poético (a nostalgia da linguagem antes da demolição mercantil do discurso) e mapeiam as situações que envolvem os seres que estão sob os seus cuidados.

CHANCE – Mas se o flâneur histórico (inaugurador da modernidade) é ruptura diante do capitalismo nascente, e uma tentativa de resgate da harmonia perdida, os anjos da pós-modernidade são o sofrido olhar diante da decadência urbana, desse desmaio abissal que é Berlim reconduzida à unidade depois da guerra que a cortou ao meio. Há necessidade agora de o flaneur interferir na cena que observa, sob pena de tornar-se o árido espírito que gerou o abismo. Os anjos então se humanizam, e vertem sangue para aproveitar a chance: agora que o sistema dá sinais de cansaço, é hora de pousar nele o que há de mais profundo, a materialização do sonho cevado na exclusão secular.

ABANDONO – Outro flâneur de Wim Wenders é o personagem mudo desse filme que foi feito para nos derrubar, o incomparável Paris, Texas. Ele vaga pelo deserto em busca do amor perdido. Voltou enfim ao campo e nele procura encontrar o que não possuía mais na cidade. Guia-se por um paradoxo: um nome feliz de cidade encravada no grotão da América. Vaga sem nenhuma chance de encontrar o que procura e é por isso que há aquele blues tocado pela guitarra feita com os nossos nervos. A guitarra chora a impossibilidade e temos certeza que ali, naqueles momentos antológicos do cinema maior, nunca fomos tão sós. O abismo dessa figura é o horizonte sem fim que se distancia a cada passo.É no fundo o ser que perdeu a capacidade de se expressar (porque há um abismo entre o homem e o esquema que deveria sustentá-lo) e que sai em busca da palavra perdida. Encontra-a corrompida, exposta na vitrina do mercado. Mas ele procura recuperar a fala (a sua vida) e é com a palavra prostituída que precisa recompor-se.

Essa é uma das fábulas desse artista que nos comove pela compaixão (esses ausentes desesperados que despencam na paisagem) , que nos convoca pelo sussurro (esse poema que ninguém escuta), que nos leva até a amurada e lá nos aponta o chão distante, para o­nde irá nosso corpo sem sentido.Lançamos, então, tudo o que somos, no ar, para ter certeza se ainda contamos com alguma densidade. Vamos ao encontro de nós mesmos. Deixaremos, com Wim Wenders, de sermos o flaneur conformado com o olhar infinito. Se tivermos sorte, haverá sangue quando acordarmos no chão da cidade condenada.



RETORNO - Republico texto já divulgado aqui em 2005

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