29 de agosto de 2011

CAIO FERNANDO ABREU: TRÊS MOTIVOS PARA UMA CARTA


Nei Duclós

Continuo hoje compartilhando mais uma carta que Caio Fernando Abreu escreveu para mim nos anos 70. Desta vez, ele enumera três motivos para me enviar suas preciosidades: primeiro, a resenha sobre meu livro de estréia Outubro, que saiu na imprensa de Porto Alegre; segundo a alegria de ter participado de um encontro com jovens estudantes de Vacaria, RS, onde reforçou sua certeza na missão de escritor, num trecho antológico sobre nosso ofício; e terceiro, a descoberta de uma poeta mineira então desconhecida, Adélia Prado. O desfecho é mais do que surpreendente: o relato de um sonho castañedistico! Ou seja, é tudo alumbramento. Vamos à carta:

Porto 4.7. 76

Nei:

Te escrevi acho que faz umas duas semanas, um pouco menos. Você ainda não respondeu, e tudo bem, não se preocupe nem se apresse. Soube pelo Dudu (o San Martin, não o “Magic Stone”, que é meio chatinho) que você saiu da Folha de São Paulo – ou que te saíram, digamos assim. Sempre as sacanagens inesperadas, não é? Então imagino que você deva estar um pouco envolvido com a batalha de grana ou de novo emprego, e, sei lá, espero que tudo já tenha se resolvido ou, pelo menos, que você esteja levando na melhor possível, sem bodiar com isso.


Tô te escrevendo por três motivos, principalmente.

Primeiro: enviar esse recorte, do “Caderno de Sábado” de ontem – uma crítica do Antonio Hohfeldt sobre Outubro. É UMA CRÍTICA ALTAMENTE ELOGIOSA - e eu fiquei contente. Muita gente pixa o Antonio (inclusive eu), mas, não sei, o Appel diz sempre que “no fundo ele é um sujeito bom e esforçado” – é um cara também que apesar dos seus muitos defeitos, tem uma grande abertura. É muitíssimo menos provinciano e cagador de regras que os Neis Gastais e Cristaldos da vida, o que é um ponto (ou muitos) a favor. Além disso, me parece que ele decodificou muito bem o teu livro, que ele sacou, sentiu. Espero que você também fique contente. O Wladyr Nader disse que teu livro era adolescente. Forças! Eu não concordo. Uma vez você falou uma coisa muito bonita, aquilo que “a gente não deve atraiçoar a própria juventude” – e na minha opinião é exatamente isso que o Nader não sacou no Outubro: o compromisso com o novo (que sempre vem, não é Belchior?).

E aqui pinta o segundo motivo desta carta. Seguinte: estive dois dias em Vacaria, fazendo palestras para estudantes do nível colegial, sobre a experiência "Teia" e "Há Margem" e "a novíssima literatura gaúcha". Nei, foi demais bonito. Não dá para contar tudo, seria assunto pruma carta de 50 páginas. Mas o que aconteceu foi que me dei conta que não estamos escrevendo inutilmente, para ninguém ou para nós mesmos. A molecada (em Vacaria!) estava excitadíssima, na biblioteca do colégio tinha "Teia" e também "Há Margem" (a professora de literatura é muito legal), então eles estavam informados sobre você e o resto do pessoal. Senti que estão muito ávidos de uma literatura que fale do aqui-agora, que fale deles também.

Um garoto me falou que não suportava a literatura antes do meu papo porque pensava que “literatura eram só aqueles caras chatos do livro de português: José de Alencar, Raul Pompéia”. Por aí afora. Me deixou muitas coisas boas, uma delas a certeza que minha missão é exatamente essa: fazer as cabeças alheias. Distribuir, salpicar aqui e ali pitadinhas de inquietação, de sonho, também de luta. Uma certeza objetiva (fora de mim) que existo como escritor, você me entende? E que o nosso recado, através do que escrevemos, sem que a gente saiba, está voando por aí – e que nós temos que ser cada vez melhores, mais verdadeiros e mais conscientes do que podemos dar ao outro que nos lê. Isso aí. Pessoalmente, um dia, te conto como foi tudo.

O terceiro motivo é poesia, também. Encontrei uma poeta chamada Adélia Prado, mineira – acho que já te falei dela -, tem um livro chamado "Bagagem". E tenho lido os poemas dela sempre pensando em você. Deu a vontade de dividir contigo e, na impossibilidade de te mandar o livro (não me separo dele), te mando também esses poemas: Grande Desejo, Impressionista, Ensinamento, Um Jeito, Bilhete em Papel Rosa, Psicórdica, Clareira, Cabeça.

É isso aí. Tem muito mais, é um livro farto de singelezas, gosto de bolinho, dia de chuva e café preto. Adélia tem me encantado e me feito ver o mundo de um jeito muito mais simples, “sem sérias patologias”, que existe e que a gente já teve e se perdeu.

Ah, queria te contar também de um sonho castañedistico que tive em Vacaria: muitas coisas, uma festa, eu assistindo do portão uma festa que passava sobre a rua, e a rua era rolante, as pessoas não caminhavam, a rua é que carregava eles. Aí entrei na casa branca, grande, colonial, e tinha uma bacia de louça cheia de objetos, principalmente pedras. Mergulhei as mãos dentro da bacia. A voz da minha avó disse: “São objetos de poder”.

Saudade de você. Um beijo pro Daniel, outro pra Ida. Até de repente, do seu
Caio


RETORNO – 1. Sobre personalidades: é a opinião do Caio, que deixo aqui na íntegra. 2. Gostei muito da resenha do Antonio Hohfeldt. 3. Teia e Há Margem são dois livros coletivos de contos e poemas que foram publicados naquela época em Porto Alegre. 4. Pedi demissão da Folha para trabalhar na IstoÉ onde, aí sim, me saíram. 5. Outubro é meu livro de estréia, publicado pelo Instituto Estadual do Livro –RS em que Caio foi um dos consultores: era preciso três aprovações – uma outra foi do Irmão Elvo Clemente, da PUC. 6. Wladyr Nader escancarou as páginas da Escrita para minhas resenhas. 7. Caio datilografou todos os poemas citados da Adélia Prado. Não reproduzo aqui porque tomaria muito espaço.8. Pelo mesmo motivo só reproduzo a primeira, a segunda e a última página da carta. As outras contém reproduções dos poemas de Adélia. Ao todo, são três folhas escritas na frente e no verso.

CINZEL


Nei Duclós

És imperfeita por falta de um toque
final do cinzel na hora suprema
quando a emoção tirou o prumo
da mão envolvida na obra-prima

Preso no ar, o criador perde a partida
e se deixa levar pela escultura
nada mais era possível na moldura
a não ser o silêncio e a maravilha

És imperfeita, assim consigo modelar
meu sonho em forma de ternura
o que meus olhos trêmulos mostram
na pétala permitida pelo espinho

Ali percorres, plena do encanto
magistral que te define. Mulher
que me conquista apenas com o ser
madrepérola do corpo e do estribilho

Assim posso dizer: ainda falta em ti
o principal: meu coração que pulsa
como trem fora do trilho, palavra
oca por te dar o que não tinhas



RETORNO - Imagem desta edição: Ninfa Salmacis, escultura grega ilustrando mais um poema em homenagem ao tom clássico perdido da poesia brasileira

28 de agosto de 2011

MR. AUGUST: UMA CARTA DE CAIO FERNANDO ABREU


Nei Duclós

Decidi achar as cartas do Caio Fernando Abreu no meu arquivo (soterrado de papéis, acumulados em décadas) . Ele escrevia normalmente para mim nos anos 70,quando por um tempo fomos muito amigos e nos correspondemos, ele em Porto Alegre, eu em São Paulo. Biógrafos e estudiosos já me pediram essas cartas. Uma biógrafa chegou a duvidar da existência delas, já que eu não ofereço a aparência de um capital simbólico suficiente para convencer os deslumbrados. Mas por algum motivo não cedi.

Agora vou revisitar cada uma delas e aos poucos vou postando por aqui, sem obedecer a nenhuma cronologia. São todas cartas legítimas, originais, com a assinatura do amigo que já tinha grande prestígio na época e se transformou num escritor cult, numa celebridade nacional, queridíssimo por muitos milhares de leitores. Divulgo para o meu país conforme recebi: com o espírito desarmado e abraçado ao grande amor que os escritores do Brasil tem pela literatura que aqui se faz e aqui se paga com a vida.

Com vocês, o Caio que me escrevia e foi uma personalidade chegada, um amigo por algum tempo próximo, irmão das letras e generoso em sua amizade e talento. A primeira, que divulgo hoje , é do início de agosto de 1976. Foi escrita em papel pardo comum, a máquina e corrigida a caneta. Tem algumas frases antológicas, que poderão ser notadas ao longo do seu texto.



Porto, 2. 8. 76

Nei:

Nosso velho conhecido – Mr. August – chegou ontem, vestido a caráter: aquele velho terno cinza muito molhado, e tão velho que já tem algumas manchas de limo. Agora é preciso hospedá-lo por 29 dias. E resistir, já que ele insiste sempre em nos puxar para dentro e para baixo. Resistiremos.

