22 de setembro de 2011

DUELOS ENTRE O AMOR E A SOLIDÃO



Nei Duclós


Resenha publicada na revista ISTOÉ 11/05/1988 sobre o livro Os Dragões Não Conhecem O Paraiso, de Caio Fernando Abreu. Companhia das Letras, 157 páginas.


A lucidez fecha as portas do paraíso. No campo minado da linguagem de Caio Fernando Abreu, o paraíso significa a “eterna monotonia de pacífica falsidade”. Enxergar é não ter contemplação com ninguém. Por isso, desfila nos treze contos que compõem este seu novo livro, ao lado de uma personagem central — tensa com a idade e o próprio corpo -, uma fauna urbana nomeada pela adjetivação inspirada em equívocos de comportamento, como O Homem Independente Que Não Necessita Mais Dessas Bobagens de Amor ou A Mulher Totalmente Liberada Porém Profundamente Incompreendida.

Enxergar, para Caio, é desvendar, entre outras coisas, a adolescência cultivada no interior do Rio Grande do Sul — onde nasceu em 1948 —, ambiente de onde saem contos primorosos como Pequeno Monstro, que descreve a descoberta do outro, primeiro passo para a psicanálise e a transcendência. Livrar-se da carga cultural do interior implica, no entanto, um paciente trabalho de recuperação da linguagem do passado.

É nesse território de difícil acesso — pois é fácil cair na pieguice — que Caio constrói textos antológicos, como O Destino Desfolhou, descrição de uma desilusão amorosa do 12 aos 16 anos de idade. Para isso, resgata palavras incomuns, de uso regional ou presas ao tempo. Tendo o cuidado de não limitar os assuntos em fechados compartimentos, o autor combina habilmente o pesado clima de uma cidade provinciana e suas perspectivas com a leveza dos diálogos, a poesia das descrições, a riqueza dos detalhes.

Todo esse universo compilcado e exausto chega ao ápice em Linda, uma História Horrível, que descreve a visita da personagem central à casa paterna. Revisitar a infância, com todo o seu horror exposto na velha casa, é o caminho para tentar, de volta à grande cidade, entender a idade, o corpo e resgatar possibilidades de uma superação.
Não é, também, um caminho fácil. Na voragem de contos como Saudades de Audrey Hepburn, Dama da Noite e Sapatinhos Vermelhos o autor desmonta as ficções urbanas da era da AIDS. Uma viagem inperdível, onde a solidão duela com o amor o tempo todo. Caio, nestes contos, detecta múltiplas personagens, que tanto podem ser um publicitário, uma prostituta, um psicólogo. Gente lúcida da mesquinharia ambiente, que, sem concessão, descreve a rotina agônica de hábitos tidos como excêntricos, mas que no fundo revelam apenas o horror de estar vivo.

É assim, pela meticulosa construção de uma linguagem própria, que o pequeno monstro do interior, pelo excesso de. lucidez, traça o perfil de suas obsessões. Essas, num truque onde entram o sonho e a emoção, encarnam na figura do dragão. É ele que convive com o escritor, como metáfora de libertação: os dragões, como os pesidelos, não têm existência real. O que existe é um autor diante de suas palavras, ordenadas pela paixão de continuar vivendo.

Não se trata de buscar a salvação, já que o áspero caminho escolhido por Caio Fernnando Abreu, desde sua estréia em I970 aos 21 anos, com o livro de contos Inventário do Irremediavel, não permite soluções óbvias nem otimismo. Essa coragem - que gerou já sete livros, entre eles O Ovo Apunhalado (1975), Morangos Mofados (1982) e Triângulo das Águas (1983) — justifica plenamente o prestígio de Caio no meio literário brasileiro. Um prestígio construído com a força dos verdadeiros artistas.


RETORNO - Esta minha resenha não constava mais nos arquivos aqui de casa e foi enviada por e-mail por especial gentileza de Laura Souto Santana.

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