5 de agosto de 2011

ACASO E FORTUNA EM ERIC ROHMER


Nei Duclós

Dois filmes são insuficientes para analisar a obra de Eric Rohmer (1920- 2010), o patinho feio da Nouvelle Vague e diretor de inúmeros filmes importantes. Mas servem para detectarmos aspectos que me parecem decisivos no seu trabalho. É um mistério para a crítica o desconforto de Rohmer diante de seus pares mais famosos, com Godard à frente. Há explícita má vontade com seus filmes, como se tivesse absorvido todas as maldições do cinema francês de vanguarda, quando estas poderiam ser atribuídas tranquilamente em sua quase totalidade a Godard, que é premeditadamente chato (apesar de empolgante como criador) e cerebral e desdramático – portanto, anti-cinema – até o osso.

Rohmer não cabe nessa imagem feia que grudou nele principalmente com o sucesso da fala de Gene Hackman num filme de Arthur Penn de que ver um filme seu era tão empolgante quanto assistir uma tinta secando. Maldade, típica frase de perder o amigo mas não a piada. Os dois filmes que vi estão separados por mais de 30 anos, mas possuem pontos em comum que esclarecem sobre o que Rohmer fez no cinema. O primeiro é O Signo de Leão, sua celebrada estréia de 1959 e o segundo Conto de Inverno, de 1992, que faz parte do seus contos das estações.

Ambos tratam de acaso e fortuna, postura mística que funciona como um paradoxo para um realizador do chamado cinema verdade. Ali estão todos os elementos da vanguarda cinematográfica desencadeada pelos ex-críticos do Cahiers Du Cinema – linhagem a qual Rohmer pertence: as longas sequências da câmara seguindo os passos dos personagens, o olhar cru sobre a realidade urbana, os diálogos desdramáticos e ocasionais, a falta de grandeza dos personagens, as relações humanas em volta com ninharias. Um ambiente oposto ao enfoque místico de Rohmer, que procura algo além das aparências, ou pelo menos faz seus principais personagens acreditarem em algo fora do circuito da realidade, que no fundo é a França clássica sendo devorada pela modernidade, uma abordagem comum entre os cineastas franceses.

Rohmer é ostensivamente anti-intelectual,ou melhor, contra a pose intelectual de massa, as modinhas superadas da galanteria mental dos que profanam a cultura com sua vida indiferente (arte e literatura não mudam o vazio das vidas entregues ao nada). Um detalhe de O Signo do Leão mostra como a denúncia de Rohmer se comporta. Três pessoas discutem sobre ao barroco diante da catedral Notre Dame e uma delas, o amigo do casal que forma a roda, para impressionar a mulher do outro, intensifica sua argumentação (tosca, recorrente, autista) pegando-a pelo ombro, praticamente apalpando-a. Ele queria apenas tocar na fêmea do amigo,mas para isso usou de subterfúgios pseudo culturais. Em Conto de inverno, a protagonista se considera uma ignorante e a todo momento confirma essa sua verdade diante das conversas permeadas de leituras dos outros. Mas ela é a única capaz de entender uma peça de Shakespeare, pois viu com os olhos livres, sem a cortina das fumaças da pose.

O filme de 1959 é sobre um herdeiro que deixou de receber uma fortuna e perambula miserável por Paris, como um Henry Miller desesperado e subitamente lúcido diante da miséria social, mas sem o apoio da criação literária, pois se trata de um vagabundo puro e simples, sem justificativas. Ele então se alia a um palhaço e cumpre com ele o destino dos clochards, dos vagabundos artistas que se apresentam nas ruas em troco de migalhas. O sofrimento do andarilho (um estrangeiro, americano deslocado na capital francesa) por uma Paris no verão lotada de turistas endinheirados é o purgatório que enfrenta até ser avisado de que enfim a herança caiu no seu colo, pois seu concorrente, um primo, tinha morrido em acidente de carro.

A mulher do filme de 1992 aguarda o grande amor e pai da sua filha, que sumiu por obra de um desentendimento na hora da despedida, quando, desconhecidos, apesar de terem vivido cenas tórridas de amor, trocaram endereços falsos, um equívoco não intencional que provocou uma separação de cinco anos. Ela se atira aos namorados com esperança de esquecer essa fonte de felicidade que está no passado e que por um acaso e falta de sorte, sumiu. Mas acaba optando por livrar-se de todos eles para esperar a chance, a fortuna, que afinal acontece.


O happy end é outro paradoxo para um cineasta de vanguarda, mas nas duas obras ele se manifesta. Tudo isso torna Rohmer um cineasta mais radical do que parece ser. Toda a adjetivação babosa em cima dele de pessoas que não entenderam sua dialética – o místico do cinema racional, o anti-intelectual que propõe a leitura dos clássicos com os olhos livres – passa ao largo de percepções viciadas. Mas está tão claro e explícito que chega a doer.


RETORNO - Imagens desta edição: na foto maior, o purgatório do herdeiro, interpretado por Jess Hahn, em "O Signo de Leão", e na menor, colorida, o final feliz de "Conto de Inverno".

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