Junto com ele veio também – graças! – um pouco de luz, acho que para contrabalançar: a Pifa, um pouco mais ruiva e muito mais bonita. Deu notícias de você, da Ida, Daniel e Juliana (as mãos de Juliana já estão famosas aqui no Sul, dizem que são longuíssimas, expressivas, espirituais). Eu tinha recebido os teus BIC de pena (lindos) e a notícia do nascimento dela, fazia algum tempo. Devia ter respondido, mas a barra andou pesando, tremores de terra internos e também bodes de fora – mortes, doenças na família (avôs, avós, tias – essas coisas).

Agora estou recomeçando/refazendo. Batalho emprego COM vontade de achar y me vuelve a la universidad, dia 9. Independência ou morte é a ordem do dia. Tenho escrito bastante, umas coisas muito cruéis, às vezes até meio porcas, genetianas. Por aí você pode supor o estado da cuca. Mas tudo bem: botar o horror pra fora é um dos jeitos de não deixar que ele nos esmague.

Estou mandando procê o recorte duma entrevista com o Mário Quintana, saída no Caderno de Sábado, e onde você – glória!- pinta como um dos poetas preferidos dele. Congratulations efusivas! Acho que é o maior elogio que você já recebeu em toda a sua vida. Confesso, fiquei com inveja. Tá saindo um novo livro dele – “Apontamentos de História Sobrenatural”. Um dos poemas que mais me fez a cabeça é este aqui:

O MORITURO (Mario Quintana)

“Por que é que assim, com suas caras imóveis e simiescas,/ os vivos nos devassam num cínico impudor?/ Por que nos olham assim – como se fôssemos cousas -/ quando os nossos traços vão repousando, enfim,/ na tranqüila dignidade da morte?//Por que é que eles, com a sua obscena curiosidade,/ não respeitam o até mais íntimo da nossa vida/ - ato que deveria ser testemunhado apenas pelos Anjos?// Ah, que Deus me guarde na hora da minha morte, amén, / que Deus me guarde da humilhação deste espetáculo/ e me livre de todos, de todos eles:// não quero os seus olhos pousando como moscas na minha cara./ Quero morrer na selva de algum país distante.../Quero morrer sozinho como um bicho!”

Sinto saudade de ti. Sinto falta. Os amigos estão raros, distantes, esquivos. Não deu para viajar em julho, talvez no fim do ano, ou de repente, sempre pode ser.

Que teus três companheiros estejam bem. Um beijo para eles. Até a outra.
Teu
Caio



RETORNO - Foi assim, naquele distante agosto, que Caio me falou de suas leituras, seus planos, seu trabalho, suas faltas e me informou sobre o elogio do Quintana para o poeta estreante. E se despediu beijando as três pessoas da minha família, mulher e um casal de filhos (o terceiro veio dois anos mais tarde). Deus guarde Caio, que entre nós cultivou a amizade sincera e a proximidade solidária e calorosa.

LABIRINTO

Nei Duclós


Tenho sofrido de sonambulismo
labirinto de cenas que alucinam
zumbi manipulado pelo abismo
alvo submisso na mira de Cupido

A mais bela pastora está ferida
pela agulha azul da poesia
Não tenho a chave para o enigma
e durmo na rua entre mendigos

Sou um dos reféns de sua glória
vôo inacessível de andorinha
jogo em tabuleiro já perdido

Por isso amanheci antes da hora
mantido na doçura deste exílio
e no laço do qual não serei digno

27 de agosto de 2011

VENDA NÃO É ESPAÇO DOMÉSTICO


Tanto trabalhei em jornalismo de negócios que virei consultor espontâneo, desses que deitam falação em balcão de subúrbio, à falta de um curso sistematizado que poderia garantir uns trocados para viagens. Sou escutado com tolerância, pois abuso de minha condição de cliente e só pago depois de soltar umas dizidas, uma covardia nem sempre bem sucedida. Hoje por exemplo é um dia que minha porção empreendedor se manifesta. Pois tenho contato com equívocos comuns que afastam clientes e o resultado está na vista: portinhas que fecham, idéias que acabam em dívidas. O motivo é simples e não é falta de sorte: é que se costuma levar para a empresinha todos os vícios domésticos. Bato sempre nessa tecla.

É natural que seja assim. Tradicionalmente, a venda no Brasil era uma extensão da casa. Ou melhor: a moradia ficava exatamente no negócio. Isso parece não ter mudado, está impregnado no imaginário e acaba prevalecendo nos hábitos, apesar de toneladas de conselhos em contrário. Onde falha o convencimento? Nos nós atávicos, herdados e na interação com o ambiente anti-empreendedorismo que ainda vivemos, já que os tributos, a corrupção, a falsa fiscalização, a concorrência predatória, o olho gordo e o roubo puro e simples assolam as atividades profissionais por conta própria. É mais seguro refugiar-se num salário de empresa consolidada e não arriscar prestar serviços de cabeleireiro para pets da vizinhança, já que sempre se corre o risco de ficar na mira de algum marginal que precisa de liquidez para o crack.

Mas como despesas não tiram férias e é preciso sobreviver de alguma forma, estamos rodeados de padarias, lojinhas de roupas, casas de embalagens, emporiozinhos coloniais, postos de gasolina, balcões de xerox, tendas de feiras, queijarias, 1,99, açougues, caldo de cana, lava carros, ferragens e por aí vai. Há muita prosperidade, apesar dos empecilhos, mas há também marcação de passo, já que somos um povo fiel às origens, e não abrimos mão não só de hábitos, mas até de biotipos. É engraçado chegar aos 62 anos no Brasil, como eu, e notar que todos os modelos físicos de adultos – do sujeito de bigodinho fino à matrona retaca – são bem mais jovens do que eu. É porque não mudamos nunca, mesmo usando jeans meia canela (a mais execrável moda de todos os tempos) ou jogging em shopping.

Mas quais são os vícios domésticos que assolam as pequenas empresas? Primeiro, a desconfiança com o cliente. Em vez de participar de um esquema eficiente de segurança e flagrar ou impedir a ação de ladrões, os donos de biroscas adoram achar que cliente é quem rouba. É como se o cliente fosse um invasor do espaço privado e estivesse ali só para se aproveitar. O objetivo de um negócio é o lucro e isso só se consegue desatando os nós do relacionamento com os clientes. Se você olha meio de viés para quem chega, não terá muito futuro. Mas existem outros vícios.

Conversar animadamente entre si no balcão, no caixa e deixar a freguesia dependurada num atendimento que nunca se desata. A pessoa que vai comprar quer ser valorizada, pois deixará uma coisa rara ali, o dinheiro conseguido com esforço. Se a empresa que presta o serviço ou vende o produto não dá a mínima, então o cliente se ressente. Em farmácias, a empurroterapia faz parte dessa indiferença: o que vale é fazer do freguês gato e sapato, apenas uma fonte de arrecadação de recursos e não uma pessoa que saia satisfeita do seu negócio e assim possa garantir, pela fidelidade da volta, o lucro almejado.

Uma coisa insuportável é achar que a birosca é núcleo de catequese. Colocar som alto de igreja na hora do pagamento, torcer a cara para quem compra cigarro, dar toques sobre obesidade na frente de fregueses acima do peso, receitar gatorade no lugar de soro doméstico para mães preocupadas, tudo isso faz mal à saúde da empresa. São coisas que noto diariamente. Não que onde moro só exista esse tipo de tratamento. Há muita gentileza e boa vontade e muito esforço heróico dos empreendedores. Mas noto que em muitos lugares onde já morei erram ao desligar a energia à noite para economizar e assim deixar os lacticínios rançosos. Ou apagam as luzes de dia, o que torna o negócio um ambiente soturno.

Abertura de crédito, sob medida, para clientes especiais, faz parte do jogo. Nem sempre a freguesia está com liquidez disponível e as compras precisam ser feitas. Cartão de crédito, com seus juros exorbitantes e caça aos inadimplentes, além de cheques, um instrumento sem credibilidade nenhuma, abrem a guarda novamente para a velha caderneta. Isso sim é uma tradição que deve ser conservada,mas de maneira criteriosa, pois há risco mesmo de levar um chapéu.

O que faz um poeta envolvido com esses assuntos? Tudo é linguagem e a ação empresarial, por menor que seja, formata um discurso. Precisamos interferir nele para mudar algumas coisas. É no que acredito.



FELLINI: A FESTA DA INSANIDADE


Nei Duclós

O tema de Fellini é a indústria do espetáculo: a fotonovela em O Sheik Branco, o cinema em Oito e Meio, o circo em La Strada, o concerto em Ensaio de Orquestra, o jornalismo em A Doce Vida, o turismo em La Nave Va, a publicidade em Beba Mais Leite. Seu enfoque é a Queda dos protagonistas em cada um dos vetores dessa indústria: o falso herói da fotonovela, o cineasta enganador e vazio, os artistas-mendigos de rua, os músicos demitidos, o jornalista sensacionalista, o viajante golpista, a estrela decadente dos comerciais.

