17 de abril de 2010

DOIS CLÁSSICOS DA LUTA DE CLASSES




Três décadas separam dois vencedores de Cannes: o alemão A Fita Branca ( no original com o complemento “Uma história para crianças"), de Michael Haneke, de 2009; e o italiano A árvore dos tamancos, de Ermanno Olmi, de 1978. Ambos abordam sociedades camponesas fechadas, cristãs, dominadas por um rígido sistema de classes, onde um dono de terra é dono da vida de cada um. A narrativa é ambientada em épocas próximas e idênticas: anos 1910 antes da I Guerra em Haneke e final do século 19 em Olmi.

A opção visual diz tudo sobre as intenções e resultados das duas obras. O preto e branco alemão enfoca a classe média – o professor, o médico, o pastor - como reprodutora dos princípios do regime de castas, que é a repressão, o ressentimento e a vingança. O colorido italiano resgata a rica diversidade dos hábitos do povo, sem deixar de lado os crimes produzidos pela imposição econômica. Ambos giram em torno das novas gerações, que sofrem o impacto da situação e interagem com ela.

Mesmo que Haneke seja duro com seu universo da Alemanha pré-nazista, denunciando suas fraudes e perversidades, e Olmi coloque em pauta a alienação e divisão entre os camponeses, que acabam sendo coniventes com os crimes, fica claro o fascínio que essas sociedades fechadas exercem sobre os dois cineastas. Olmi, filho de família ferroviária, não esconde a admiração por uma comunidade, do norte da Itália, que ainda tateava as máquinas e providenciava a sobrevivência por meio do trabalho duro, a união dentro da família, a obediência cega ao patrão. As brigas, as festas, o trato com os animais, os cuidados com as crianças, tudo é encantador no filme italiano, mesmo que encerre uma verdade cruel, a do camponês que foi expulso da gleba por ter recortado um olmo para fazer tamancos que seu filho pequeno necessitava, pois caminhava seis quilômetros por dia para estudar.

Haneke disfarça bem seu fascínio pelo perfil social da Alemanha que gerou o nazismo. Seu filme é sinistro. Um professor/detetive/narrador conta a história de crueldades praticadas contra os habitantes da aldeia. O médico pedófilo, o pastor sádico, o barão tirano, a babá submissa, o camponês que cala diante da morte suspeita da esposa fazem parte de uma paisagem que só muda nas estações, já que sua vocação é permanecer eternamente igual. Essa mesmice sufocante, com a emergência das crianças, que pipocam por todo, não cabe mais na ilusão sazonal do clima, que modela o trabalho escravo na semeadura e colheita. O momento é de ruptura.

No caso alemão, a briga familiar do patrão, pressionada pelos eventos criminosos do lugar, é o sintoma de uma ruptura maior, a do assassinato em Sarajevo que desencadeou o primeiro grande conflito mundial. No caso italiano, a saída à noite, do camponês junto com a mulher a braços com um recém nascido e rodeado de crianças, é prenúncio da agitação social que desaguou no fascismo. Vão para onde? Para o desconhecido. Para a guerra.

“Quando existe um princípio, uma ideologia ou uma religião absoluta, será automaticamente desumano”, disse Haneke numa entrevista. “Essa é a raiz de todos os terroristas, não importa a ideologia ou a religião. Se existe uma idéia perversa de ideologia, é perigoso. Também não é um problema especificamente alemão, mas uma grande generalidade”. Tirar da Alemanha a canga exclusiva da tirania colocá-la nos ombros da humanidade é a tarefa do alemão Hanecke que, sem omitir responsabilidades, chama o espectador para outra arena. A que está ao nosso redor.

Olmi e Haneke produziram clássicos na linhagem marxista, mesmo que não admitam. Eles seguem o que a obra de Marx tem de mais significativo, que é definir a história humana como a história da luta de classes. Em ambos, a identidade cultural entre as classes envolvidas serve para dar mais transparência ao conflito principal, já que são seres da mesma nacionalidade que convivem num sistema de opressão. Na época abordada pelos filmes, não há, como hoje, o confronto de opostos que existe entre a barbárie americana e o fundamentalismo árabe.

É entre iguais que se dá o drama. A sociedade imobilizada começa a ruir e deságua na guerra. Nada será como antes, mas o modelo das sociedades fechadas, fundamentalistas, permanece. Ou como denúncia ou como fascínio, vetores poderosos nestes dois filmes admiráveis. Eles mostram que não há espaço para a inocência numa sociedade dividida em classes. A fita branca colocada no jovem rebelde, em vez de significar a pureza de sentimentos, como quer o pastor, é o sinal da impossível reconciliação entre a opressão e a responsabilidade. E o pé de tamanco novo, que calça o garoto camponês escolhido para ir à escola, torna-se inútil com a expulsão da família ao cair da noite, quando todos se recolhem para não se envolver com o pecado do pai que quis proteger o filho.

RETORNO - Imagens desta edição: o camponês italiano derruba o olmo em "A àrvore dos Tamancos"; e o camponês alemão destrói a horta do Barão em "A Fita Branca".

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