23 de julho de 2010

HISTÓRIAS MÍNIMAS: PESSOAS EM BUSCA DE UM ROSTO


O filme Histórias Mínimas (2002), de Carlos Sorin, é a busca da identidade própria empreendida pelas pessoas pertencentes a um povo a céu aberto, na Patagônia argentina. Casas esparsas, estradas desertas, falta de energia elétrica, dispersão, imobilidade e isolamento formam o cenário cercado pelo mundo em transformação, onde as profissões se extinguem, os produtos perdem a qualidade e os caminhões passam indiferentes à humanidade à margem da rodovia. Alguns personagens precisam se movimentar e fazem um esforço para sair das travas que os prendem a um lugarzinho remoto e partem pela estrada rumo às soluções dos seus impasses.

A mulher com marido ausente não tem espelho, a televisão que a atrai para um concurso de prêmios. A TV reflete lugares exóticos (o Brasil, claro, ou os saradões de Los Angeles, ou ainda os dramalhões das novelas, distantes da vida prosaica). Ao ser sorteada num programa que ela vê no armazém que tem um aparelho de TV, ela decide viajar. Lá, acaba ficando com um estojo de maquiagem, onde finalmente consegue se enxergar. Seu rosto iluminado na tela na hora em que ganha o prêmio principal (que trocou pelo estojo) revela o rosto que tinha perdido numa vida anônima. E seu rosto refletido no pequeno espelho que veio junto com os cosméticos mostra sua beleza, que estava oculta pelo ermo. Para isso foi feito o filme: para revelar seu rosto, e a das pessoas que a cercam.

Há também o caixeiro viajante, que não tem pouso, um lugar onde possa se encontrar. Vive trafegando por paisagens assombradas pela solidão sem fim, sozinho, sem mulher e sem filhos, tentando se amparar numa subliteratura, aquela que prega a oportunidade na crise. Sente-se poderoso com esse apoio, mas no fundo amarga um vazio do tamanho dos campos frios e batidos pelo vento que enxerga pelos vidros do seu automóvel. Sua ação para romper esse ciclo é fazer a corte a distância a uma viúva, que tem um filho de nove anos. Tentar acertar o bolo de aniversário para o garoto e assim ficar bem com a viúva é uma sucessão hilária de momentos dramáticos.O vendedor abandonado procura uma família, uma identidade própria, já que trabalha num mundo econômico em decomposição, com sua profissão sendo empurrada para a auto-ajuda e a venda de quinquilharias.

E há o idoso que busca ser perdoado pelo cão que o abandonou depois de ele, velho, ter cometido um crime. O cachorro se chama Malacara. Na Argentina, é um mito, sinônimo de fidelidade e heroísmo animal: o cavalo que salta o abismo salvando o dono de um ataque mortal de índios, como aconteceu com Jonh Evans, migrante galês que fez um túmulo em homenagem ao companheiro, que morreu em 1909. Fazer cara de mau, torcer a cara é bom para afugentar os inimigos, montar guarda, garantir a segurança do dono. Mas, e se o cão fiel acaba se voltando contra seu parceiro humano, e o condena por ter atropelado alguém na estrada sem prestar socorro? O cachorro não reconhece mais o rosto, a identidade do dono e por isso o abandona.

A saga do velho que parte escondido do filho e da nora em busca do cão perdido costura essas histórias íntimas de pessoas obscuras, que trafegam ao longo da estrada onde uma bióloga, talvez a representação do próprio cineasta, especialista em vida , recolhe quem parece estar indo a pé na luta determinada por uma saída. O velho precisa achar Malacara, o cachorro que o culpou mesmo que presenciado apenas um acidente. Na metáfora de Carlos Sorin, é a dificuldade de ver que provoca o atropelamento involuntário. É sobre cinema, como sempre: não poder enxergar acaba destruindo a identidade e gerando uma culpa que parece irreversível.

Mas é preciso reencontrar o cão, localizado por um motorista de ônibus. Ir buscá-lo, mesmo que as pernas estejam trôpegas, a pressão excessivamente baixa e de companhia exista apenas uma cuia, uma bomba, um punhado de erva mate e uma garrafa térmica cheia de água quente. Na sua trajetória, ele encontra o povo perdido como ele e que sobrevive e o ajuda no encontro com o animal perdido, que enfim se realiza. A Patagônia assim, que estava fora do olhar do cinema, se insere nesse abraço entre a Sétima Arte e a paisagem humana, urbana e geográfica. São pessoas daquele lugar identificadas com o povo argentino, ao qual pertencem. E é o cinema que faz esse inventário, essa comunhão.

É como costumo dizer aqui: esse admirável cinema argentino! Esses diretores, atrizes, atores, roteiristas, câmaras são enxutos, precisos, originais e quando menos se espera, nos fazem chorar. Era mesmo o que nos faltava. Logo os argentinos!

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