11 de agosto de 2011

CULTURA E FUTEBOL: A LÓGICA DO IMPROVISO


Nei Duclós

O futebol brasileiro é fruto da cultura da escassez, conceito usado pelo poeta Mario Chamie quando assumiu a secretaria municipal de Cultura de São Paulo nos anos 70. A cultura da escassez define o perfil dos brasileiros que, ermo de recursos e de incentivo, acabam superando com a criatividade o que lhe falta no entorno. Como conta Mario Filho, o povo que assistia os jogos dos esnobes ingleses esperavam a bola sobrar para ir chutando sem parar até os confins da várzea. Depois, com as políticas públicas que organizaram a bagunça, fomos tão longe que conquistamos uma Copa do Mundo em 1958, nas fuças dos europeus. Repetimos a dose quatro vezes mais, mas sempre longe da Europa. Nunca mais nos deixaram humilhá-los daquele jeito.

Ontem , contra a Alemanha, vimos como o autismo do improviso fundado na exacerbação do ego, e não nos desafios impostos pela cultura da escassez, unido a um técnico que está na mão da mídia monopolista e da cartolagem sem freio (e por isso deve pedir para sair), levaram a seleção brasileira a um beco sem saída. A vitória da Alemanha por 3 a 2 em Sttugart nesta quarta-feira foi a vitória da lógica contra o improviso sem base, aquele que é fruto não da escassez, mas do excesso, da soberba. Aquele que perde por não ter tido dificuldades para se consolidar, já que é resultado dessa mixórdia suspeita em que se transformou o esporte.

A lógica obedece à natureza do futebol, que é coletivo. Não é tênis nem jogo de dardos, em que existe isolamento dos protagonistas. Alemanha é time em que as individualidades se sintonizam, graças ao trabalho do técnico e à postura adotada pelos jogadores. A partir dessa sintonia, que serve como base, os talentos podem se desdobrar, manifestar, compor um acervo de jogados objetivas. Já o Brasil é um tecido descosturado, onde indivíduos tentam cobrir o grande furo da falta de consistência coletiva. Perdemos a pista da lógica do improviso: este sem manifesta quando a criatividade é convocada e se alia ao planejamento e à técnica, como aconteceu na seleção brasileira de 1970. Naquele momento, levamos o gênio nos ombros da estátua, que até hoje está lá, na cidade do México.

Vimos nossos erros várias vezes no jogo. O zagueiro que tenta driblar e acaba perdendo a bola para o atacante, que cruza para o companheiro completar nas redes. O drible repetido no miolo da área sem objetividade, apenas fazendo zigue zague entre a defesa para não chegar a lugar nenhum. A falta de chutes a gol, fruto dessa indecisão que confina cada jogador a um papel sem apoio dos outros. Perdemos a embocadura da cultura da escassez que nos gerou. Sucumbimos diante da lógica tradicional, representada pela tenacidade alemã. Não impomos mais a lógica do improviso em estado de arte (que é também fruto da força) que encontrou soluções originais. Mas improvisamos concentrados no ego dos jogadores, como o Pato, que em vez de se contentar em fazer golzinhos, sonha em fazer golaços.

Por que acontece isso? Acredito que é a falta de grandes cabeças no comando do futebol (o que acontece também em todas essas áreas, na atual fase de desconstrução nacional). Cito o caso Mario Chamie como exemplo. Quando uma grande cabeça se manifesta e está na maré alta da sua atuação, é comum virarem-lhe as costas, como aconteceu com ele, naquele início de gestão frente à secretaria municipal de Cultura, quando Reynaldo de Barros iniciava seus trabalhos à frente da Prefeitura. Reynaldo era conhecido como o preposto do governador Maluf e isso bastou para que recaíssem sobre Chamie aquele olho branco cavernoso que conhecemos bem. Claro que a biografia, a trajetória, a obra e os grandes feitos do poeta na sua brilhante gestão sepultaram as maledicências. Hoje, quando não está mais entre nós, todos adoram citá-lo e homenageá-lo, mas naqueles meses terríveis em que ele começava sua vida pública na política cultural, fui pioneiro e decidi entrevistá-lo para o caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo. Deu capa, graças à editora da época do caderno, Helô Machado.

E eu nem era repórter, apenas um copy, mas tinha sido liberado por Helô para fazer matérias especiais e fui a campo. Na nossa conversa com Chamie, ele transcorreu longamente sobre seus planos e os conceitos que iriam norteá-lo. Ele trouxe os resultados dessa cultura da escassez, os processos e os protagonistas para dentro de sua grande obra, o Centro Cultural Vergueiro, que mais tarde, depois de ter sido duramente criticado pelos oportunistas que bem conhecemos, foi encampado em todos os seus cargos. Mas naquela época, em que o secretário vinha me buscar em casa para mostrar sua obra, vi como foi feito aquele Centro que somava todos os vetores da cultura e era ao mesmo tempo teatro, cinema, biblioteca, lugar de debates, escola e área de lazer. Foi quando nasceu a semente do chamado multiuso,que hoje serve para múltiplas falcatruas com o dinheiro público.

Criticaram até o lugar onde foi instalado o centro, perto da estação Vergueiro do Metrô, mas Chamie argumentava: “O pipoqueiro não erra o ponto”, dizia, apontando para a carrocinha já instalada no local logo que foi inaugurado. Claro que também bateram nele porque a inauguração não flagrava a obra em sua totalidade, ainda havia muito o que fazer. Mas o que interessava a Chamie eram os processos e como eles, pela transparência, poderiam acumular e incentivar os autores dessa cultura da escassez que, com o apoio do poder público, poderiam passar por cima das precariedades endêmicas para fazer cultura.

Somado ao seu celebrado trabalho de professor e seus livros de ensaios (tão importantes quanto os de sua poesia), Chamie é uma inteligência luminosa num país tomado pelas trevas, onde o conhecimento está amarrado a mil aparelhamentos burros, a começar por ideologias mal assimiladas e adaptadas ao jogo bruto da política. Precisamos dede cabeças assim no comando das políticas públicas, especialmente nas de educação e cultura. Não podemos mais continuar virando as costas para quem, independente dos esquemas ideológicos e partidários, tem muito a contribuir. Mas se continuarmos na mão da burrice e da malandragem, continuaremos rolando precipício abaixo.

Nem é preciso convocar um poeta para o comando de futebol. Basta uma inteligência agressiva, uma ética granítica e um sentimento de nacionalidade explícito. Pouca coisa.


RETORNO - Imagens desta edição: quadro de Fulvio Pennachi e foto do poeta mario Chamie.

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