21 de julho de 2010

“LAS VIUDAS DE LOS JUEVES”: CINEMA É NAÇÃO


Cinema não é só espetáculo. Nem apenas informação, cultura e arte. Cinema é nação. Todo filme é sobre cinema e todo cinema é sobre um país. Não existe identidade dos EUA fora do cinema americano. Nem Itália sem Dino Risi , Visconti, Fellini ou De Sica. Godard é a França e Almodóvar, Espanha. Você conhece o Irã pelos filmes iranianos e no momento em que os cineastas chineses formataram uma idéia da China que procurava a liberdade da expressão, o governo de Pequim fez grossa intervenção, a exemplo do atual governo iraniano em relação aos filmes produzidos no país. A ditadura chinesa substituiu as lanternas vermelhas pelas adagas voadoras, pois era preciso impor uma idéia sólida de China imperial e milenar, para justificar uma política invasiva mundial.

O Brasil já teve cinema nacional, no tempo da Atlântida e, mais tarde, do Cinema Novo. Hoje tem um queijo suíço, uma entidade perversa cheia de buracos pornográficos e absurdamente violentos. Uma nação só se faz com cinema, que define o perfil nacional, é fruto de suas políticas públicas, do comportamento da sociedade e dos rumos da economia e da política. Nós consolidamos uma ditadura, por isso baixamos as calças nos primeiros cinco minutos de projeção. Não existe o épico num país que precisa escolher entre Serra e Dilma.

Os Estados Unidos redefinem seu papel hegemônico. A França foca em seus filmes o problema da educação e dos migrantes. Os espanhóis no comportamento. Os argentinos no sucateamento da nação e na reação popular à pirataria internacional. Por ser parte de uma sociedade que vai às ruas para expulsar presidente a panelaço, o cinema argentino é uma obra de resistência e liberdade. Tem um cinema primoroso, que é a própria nação procurando se costurar diante da barbárie do que chamam capitalismo e é apenas pirataria.

Há algumas cenas em Las Viudas de Los Jueves (2009) de Marcelo Piñeyro, lapidares. O filme, baseado em livro de Claudia Piñeiro (não há parentesco), se passa num condomínio de luxo habitado pelos predadores da economia atual, os laranjas das perdas internacionais, que se locupletam com a invasão do dinheiro especulativo e das multinacionais. Como a história se passa em 2001, quando a Argentina foi mais uma vez à bancarrota, um dos moradores treina dizer para a mulher a verdade: que perdeu o emprego e está zerado no banco.

“Não quis te falar antes para não te preocupar”, diz o covardão pra uma cadeira vazia. “Mas gostaria de vender a casa e nos mudar para um país sólido. Você gosta tanto de Miami, por que não vamos para lá?” A situação precede a grande quebra geral de 2008, quando os bandidões foram flagrados nos créditos podres, levando as nações para a inadimplência, um buraco de onde ainda não saímos. Não existe país sólido, mas não há duvida que na periferia do sistema, onde nos situamos, junto com a Argentina, o esgarçamento é muito mais amplo e profundo.

Outra cena importante é quando uma família de sobreviventes vai escapar do condomínio e é aconselhado pelo porteiro (que é um criminoso chantagista) e ficar, pois é mais seguro, já que o povo está nas ruas quebrando tudo e há comandos trancando as estradas. A família decide ir embora, pois há mais segurança no caos urbano e social do que numa prisão de luxo, onde as pessoas se entredevoram no vazio e na superficialidade espiritual e econômica. Não há fundos na nação para sustentar essa diferença brutal entre as classes sociais e tudo acaba numa violência contra os próprios protagonistas. Não há saída pelo aeroporto, pois tudo está contaminado. As pessoas precisam se juntar à população em pé de guerra, lutar pelo país que está sendo destruído e não buscar refúgio onde a crise irá pegar todo mundo.

Há muitas outras cenas neste filme admirável, que é mais uma prova da maestria de Piñeyro na elipse, pois o filme foca o condomínio, mas as verdadeiras causas do sofrimento pulsam fora de cena, estão expostas nas ruas, que aparecem em alguns flashes de televisão e nos jornais. Ele já tinha feito isso em Kamtchaka, analisado aqui dias atrás. A repressão e a tortura rondam sem jamais aparecer diretamente, apenas se refletem no pânico pessoal e coletivo.

O mesmo ocorre em Las Viudas de Los Jueves, em que a bancarrota e a inadimplência invadem os funerais, as vidas competitivas, o desespero de adultos e adolescentes, uma situação com desfecho trágico que é tratado de maneira desdramática pelo diretor. Ele coloca no mesmo patamar cenas do presente e do passado, gerando um pouco de confusão. Mas aos poucos a narrativa fica mais clara e contundente. Foi necessário não fingir surpresas no final e colocar de cara o que ocorreu com os personagens principais. Assim a atenção fica seguindo as ações e os motivos do drama, denunciado de maneira lapidar por mais esta obra do admirável cinema argentino, o melhor do mundo na atualidade.

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