Avesso da indústria cultural bem sucedida, esse mundo de segunda categoria é mostrado cruamente por meio do gesto “natural” da vida diária, inspirado na comedia della´arte, de funda raiz popular, contaminando o Espetáculo: eis a matéria-prima deste cinema de primeiro time. O truque de Fellini é apresentá-lo por meio do Exagero – que é a percepção encantada e assombrada da Inocência diante do Mistério. Assim, o universo da decadência das representações no palco, na praça, no pátio ou na tela, sopra sem parar a percepção para o espaço mítico da memória.

Com isso, entroniza-se o Princípio – a primeira visão de mundo, quando somos pequenos diante de tudo. O toque mágico da Inocência deixa-se seduzir, sem saber, pelo terror da Queda. Mulheres assombrosas, falsos heróis galantes e homens truculentos levam crianças ou donzelas para o abismo dos jogos perigosos, para o aconchego dos lugares fechados, para o brilho das paisagens movediças.

Mas há também pecado, embora oculto, no resgate da Inocência por meio da memória. Esta, é um recurso do adulto enjaulado num presente insuportável, que revolve a lembrança, em busca de uma saída. É por isso que o mundo desmascarado se rebela (melhor, se vinga), para ter seu quinhão de dignidade. O bordel torna-se feminista em Mulheres e a modelo desce do out-door para peitar o moralista em Beba Mais Leite. Mas essa reviravolta, que promove a revelação por meio da denúncia, acaba em arrependimento, como em La Strada, quando é tarde demais para reconhecer os sentimentos; ou em tentativa de suicídio, como em Oito e Meio; ou em desespero em quase todos os filmes ou simplesmente em delírio.

Não há salvação para personagens, instituições, atividades ou espectadores nesta arte, onde todos sucumbem diante da lucidez de Fellini, que filmou a insanidade como quem organiza uma festa.


RETORNO - Imagem desta edição: apoteose em Oito e Meio.

26 de agosto de 2011

SEREIA É SEMPRE MULHER


Nei Duclós

Sereia é sempre mulher
escamas de amor perfeito
voz jogada no convés
anzol em busca do eleito

Enredo liso de peixe
fim de linha numa rede
respiro de olhar mortiço
artimanhas da aparência

Basta um segundo perto
para cair em seu leito
o mar, mergulho sem volta
bacanal de cama estreita

onde só cabe os amantes
trespassados de retoço
flora perdida de Atlântida
rodízio extremo de gozo

Sereia, que seja mulher
que todos temem a bordo
assim Netuno descansa
na sua faina de assombros

E se acaso um marujo
surdo pegá-la no jeito
o capitão casa os pombos
o que no fim dá no mesmo



RETORNO - Imagem desta edição: Nascimento de Vênus (detalhe), de Boticelli.

25 de agosto de 2011

JACK O MARUJO NO COMANDO


Nei Duclós

“Como vivi até hoje sem conhecer Jack o Marujo? Genial, para dizer o mínimo”, disse @lilianbuzzeto, uma das mais veementes e indignadas escritoras brasileiras que navegam na internet full time. Isso incentiva este jornal e colocar aqui mais uma seleta de grandes tiradas do velho capitão. O fato é que o cara não para de falar, já que sempre tem alguém lhe fazendo alguma pergunta.

Respeitamos sua opinião, disse o capitão dos portos. Então passe uma vassoura no tombadilho, disse Jack o Marujo

Vamos confiscar o barco e o sr. vai para o Asilo dos Velhos Marinheiros, disse a autoridade. "Nosso asilo é o alto mar", disse Jack o Marujo

Cansei de navegar, vou ser funcionário público na capital, disse o Imediato. Melhor, oferenda ruim o mar devolve, disse Jack o Marujo

O sr. não tem mais condições de levantar âncora, disse o fiscal. Não se preocupe, disse Jack o Marujo. Quando quero partir basta um suspiro

Estou fazendo matéria sobre a revolução no comportamento dos anos 50 aos 70, disse o repórter. Elvis e Raul estão mortos,disse Jack o Marujo

Vamos combinar que você seja um idiota, disse Jack o Marujo. Tudo o que disser no Twitter será uma bosta. Isso não desqualifica o Twitter

O Sr. vai embora? perguntou a admiradora. “Um marujo é feito de partidas. O reencontro no cais é só mais uma forma de solidão”, disse o velho marinheiro

Fica com Deus, disse a crente. Deus tem outro compromisso, disse Jack o Marujo

O que causa as guerras? perguntou o estudante. Testosterona vencida fazendo pose, disse Jack o Marujo

Não tenho mais saco para midia social, disse o micreiro. Ótimo, disse Jack o Marujo. Vai lá no armazém e me traz uma garrafa de rum

Muito frio nas viagens? perguntou o meteorologista. "O problema não é o clima em alto mar, mas a dureza em terra firme" disse Jack o Marujo

O sr. já discutiu a relação?perguntou a conselheira.Já, mas não levo jeito.Por falta de argumento passo a mão nas coxas, disse Jack o Marujo

"Acho que ela gosta de mim. Sempre que me declaro, ela ri", disse o Grumete. Procure outra, disse Jack o Marujo

Já pedi desculpas,disse o Grumete. Fez bem. Agora vista a melhor roupa e a convide para dançar. Não vá contar sua vida, disse Jack o Marujo

Cante um poema, disse Jack o Marujo. "Morri, mas ninguém deu bola. Aí desmorri. O amor, que está acima de tudo, me despertou",disse a sereia

Quer dizer que amor é só imaginação? perguntou o Grumete. É mais do que isso, disse Jack o Marujo. É anzol, mas você precisa usar o arpão

Não quero ninguém, disse a narcisista. É bonito de se ver esse amor entre você e você mesma, disse Jack o Marujo

O consultor entra na sala para fazer a palestra e o primeiro da fila avisa: “Se falar em quebra de paradigma, morre”. Adivinhem quem foi

“Acham que sou importante e querem me conhecer. O que faço?” perguntou a celebridade virtual. Confesse que você é pobre, disse Jack o Marujo

"Sorte da surfista que foi salva pelo sr.! Rolou algum sexo no barco?" perguntou o repórter. Tua mãe não estava lá, disse Jack o Marujo


RETORNO - Imagem desta edição: o capitão Ahab, genial performance de Gregory Peck em Moby Dick.

UM POEMA QUE FAÇA COMPANHIA


Nei Duclós

Um poema que faça companhia
como irmão que volta do exílio
amante que faz a cama
pai que te dá colo

Um poema que faça companhia
como fada enviada pela Lua
aia em bodas de safira
faísca da estrela guia

Um poema que faça companhia
sobre os destroços e ruinas
sobre sonhos sinistros
campos de veneno

Que seja teu forte, teu corpo
no embate com o monstro
e óbvio feito açoite
estalando no breu

Um poema ao teu lado, criatura
de sopro e esforço
junto ao barro, o amor
que esconde o escuro


RETORNO - Imagem desta edição: safira. Tirei daqui.

24 de agosto de 2011

O ROLO DA SITUAÇÃO


Nei Duclós

Nem bem a maquiagem para pintar a cara saiu da gaveta e a faxina já deu sinais de cansaço. Era tudo mentira, claro, como diria Tarso de Castro. Base aliada não abre mão do sistema, que garante o acesso indefinido ao butim, da bufunfa desviada desde a merenda escolar municipal até o uso do helicóptero de 16,5 milhões da PM para o lazer. Mas as evidências não desarmam os espíritos aparelhados, contra os quais debato incessantemente no Twitter e Facebook. Vejo também nos blogs cabeças esclarecidas embarcarem na ilusão de que o Planalto estaria refém do esquema que capitaneia. Isso é tão absurdo quanto um unicórnio sendo devorado por borboletas asiáticas. Qual a fonte do rolo da situação?

A fonte dos equívocos é o diagnóstico que se faz da realidade. É a percepção formatada em linguagem que está atravessada por nós sem perspectiva de solução. Isso se reflete em todo o espectro social. Nem sei por onde começar. Podemos pegar o caso dos menores de idade. Para defendê-los, criou-se um estatuto que serve também para proteger o crime, já que o mandiocão de 17 anos, que estupra e mata, é considerado “dimenor” (corruptela de linguagem jurídica que reflete bem a incapacidade de lidar com o problema). E meninos são os aviões do tráfico. Qual o rolo?

A humanidade não nasce inocente, nasce zerada, o que é outra coisa. Se não implantar nela a cultura, brutaliza. Se a lei não pressionar, será criminosa. Crime, em qualquer idade, precisa de punição. Não adianta apenas enxugar gelo e trancafiar os meliantes mirins que aprontam sem parar, como já está acontecendo com gangs de crianças de 10 anos que apavoram hotéis e pedestres e quando presos destroem a delegacia. Precisa enquadrá-los cedo. E isso só pode ser feito por uma rede idônea de autoridades, o que não temos, pois o crime está instalado na cúpula e se dissemina por todo lugar.

Podemos pegar a literatura. A situação é complicada. Toda a pressão exercida pelos autores emergentes (em cada região, milhares de autores) ou marginalizados (em cada geração, milhares de escritores) bate no paredão do cinismo instalado no poder, nos concursos nicados (como todos sabem, principalmente os que envolvem altas granas).

