29 de junho de 2010

CRIATURAS


Nei Duclós

Nações são criaturas, algumas assustadoras, outras aos farrapos. Por serem vivas, tem chance de morrer. Acontece atualmente conosco. Um país deste tamanho não se segura com tanta divisão interna. Quem prefere fumar foi confinado a salinhas apertadas onde divide espaço com latas de lixo. Quem curte uma carne pede desculpas ao fazer um assado. Quem se dedica aos vegetais é visto como ameba. Quem gosta de bicicleta é caçado no meio fio. Quem não gosta de dirigir não suporta coletivo.

Eleitores que não optaram por nenhum dos candidatos disponíveis estão no mato sem cachorro. Crianças que precisam correr e gritar atormentam paredes. Famílias que se formaram há um par de anos acumulam cicatrizes que parecem de séculos. Quem gosta de petróleo debocha dos verdes. Mulheres seletivas não encontram alguém que preste. Homens solitários são conquistadores seriais imaginários. Multidões se jogam nos ferros retorcidos dos desastres do fim-de-semana. Há uma indignação anti-televisiva, anti-notoriedades, anti-políticos. Tudo está sob suspeita.

Ninguém se entende no miolo da arena em crise. Escasseiam aquelas antigas fogueiras das festas juninas, mas o espírito de quadrilhas, no mau sentido, cresce. Cidadãos desamparados migram para fronteiras remotas. Do interiorzão do país grupos numerosos vão para o deserto entre o México e os Estados Unidos, ou para a neve dos pequenos países ricos. A diáspora atinge proporções alarmantes. Ninguém é mais brasileiro. Multidões lutam por cidadania estrangeira. Há um Cacau em cada seleção gringa ou asiática.

Talvez não sobrevivamos a esse esgarçamento do tecido social, em que tsunamis de rios nordestinos carregam por 200 quilômetros, até o mar, toneladas de entulho. A chuva empoça a paciência humana que se perde e se esfuma como num sonho ruim. Acordamos ainda lúcidos, mas somos bombardeados pela ilusão cevada pela superconcentração de renda, que precisa de truques para se manter.

Nem mesmo a Lua cheia, outrora impassível, escapa dessa roda viva, já que ilumina a noite da nação aos pedaços. Ela deixa, como diz uma criança, um rastro rosa na sua trajetória rumo às altas esferas. Lá, onde nosso sonho deveria alcançar, mas não consegue, porque o voo foi vetado em algum momento da vida nacional, que não conseguimos identificar.

RETORNO - Crônica publicada nesta terça-feira, dia 29/junho/2010 no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: tirei daqui.

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