Como há incompetência para conviver com tanto barulho, costuma-se selecionar algumas cabeças coroadas e atribuir a elas tudo o que de importante ou interessante é escrito pela massa de escribas nolimbo. Por isso hoje temos Einstein autor de auto-ajuda, Mario Quintana injustamente sendo alvo de poesia de platitudes e a Clarice Lispector, coitada, assinando tudo que é abobrinha.

A culpa é da internet! dizem os famosos analógicos, os que não suportam a concorrência de milhões de novos escribas que a cada segundo emitem suas obras. O que era dito antigamente como pose – aquele tom democrático dos falsos gênios que falavam “ora, sou apenas uma pessoa comum”, mas ficavam sentados no trono - hoje é uma realidade incômoda para quem quer disputar lugares bem fornidos, como academias, diretorias, exílios dourados, aposentadorias régias etc.

Na política temos uma ditadura civil mascarada de democracia, como canso de falar há anos por aqui, uma evidência que cada vez mais é provada pelos fatos. O rolo da situação atingiu todas as instituições, já que a condenada, juridicamente, distribuição de dinheiro público para comprar votos no Congresso, o mensalão velho de guerra, prescreve nas fuças da nação indignada. Enquanto isso, continua a terceirização de responsabilidades para o eleitor acossado, que não tem opção senão as vetustas raposas, os burocratas novidadeiros, os palhaços introduzidos nas campanhas por dinheiro farto etc.

O que você fizer em qualquer nível de vida social terá sempre pela frente a negociata, o acordo pífio, a imposição bruta. Não há margem para a inteligência. Esta, só tem uma saída: desmascarar o discurso que segura as pontas da canalha, para criar condições de uma ação mais efetiva, que não caia na esparrela das caras pintadas ou das fichas limpas (que só servem para limpar a ficha dos fichas sujas). Convencer quem está envolvido por ela que o buraco é bem mais embaixo. Argumentar sem emitir “opinião”, já que não implica voluntarismo do pensamento e sim lógica e transparência, para usar uma palavra contaminada.

O discurso fajuto toma conta do sistema corporativo, todo ele envolvido pela especulação financeira, a entrega da soberania à China,o arrocho tributário, a exportação de proteínas e de recursos naturais, um regime que gera bilionários e miseráveis, enquanto as casinhas dos pombais da ditadura de sempre proliferam enriquecendo tubarões imobiliários e aimenta o discurso oficial, que se manifesta por campanhas publicitárias milionárias. Bandidos atacam postos policiais e estes fecham. Qual a solução encontrada? Propaganda cara mostrando montes de policiais fazendo continência.

É porque o discurso decide a parada, a formatação do imaginário é quem tem a chave da cadeia. Precisamos achar o segredo desse mecanismo e escancarar as portas para a liberdade.

RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

23 de agosto de 2011

AS RUÍNAS DO DISCURSO


Nei Duclós

Sobre o livro “Um copo de cólera”, de Raduan Nassar

A oposição fundamental que existe neste pequeno texto de Raduan Nassar não é entre um homem (desiludido e de meia idade) e uma mulher ( jornalista e liberada) È, antes, um duelo entre a linguagem e o discurso, entre o corpo e a cólera. São dois elementos que, aparentemente feitos da mesma matéria-prima, possuem rituais diferentes e evoluem em espaços desiguais.

O corpo ( a linguagem) é a redenção permanente, o desdobramento do prazer através da proximidade, do detalhe oculto numa vitrine de formas. A cólera ( o discurso) cabe num copo: sua arma é a transparência e o seu desespero é a própria limitação. Transbordar significa também apagar-se: por isso, a desproporção entre os inimigos define o desenlace. Para o escritor, a vitória da linguagem sobre o discurso é o único desfecho insubstituível. Pois vencer é cumprir o destino, é redefinir o drama, é render-se ao mito.

Uma rendição honrada que consegue também subverter a ideologia da guerra: as frases não são enxutas nem curtas, são úmidas e enormes; a palavra, mais do que um signo, é a mão, um braço; a pontuação não funciona apenas como recurso, são feridas abertas; os capítulos não compõem um jogo, não brincam de roda, nem obedecem aos caprichos da leitura: ao contrário, assumem um caminhar, criam a carne.

O casal criado por Raduan Nassar encarna a complexidade dessa trama múltipla, onde o texto, única realidade, procura a transfusão salvadora. Abre pacientemente as veias, irriga o território, modela as curvas, incendeia o sexo. Nada resta mesmo para o escritor, explorado e nu em seus segredos, do que insistir no sagrado, manobrar o silêncio, conviver com a dissonância, extrair o sopro.

O escritor sabe que a linguagem, para sobreviver à pulverização, ao ataque do discurso, recolheu-se às fontes e espera. Contrair suas águas, penetrá-la com a degradação da cólera, é provocar o debate. Seguindo no mesmo ritmo: é preciso substituir a mímica pela química, a ciência pelo feitiço, a emoção pelo esporro, o coração pelo toque.

Só assim é possível entender o abismo do casal de Raduan Nassar, separado pela linguagem em ruínas - o discurso -, mas unido pelas verdades do corpo. A narração - pólvora seca - acende o estopim: a cólera toma a maior parte do tempo, mas a carne encontra o seu caminho ao transbordar sobre si mesma. Ela assim define o forma, selecionada do escombro. Aqui, nenhuma rendição. Apenas o ofício de escrever e seu espólio: o livro, em plena forma; e o escritor, seu translúcido operário.

RETORNO - Publicado na revista SENHOR, em 17 de outubro de 1984.

RECITAL


Nei Duclós

Recito um verso por minuto
alimento o tempo que furto
urge o confronto maiúsculo

Reviro o acervo de sustos
herança que deixo nos muros
bicada por pássaros bruxos

Torço os arames dos vínculos
remo no rumo dos truques
solto os cachorros nas urzes

Preciso de verbo em cartuchos
disparo nos alvos ocultos
acerto em quem se descuida

Vogal de caneta esdrúxula
moral de almanaque futuro
rondó de teatro nas nuvens

Recebo uma carta de surras
percebo o momento da luta
recito este verso por último


RETORNO - Imagem desta edição: cartaz-poema de Alexander Rodchenko. Tirei daqui.

20 de agosto de 2011

AMOR É RUPTURA


Nei Duclós

Amor é ruptura, do breu extrai
a ametista, a bruma mista
de capuz e Lua

Amor é crua dimensão da vista
quando apruma a coluna
sobre a proa

Amor é fria contenção de cítaras
palavras sem sentido
só balido e urro

Amor é composição de espinhos
ordem na fogueira
valsa de conflitos

Amor é duende quando sai da gruta
e assombra a profecia
com estampidos

Amor se ouve além de Júpiter
na viagem ultra-estelar
do nosso grito


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

ALMANAQUE DE AGOSTO


Nei Duclós

O mês de agosto foi generoso na safra de boas frases no twitter. A seguir, coloco algumas, seguidas de outras que versam sobre dicas, economias e coisas quetais.



Refletir é para espelho. Gente diz na lata

Quem matou Norma foi a Exceção

Tudo se repete, com poucas exceções, que são a pior parte

O governo é uma droga. FHC quer liberar

Os outros são os outros. O inferno são esses aí

Hacker do Oriente Médio, baterista e defensor do meio ambiente, chama-se Al Goritmo

Os arqueólogos sabiam que aquele lugar exato tinha sido a Atlântida porque descobriram gigantescas estátuas de Anselmo Duarte e Eliana

Impressionante: garrafas PET serão usadas como garrafas PET

Pronto, acabou o Dia dos Pais. Devolvam os presentes

O Brasil não tirou milhões da pobreza. Transformou milhões de pobres em consumidores inadimplentes

O mais trágico é computar o montante da dívida da "nova classe média" como receita e especular em cima

Laranjas para pagar propinas agora serão fornecidas pela agricultura

Se a fala fizer muito sucesso antes de ser dado o crédito, o emissor se empolga e cala sobre esse detalhe

Liberam verbas, liberam suspeitos, liberam bandidos, liberam ministros, liberam governo. Deve ser o tal liberalismo

Tem gente que em vez de ir para um spa ficam fazendo spam sobre dietas

Orkut é castelo mal assombrado de parque infantil. Spam é pistoleiro de aluguel. E-mail é motoqueiro. Face é promoter. Twitter é repórter

Quando os atores da Globo desconfiam, eles mexem os olhos para a direita e a esquerda.Arregalam quando se surpreendem e apertam se querem saber

Em política, fazer o dever de casa é contar o dinheiro da propina depois do jantar

Transparência é quando todo mundo enxerga o roubo

Montante da dívida impagável da "nova classe média" é computada como receita pela especulação. Equivale ao crédito podre imobiliário de 2008

Mantenha distância e boas relações com desconhecidos. Finja que entendeu o que ele tentou lhe dizer tentando quebrar o gelo. Treine caras

Prepare bem o leitor para o que você vai dizer. Anuncie, encha-se de dedos e na última linha, diga! Essa é a abertura do seu texto. Refaça

Escreva cem linhas. Jogue no lixo e tente dizer, de memória, tudo aquilo em 140 toques

As falsas profissões medraram junto com a explosão da indústria financeira internacional. Governança de conteúdo. Gestor de biodigestor.

Agora, um bom médico ou um bom engenheiro está cada vez mais raro. Sobram auditores de rolhas impregnadas de bouqet rose

Pagando caro pela sobra da proteína exportada, brasileiros remuneram a quebra de preços dos produtos agrícolas provocada pela especulação

Se o sujeito não estiver sendo regiamente pago, não possui capital simbólico.A besta é convocada para pontificar porque a cama já está feita

O desprezo intelectual tem origem numa fonte remunerada. O dinheiro pago empresta esse ar de soberba de algumas cabeças em relação ao resto

"Mas este Foucault é edição recente!" disse o saqueador de livraria. "Na próxima roube Harry Potter", explicou o receptor do mercado negro


RETORNO - Imagem desta edição: Eliana e Anselmo Duarte, estátuas de Atlântida, numa piada exclusiva para veteranos.

O SOMBRA


Nei Duclós

Sempre que chega perto da meia noite,
os relógios sentem um calafrio.
Não é por nada. É que nesse horário
costuma passar o temível Sombra

Sombra gosta de entortar relógios,
fazendo-os andar para trás. Quando
conseguir reverter todos os que há
no mundo, amanheceremos de uma vez

Os relógios sabem que Sombra se dedica
a uma missão impossível. Poderiam apenas
achar que é um chato, mas existe
algo nele que mete medo

Talvez seja o jeito meio curvado.
Ou seu passo pesado, como betume.
Ele deixa marcas por onde pisa.
Os panos morrem tentando apagar os rastros

Sorte que ele aparece só à meia noite.
Seria impossível aturá-lo a cada badalada
Sorte, não. Agora é a sua hora.
Há pânico no Tempo

Agora! Relógios com ponteiros
são os que mais sofrem nas mãos do Sombra.
Os digitais também não escapam,
mas por qualquer coisa, apagam-se


RETORNO - Imagem desta edição: The Shadow, criação de Walter B. Gibson. Bom nome. Inspira novos personagens.

JACK O MARUJO PRONTO PARA VIAGEM


Agora é oficial: massa de admiradoras e admiradores lotam a caixa postal daquele barco ancorado à beira mar. Autoridades enviam mensagens convidando Jack o Marujo para eventos importantes. Tem uma agenda cheia para apresentações de norte a sul do país. Recebeu um gentil recado dos argentinos de Mendoza que querem vê-lo ao vivo e usufruir de suas tiradas. Jack até está caprichando no sotaque. Diaz cueca cuela como ninguém. Mas temo que ele desista da fama súbita e fuja para o alto mar. Está acostumado. E sente saudade das escamas. Não há sereia em terra firme. Enquanto ele está por perto, aproveito para anotar suas mais recentes declarações.

Tem sereia de coração partido que foge levantando vôo, diz Jack o Marujo. Ela procura o cara solitário do alto da gávea

Não gosto de matemática, disse o Grumete. Pois volta e avisa o cara que se errar o troco de novo eu penduro os dois no mastro, disse Jack o Marujo

Hoje é o Dia Mundial da Sereia, disse o Imediato. Bem que eu notei que estavam todas emburradas, disse Jack o Marujo. Esqueci da data

Deixei o governo, agora vou ser um sujeito ético, disse o oportunista. Impossível, disse Jack o Marujo. Você não cabe mais no personagem

Queria fazer stand up mas ninguém acha graça, disse o Grumete. Diga algo ofensivo, mas como se fosse um bom dia, disse Jack o Marujo

"Todas para o tombadilho!" disse Jack o Marujo. E os homens? perguntou o grumete. "Esses pra prancha.Tubarão precisa sobreviver"

O sr. então não vê o noticiário de TV? perguntou o foca. Não, minto por conta própria, disse Jack o Marujo

Foste à passeata contra os desmandos? perguntou a militante. Desisti, disse Jack o Marujo. Quem protesta não pode ser gordo. Não convence

Está lendo o jornal do século passado! disse o gari. É divertido, disse Jack o Marujo. Principalmente as notícias sobre o futuro

Meça suas palavras! disse o catequista. Já medi, disse Jack o Marujo. Tem as mesmas dimensões da minha adaga.

O sr. faz o maior sucesso com as mulheres, disse o Grumete. A concorrência anda fraca, disse Jack o Marujo

O Inferno são os outros, disse o intelectual citando Sartre. Os outros são os outros . O inferno são esses aí, disse Jack o Marujo

Você me entende? perguntou a bela senhora. “Não, mas não vem bem ao caso”, disse Jack o Marujo

"É só o querer", explicou Jack o Marujo para o casal."Independe às vezes até de corpo. É aquele pote de mel que sobe pelo sangue da vontade"

“Perca seu tempo com o que você realmente acha importante. Como desenhar nuvens ou imaginar naufrágios. Se alguém interromper, rosne” (JoM)


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

19 de agosto de 2011

NOVO TESTAMENTO


Nei Duclós

Se Deus fosse um pesadelo
a chance de acordar seria o tempo
e o gosto de dormir a nossa igreja

Ninguém poderia combatê-lo
a não ser o sonhador e sua teia
cercando a neve em incêndio

Abraçado ao luar, viria o peixe
nesse ataque feito de surpresa
e pássaros voando sobre o gelo

Mas despertar não seria Deus exposto
em carnes penduradas pelo susto
ou asas condenadas à frieza

O levante se faria em outro plano
com o avanço da manhã de seda
desabando os materiais do sonho

Deus assim mostraria um novo rosto
aberto como alguém que vem de longe
oculto para não perder o fôlego


RETORNO - 1. Imagem desta edição: Cristo Redentor em reforma. Tirei daqui. 2. Poema do livro No Mar, Veremos, já postado aqui no Diário da Fonte em 2003.

16 de agosto de 2011

ARRIETTY, A CHAVE DO TAMANHO QUE ABANDONAMOS


Nei Duclós

Em 1952 a inglesa Mary Norton começou a lançar uma série de livros que no Brasil, quando traduzido mais tarde, ganhou no nome de Os Pequeninos . No original é The Borrowers, ou Os Emprestadores. É sobre seres minúsculos (4 cm) que moram escondidos nas casas e tomam emprestado tudo o que for necessário para viver. Fica assim defendida a ética desses personagens, que não seriam ladrões, mas pessoas decentes, pois não se apropriam do que pegam, apenas as usam. Para devolver mais tarde? Não faz sentido, mas o importante é não dar mau exemplo ao público infantil. A não ser que seja uma representação da dependência entre espécies diferentes, fundamental para a sobrevivência de todos.

Dez anos antes, em 1942, Monteiro Lobato lançou sua obra-prima, A Chave do Tamanho (sempre imaginei que esse livro daria uma magnífica animação) sobre como a humanidade ficou minúscula e teve que enfrentar a vida contra gatos, pássaros e outros predadores. É exatamente o que acontece na história inglesa, adaptada em 2010 de maneira genial pelo estúdio do mestre japonês Hayao Miyazaki. A direção de Kari-gurashi no Arietti (Arrietti Pega Tudo Emprestado), ou simplesmente Arrietty, a garota que vai completar 14 anos e mora com os pais e é descoberta por um menino normal, é do discípulo de Hayao, o jovem talento de 37 anos Hiromasa Yonebayashi, que trabalhou no departamento de animação dos clássicos Princesa Mononoke, A Viagem de Chihiro, O Castelo Animado e Ponyo – Uma Amizade que Veio do Mar.

Quando lembramos de Walt Disney,queu assinou tudo o que talentos da sua equipe criaram (só mais tarde ficamos sabemos de Carl Barks e outros criadores), temos de prestar atenção na seriedade e na ética do gênio Hayao, que assim repassa o crédito para quem o acompanha e aprende com ele no seu Studio Ghibli. Arrietty é sobre um tema recorrente, o rito de passagem da menina para a mulher, como acontece tantas vezes nessas obras-primas da animação japonesa. Para variar, o filme é um assombro visual e narrativo, com detalhes impressionantes e uma ação pautada pela perseguição aos pequeninos e como eles fazem para sobreviver. O foco é o amor, a vontade de viver e a fantasia.

O garoto normal que descobre a garota minúscula sofre do coração e está na casa da avó descansando, deitado a maior parte do tempo. É obrigado a se mexer quando a malvada empregada da casa, Haru, descobre a existência da mini-família e decide chamar os Exterminadores. A família dos pequeninos pode ser vista como fruto da imaginação do garoto confinado, que precisa de estímulo e apoio, já que sofre de uma orfandade brava, pois perdeu o pai e a mãe vive viajando. Essa fantasia, confinada no porão, aflora em forma de menina-moça, a garota corajosa que tenta romper os limites familiares estimulada pela curiosidade própria da idade e para cumprir seu destino de criatura amorosa em busca da realização.

O encontro e a despedida entre os dois são duas cenas antológicas, de fazer chorar as pedras. A impossibilidade do amor em dois mundos paralelos e incomensuráveis, ligados por um sentimento confuso e esplendoroso, jorra nesses momentos encantadores e toma conta da tela. Os dois ganham algo com o sonho que os aproxima: ele sabe que para se sair bem da cirurgia precisa acreditar em viver e ela descobre que para crescer precisa romper com a tradição e ao mesmo tempo manter-se fiel aos princípios que definem a decência de seu ambiente.

A música, maravilhosa, do filme foi composta pela francesa Cécile Corbe. Arriety foi lançado há poucos dias na França e na Inglaterra e está para chegar ao Brasil e aos Estados Unidos. O Brasil já tinha o plot, mas vocês sabem o que fizeram com o Sítio do Pica-Pau Amarelo: destruíram tudo na TV. Tínhamos estatura, tínhamos tamanho e dispúnhamos da chave. Mas foi tudo abandonado. Pior para nós. Os estrangeiros sabem o que fazer com uma idéia brilhante, que é clássica na literatura, a começar pelas Viagens de Gulliver.

Depois de ver, emocionado, a história da menina que guarda para sempre o amor do garoto que a descobriu e protegeu, liguei na TV aberta. Passava um filme asqueroso, numa cena de banheiro,alguém travestido fazia caretas sentado no vaso. É assim que a bandidagem funciona no Brasil: desabitam o espírito da coletividade com toda sorte de baixaria e deixam no limbo as maravilhas produzidas na nossa época, que tentam exatamente reverter a avassaladora onda de barbárie que toma conta do mundo.

RETORNO - Algumas informações para este artigo foram tirados do IMDB, o grande portal de cinema mundial e deste site.

15 de agosto de 2011

JACK O MARUJO PESA A BARRA



Nei Duclós


Jack o Marujo rola numa birosca do cais quando não está com as sereias em alto mar . Lá se junta a más companhias, os que se refugiam do mundo politicamente correto, onde acaba escutando conselhos perversos para incrementar seu acervo de barbaridades. Às vezes chega a desconfiar daquela conversalhada e leva a mão à adaga. Mas o papo regado a rum falsificado em Bertioga inspira Jack numa série de respostas a todos os tipos de visitantes. A seguir, uma seleta das coisas que ele tem dito nessa fase mais barra pesada.

"O sr. já achou uma ocupação?" disse o delegado numa visita surpresa. Já, disse Jack o Marujo. Fui contratado para matar seu cachorro

Sou turismólogo, disse o corrupto. “Achei que isso só desse em rabo de girafa”, disse Jack o Marujo

Não quero mais viver! disse o suicida amarrando uma pedra no pescoço. “Há melhores maneiras de impressionar uma sereia”, disse Jack o Marujo

Sou promíscuo, confessou o grumete, dividido entre o orgulho e a vergonha. “Como assim?” perguntou Jack o Marujo.”Te apaixonaste por um cardume?”

Por que sereia não gosta do sol? perguntou o grumete. “Porque tem medo de amanhecer sendo colocada na brasa”, disse Jack o Marujo

O que o Sr. acha da corrupção? perguntou o comunicador. Deixar o dinheiro público na mão dessa canalha é abandono de incapaz, disse Jack o Marujo

As coisas nunca mudam no mundo, disse o grumete. Mudam sim, disse Jack o Marujo. De repente você bate as botas e o mundo desaparece

Enfurnado no Hotel dos Marinheiros o sr. perde o espetáculo feminino lá na praia, disse o grumete. Tenho minha luneta, disse Jack o Marujo

Fiz uma cirurgia para aumentar os seios, disse a vaidosa. Fez bem, disse Jack o Marujo. São providenciais na hora de boiar

Para onde foram todos? perguntou o micreiro. Abandonaram as mídias sociais? "Parece que dançar coladinho voltou à moda", disse Jack o Marujo

Vou voltar para o orkut, disse o grumete. Isso aqui está virando um Titanic. Vai, vai, disse Jack o Marujo. Aproveita e brinca de fazendinha

Quero o sim sem compromisso e o não longe da dor, disse o noivo. Tarde demais, disse Jack o Marujo. Me convidaste para padrinho. Agora casa

Se o sr. não mergulha e a sereia não sobe no barco, o que acontece entre vocês? perguntou a curiosa. Trocamos e-mails, disse Jack o Marujo

Porque o sr. tem esse nome estrangeiro? perguntou o grumete.Nasci no alto mar,disse Jack o Marujo.Terra de ninguém,lugar sem porto.Sou vento

"Está tudo funcionando. Podemos zarpar?" Não quero mais sair já,disse Jack o Marujo. Crie uma nova versão dos preparativos, que assim atrasa

Sou um zero à esquerda, disse o garoto. Permaneça assim, aconselhou Jack o Marujo. Si se mexer, vão dizer que foste para a direita

Meça suas palavras! disse o catequista. Já medi, disse Jack o Marujo. Tem as mesmas dimensões da minha adaga.


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

13 de agosto de 2011

A MANHÃ SEGUINTE (tradução)


A MANHÃ SEGUINTE
(The Good-Morrow)

Por : John Donne
Tradução: Nei Duclós

Minha fidelidade faz um balanço e pergunta:
o que você e eu fizemos até nos amar?
Usufruimos prazeres do campo e da infância?
Dormimos numa caverna como os sete cristãos
por anos, perseguidos pelo imperador romano?
“Foi assim”. Mas desse jeito prazer é só fantasia;
Se por acaso alguma vez vislumbrei a beleza
foi graças à projeção de um sonho nascido de ti

E agora no despertar das nossas almas
quando nos vemos sem um pingo de medo;
amando plenamente com todos os sentidos
num quarto onde cabe o mundo inteiro;
vamos deixar os descobridores irem embora
com seus mapas que mostram outras terras
e apenas ocupar o lugar que nos pertence
como sempre acontece a cada amante

Meu rosto no teu olho e vice-versa
e os corações a pleno fazem o resto;
Onde encontraremos dois hemisférios
tão perfeitos, sem a soberba do norte
ou o declínio do oeste?
Se um de nós morrer, não nos dividiremos
pois nossos amores são um só, ou você ou eu
amor tão unido que jamais se rompe e ninguém some


THE GOOD-MORROW.

by John Donne

I WONDER by my troth, what thou and I
Did, till we loved ? were we not wean'd till then ?
But suck'd on country pleasures, childishly ?
Or snorted we in the Seven Sleepers' den ?
'Twas so ; but this, all pleasures fancies be ;
If ever any beauty I did see,
Which I desired, and got, 'twas but a dream of thee.

And now good-morrow to our waking souls,
Which watch not one another out of fear ;
For love all love of other sights controls,
And makes one little room an everywhere.
Let sea-discoverers to new worlds have gone ;
Let maps to other, worlds on worlds have shown ;
Let us possess one world ; each hath one, and is one.

My face in thine eye, thine in mine appears,
And true plain hearts do in the faces rest ;
Where can we find two better hemispheres
Without sharp north, without declining west ?
Whatever dies, was not mix'd equally ;
If our two loves be one, or thou and I
Love so alike that none can slacken, none can die.


RETORNO – 1. Este poema foi postado no Facebook por meu amigo Mark Fox, de Illinois, recitado por Richard Burton. Decidi traduzir. Há antecedentes do título, pois um poema anterior fazia homenagem ao Rei no dia seguinte à sua recuperação de grave doença. Donne pegou o mote para colocar um amante homenageando o amor maduro e verdadeiro, indissolúvel, que despertava de um tempo de ilusão e fantasia . 2. Imagem desta edição: John Donne's Cottage at Pyrford. Foto de Suzanne Knights

12 de agosto de 2011

O TRUQUE DA BLINDAGEM


Transportes, Agricultura, Turismo: o rastro da corrupção se espalha pelo primeiro escalão do governo, mas, como no mensalão, o truque é blindar quem ocupa o Planalto. É simples: primeiro se diz que chefe não é chefe e que subalterno (que nada tem a ver com o chefe) é quem faz toda a besteira. Depois se prova, com o tempo, que não houve besteira. Vimos o que ocorreu no mensalão.A Procuradoria Geral da Justiça e o Minsitério Público provaram que existia uma gang que distribuía propina para comprar votos no Congresso. Primeiro,o presidente era uma vestal, inocente, não tinha nada com isso (apesar de livros como o de Ivo Patarra tenha mostrada que era ele quem liderava o esquema). Mas parece que o crime miou, prescreveu. No caso do tsunami de lama que cerca atualmente o Planalto, estamos na fase da blingagem da presidente. Depois virão os desmentidos (e soterrar o pedido de CPI faz parte disso).

O raciocínio está exposto nas mídias sociais, onde há debate sobre o assunto. O PMDB é culpado pela corrupção e o governo não tem nada com isso, apesar de serem ministros do governo, do vice presidente ser do PMDB e o Congresso ter como presidente um peemedebista. Fizeram alianças espúrias que agora explodem na cara do governo. O que faz o Planalto? Tenta se preservar. O PMDB pressiona, pois é fisiológico e não quer perder a boca, já que ajudou a eleger a chapa. Os militantes então saem a campo pregando a faxina, como se lixo fosse saneamento. Não há limites para a cara de pau.

Lamento que esse tipo de raciocínio esteja sendo assumido por pessoas que prezo e a quem dava o crédito de inteligência política. Mas como é um truque óbvio demais, só posso entender no campo da psicanálise. Como Dilma faz parte dos torturados e presos nos anos de chumbo, parece que existe um vínculo eterno com ela, não racional, apenas emocional ou memorialístico, como se criticá-la fosse desmerecer toda a luta anterior. Isso passa por cima das evidências, pois ela se elegeu com apoio de coisas como o Sarney e Collor e no governo continuou a política de sabujice à indústria financeira internacional, a que jogou milhões de pobres na inadimplência, processo conhecido como ascensão da nova classe média , coisa que merece até um premio Nobel da Paz (quá quá quá).

Com a crise comendo os calcanhares das nações, aqui tenta se blindar a opinião pública com esse tipo de dado fajuto, enquanto vemos exatamente o contrário: milhões na miséria, na violência e no desespero de não poder pagar as contas, já que além de tudo, et pour cause, além dos juros cavernosos a inflação já está comendo. Ter capacidade de comprar em mil prestações um Land Rover e perder para a agência o material rodante voltando à condução não é subir na vida, é ser usado em sua inocência para a gula da indústria financeira. A mentira é tão bem pregada que todos repetem a esmo, como se fosse cânone. O fato é que o Brasil não tirou milhões da pobreza. Transformou milhões de pobres em consumidores inadimplentes.

Não há como separar o Planalto de sua equipe. Foi um toma lá dá cá explícito e funesto, que acabou rebentando, pois existe ainda imprensa, não muita, mas há e também porque gente de dentro do governo, de olho nos cargos, quer se livrar da concorrência. Acho até que o objetivo é o partido único, como aconteceu com o PRI mexicano, que ficou 70 anos no poder à sombra de Zapata e Pancho Villa.

Aqui medrou essa súcia sob a proteção dos chamados anos de chumbo, aquela ditadura que contava com Sarney e Delfim Neto, mas esses saíram ilesos, vivinhos e cheios de poder. Quem perdeu foram as Forças Armadas, que acreditaram que o regime era militar e acabaram ficando com o Celso Amorim.

Conseguiram no mensalão. Desta vez não vai colar. Oposição a isso tem. Não nos partidos, mas no espírito livre e desaparelhado da cidadania indignada. O problema é que a situação está se mexendo. Está querendo fazer manifestações de massa contra a corrupção e a favor de Dilma. Ou seja, transformar oposição em situação.


RETORNO - Imagem desta edição: cena de Lebanon, de Samuel Maoz.

11 de agosto de 2011

PARAÍSO PERDIDO


Nei Duclós

Desde que acabou a moleza do Paraíso, somos obrigados a pegar no batente. Mas fica a saudade, o vestígio: sempre sonhamos em nos recolher a algum tipo de lugar edênico, para voltar ao bem bom. Nunca dá certo, claro. Não existe lugar intacto, pois por toda a parte carregamos a nós mesmos, fonte de todos os conflitos. Os descobridores no século 15 acharam que tinham encontrado esse mundo perdido, como mostra, de maneira magistral, a maior obra da erudição do Brasil, “Visões do Paraíso”, o livro obrigatório de Sergio Buarque de Holanda, em que cada capítulo equivale a um livro à parte.

O que deslumbrou os europeus foram os bons ares (uma expressão que serviu para os hermanos argentinos batizarem sua ofuscante capital), a generosidade da terra e as provas de que realmente se tratava do ninho bíblico, formador da humanidade a partir do primeiro casal. O maracujá com seus sinais crísticos estaria no rol dos candidatos ao fruto proibido, entre outras “evidências”. Da mesma forma que naquela época remota, continuamos nos enredando em especulações, mesmo com a feérica desconstrução de mitos, baseadas em investigações pesadas.

A mediunidade ainda não foi elevada à categoria de ciência, nem a literatura pode se arvorar a ser História, mas acredito que talvez os mistérios estejam decifrados na nossa frente e não nos damos conta. Toda vez que vou à praia, aqui em Florianópolis, admiro as construções arqueológicas, as pedras empilhadas, algumas do mesmo jeito que são vistas no interior da Inglaterra. Lá, os menires são isso mesmo, aqui não passam de pedras na praia. Somos avessos à História, que dirá a arqueologia, que busca o conhecimento ainda mais oculto. Mas talvez as causas, os motivos, estejam explícitos.

Uma lenda antiga dos indígenas brasileiros fala de um gigante que se prevaleceu de uma formosa humana e por isso foi castigado, transformando-se na Serra do Mar. As nossas montanhas são gigantes deitados e dentro das ruinas do passado, que são a própria paisagem, há te tudo. Já descobriram ouro, ferro, pedras preciosas, nióbio. São os tesouros ancestrais que continuam sendo pilhados, mais do que nas pirâmides do Egito. Lá, os acervos são ainda recentes. Os nossos, são multimilenares. Valas geométricas no Acre, monumentos perdidos na Amazônia, incluindo pirâmides cobertas de selva etc. estão à espera da curiosidade nacional.

Uma batalhadora da arqueologia alerta há anos para a destruição das Sete Cidades do Piauí, conjunto arqueológico valiosssimo e ainda não decifrado. Dão tiros em pinturas rupestres. Usam jipes envenenados para destruir os sambaquis aqui no litoral catarinense. Mas há também inúmeros estudiosos que procuram entender a complexidade da ocupação das terras brasileiras, as mais antigas do mundo, antes da chegada de Cabral. Estudam o que um dia foi encarado como Paraíso, mas que não passa de território hostil e amigável ao mesmo tempo, como qualquer outro. Onde se formaram as gentes que receberam os invasores, foram dizimados por eles e também se misturaram.

Tudo habita dentro de nós, em forma de linguagem.


RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: um menir no litoral catarinense, um vestígio arqueológico, uma obra humana. No mundo inteiro, quando descobrem algo parecido, fazem o maior estardalhaço. Aqui não passa de pedra de praia. Ara, dizem.

CULTURA E FUTEBOL: A LÓGICA DO IMPROVISO


Nei Duclós

O futebol brasileiro é fruto da cultura da escassez, conceito usado pelo poeta Mario Chamie quando assumiu a secretaria municipal de Cultura de São Paulo nos anos 70. A cultura da escassez define o perfil dos brasileiros que, ermo de recursos e de incentivo, acabam superando com a criatividade o que lhe falta no entorno. Como conta Mario Filho, o povo que assistia os jogos dos esnobes ingleses esperavam a bola sobrar para ir chutando sem parar até os confins da várzea. Depois, com as políticas públicas que organizaram a bagunça, fomos tão longe que conquistamos uma Copa do Mundo em 1958, nas fuças dos europeus. Repetimos a dose quatro vezes mais, mas sempre longe da Europa. Nunca mais nos deixaram humilhá-los daquele jeito.

Ontem , contra a Alemanha, vimos como o autismo do improviso fundado na exacerbação do ego, e não nos desafios impostos pela cultura da escassez, unido a um técnico que está na mão da mídia monopolista e da cartolagem sem freio (e por isso deve pedir para sair), levaram a seleção brasileira a um beco sem saída. A vitória da Alemanha por 3 a 2 em Sttugart nesta quarta-feira foi a vitória da lógica contra o improviso sem base, aquele que é fruto não da escassez, mas do excesso, da soberba. Aquele que perde por não ter tido dificuldades para se consolidar, já que é resultado dessa mixórdia suspeita em que se transformou o esporte.

A lógica obedece à natureza do futebol, que é coletivo. Não é tênis nem jogo de dardos, em que existe isolamento dos protagonistas. Alemanha é time em que as individualidades se sintonizam, graças ao trabalho do técnico e à postura adotada pelos jogadores. A partir dessa sintonia, que serve como base, os talentos podem se desdobrar, manifestar, compor um acervo de jogados objetivas. Já o Brasil é um tecido descosturado, onde indivíduos tentam cobrir o grande furo da falta de consistência coletiva. Perdemos a pista da lógica do improviso: este sem manifesta quando a criatividade é convocada e se alia ao planejamento e à técnica, como aconteceu na seleção brasileira de 1970. Naquele momento, levamos o gênio nos ombros da estátua, que até hoje está lá, na cidade do México.

Vimos nossos erros várias vezes no jogo. O zagueiro que tenta driblar e acaba perdendo a bola para o atacante, que cruza para o companheiro completar nas redes. O drible repetido no miolo da área sem objetividade, apenas fazendo zigue zague entre a defesa para não chegar a lugar nenhum. A falta de chutes a gol, fruto dessa indecisão que confina cada jogador a um papel sem apoio dos outros. Perdemos a embocadura da cultura da escassez que nos gerou. Sucumbimos diante da lógica tradicional, representada pela tenacidade alemã. Não impomos mais a lógica do improviso em estado de arte (que é também fruto da força) que encontrou soluções originais. Mas improvisamos concentrados no ego dos jogadores, como o Pato, que em vez de se contentar em fazer golzinhos, sonha em fazer golaços.

Por que acontece isso? Acredito que é a falta de grandes cabeças no comando do futebol (o que acontece também em todas essas áreas, na atual fase de desconstrução nacional). Cito o caso Mario Chamie como exemplo. Quando uma grande cabeça se manifesta e está na maré alta da sua atuação, é comum virarem-lhe as costas, como aconteceu com ele, naquele início de gestão frente à secretaria municipal de Cultura, quando Reynaldo de Barros iniciava seus trabalhos à frente da Prefeitura. Reynaldo era conhecido como o preposto do governador Maluf e isso bastou para que recaíssem sobre Chamie aquele olho branco cavernoso que conhecemos bem. Claro que a biografia, a trajetória, a obra e os grandes feitos do poeta na sua brilhante gestão sepultaram as maledicências. Hoje, quando não está mais entre nós, todos adoram citá-lo e homenageá-lo, mas naqueles meses terríveis em que ele começava sua vida pública na política cultural, fui pioneiro e decidi entrevistá-lo para o caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo. Deu capa, graças à editora da época do caderno, Helô Machado.

E eu nem era repórter, apenas um copy, mas tinha sido liberado por Helô para fazer matérias especiais e fui a campo. Na nossa conversa com Chamie, ele transcorreu longamente sobre seus planos e os conceitos que iriam norteá-lo. Ele trouxe os resultados dessa cultura da escassez, os processos e os protagonistas para dentro de sua grande obra, o Centro Cultural Vergueiro, que mais tarde, depois de ter sido duramente criticado pelos oportunistas que bem conhecemos, foi encampado em todos os seus cargos. Mas naquela época, em que o secretário vinha me buscar em casa para mostrar sua obra, vi como foi feito aquele Centro que somava todos os vetores da cultura e era ao mesmo tempo teatro, cinema, biblioteca, lugar de debates, escola e área de lazer. Foi quando nasceu a semente do chamado multiuso,que hoje serve para múltiplas falcatruas com o dinheiro público.

Criticaram até o lugar onde foi instalado o centro, perto da estação Vergueiro do Metrô, mas Chamie argumentava: “O pipoqueiro não erra o ponto”, dizia, apontando para a carrocinha já instalada no local logo que foi inaugurado. Claro que também bateram nele porque a inauguração não flagrava a obra em sua totalidade, ainda havia muito o que fazer. Mas o que interessava a Chamie eram os processos e como eles, pela transparência, poderiam acumular e incentivar os autores dessa cultura da escassez que, com o apoio do poder público, poderiam passar por cima das precariedades endêmicas para fazer cultura.

Somado ao seu celebrado trabalho de professor e seus livros de ensaios (tão importantes quanto os de sua poesia), Chamie é uma inteligência luminosa num país tomado pelas trevas, onde o conhecimento está amarrado a mil aparelhamentos burros, a começar por ideologias mal assimiladas e adaptadas ao jogo bruto da política. Precisamos dede cabeças assim no comando das políticas públicas, especialmente nas de educação e cultura. Não podemos mais continuar virando as costas para quem, independente dos esquemas ideológicos e partidários, tem muito a contribuir. Mas se continuarmos na mão da burrice e da malandragem, continuaremos rolando precipício abaixo.

Nem é preciso convocar um poeta para o comando de futebol. Basta uma inteligência agressiva, uma ética granítica e um sentimento de nacionalidade explícito. Pouca coisa.


RETORNO - Imagens desta edição: quadro de Fulvio Pennachi e foto do poeta mario Chamie.

INTEIRA


Nei Duclós

Você disse que viria
não veio
fiquei no banco
traseiro
preso ao meu corpo
feio

Imaginei
teu dorso
em alto mar
barbatana
sob a estrela
maior

Sonhei
que perdi
o desembarque
e lá fiquei
até fechar
o século

Acordei
ao teu pé
direito
Sou forro
que a flor
sujeita

Primeiro
pus amor
na reta
barulho
no coração
de feltro

Depois
mergulhei
num anel
de pedra
Não perca
a Lua cheia

Aguardo o navio
perfeito, correio
da tua beleza
Quero-te inteira
mesmo que seja
só o poema


RETORNO - Imagens desta edição: obras de Paul Chabbas.

9 de agosto de 2011

STATUS E SOBERANIA EM MY FAIR LADY


Nei Duclós

O rigor da língua falada, fonte e ao mesmo tempo estuário da escrita, define soberania nacional e também status social. Só quem tem recursos consegue acesso à formação plena. Isso em tese, no espaço virtual euclidiano da linguagem, já que no Brasil até gente rica está falando errado e mesmo em países tradicionais essa história está bem misturada. Diferente do tempo de My Fair Lady, em que as ameaças eram nascentes, tanto no início do século 20, quando Bernard Shaw escreveu a peça Pigmalião, quanto nos anos 40 e 60, quando a peça foi levada à tela. O problema não estava consolidado como hoje, mas o autor detectou com maestria no momento em que se manifestava.

A história do professor de fonética escandalizado com o pouco caso que a educação inglesa dava à formação escolar dos seus cidadãos, e seu esforço de transformar uma vendedora ambulante numa lady, se reporta ao uso da língua como afirmação imperial (a inglesa), externa, e a conseqüente afirmação interna, da nobreza. No caso do professor Higgins, essa nobreza não era bem a da aristocracia, mas a da elite intelectual. Higgins é um pária da corte, uma espécie de insurgente contra os maus hábitos dos chamados sangue azul. Seu status é o conhecimento e para afirmá-lo usa a fonética - a excelência da fala, que deve se equivaler à majestade da língua escrita de Shakespeare.

O filme de 1964 dirigido por George Cukor e com Rex Harrison como o professor e Audrey Hepburn como a florista é um assombro vencedor de oito Oscar (inclusive o de melhor ator para Harrison). As músicas, de Frederick Lowe e Alan Jay Lerner, são todas maravilhosas. O filme mostra o desprezo intelectual do professor pelos guinchos da mulher pobre, seduzida pela possibilidade de aprender a falar melhor para subir na vida. A ascensão social é uma impossibilidade na Inglaterra (o filme é americano e um escracho contra as manias britânicas). Que o diga Charles Chaplin, que voltou para lá célebre e milionário e foi tratado como sempre tinha sido, um pobre ( e por esse e outros motivos se recolheu na Suíça).

Em conluio com um dos seus pares, Colonel Hugh Pickering (interpretado por Wilfrid Hyde-White), o inglês que estuda fonética na India, a jóia da Coroa, o professor faz uma aposta de intelectuais que podem enganar os toscos aristocratas apenas pela aparência: vestindo sua florista como uma princesa e a ensinando a pronunciar o agá aspirado entre outros truques. Eliza Doolittle era sem berço e filha de pais pobres separados. O pai, interpretado por Stanley Holloway ( indicado ao Oscar de melhor coadjuvante), é um convicto representante da working class que se entrega à bebedeira e odeia quando sobe na vida, pois precisa cumprir os rituais da desprezível classe média.

O professor é vitorioso no seu intento, mas cai na armadilha da relação, pois se apaixona pela mulher que desprezava. A Cinderela acaba conquistando seu príncipe, mesmo que ele seja velho e solteirão empedernido. A excelência da linguagem assim cede aos sentimentos, fica em segundo plano para que Hollywood dê seu recado eterno de o amor que vence no fim (pelo menos essa era a mensagem até os anos 60, quando então resolveram detonar tudo).

Hoje a peça e o filme servem de suporte educacional, pelo pouco que vi na internet. No ensino da língua inglesa a história é uma espécie de referência para reencaminhar as novas gerações, vítimas do esforço da modernidade que tenta destruir a base civilizatória por meio da indústria do espetáculo e de outras demandas de massa. A história serve para mostrar a aliança da elite intelectual com o povo no esforço de desmoralizar a aristocracia.

Ao mesmo tempo, é uma história sobre a possibilidade de superação. Não é o comportamento que define uma lady, mas o modo como é tratada, diz a florista. E o tratamento do inglês que veio da India serviu de apoio para ela driblar os maus modos do professor e se transformar radicalmente. No fundo, a vitória é sua, não de seu mentor. Ela ascende não apenas socialmente, mas na auto-consciência da cidadania, para usar uma palavra recorrente de hoje.

O enfoque deste texto pode ser facilmente contestado. Mas, ao contrário do trabalho acadêmico, que precisa se reportar às fontes de tudo que afirma, e fazer o balanço da produção de pensamento anterior sobre o tema que está sendo abordado, o ensaio não perde tempo. Se limpassem as justificativas e citações minuciosas das teses, teríamos grande arejamento cultural. Isso tornaria acessível o núcleo das questões a um público que não quer se enredar no recorrente hábito de repetir sempre as mesmas coisas. É preciso incorporar os avanços teóricos e partir para a diferenciação já no primeiro parágrafo, senão continuaremos com esse ar de zumbi no mundo que deveria ser uma tarde de sol.


RETORNO - Imagem desta edição: Audrey Hepburn entre Harrison e Hyde-White em My Fair Lady - a aristocracia sendo ludibriada pela elite intelectual aliada a uma representante do povo.