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30 de abril de 2010
AS VOCAÇÕES PARTIDAS E OS CRIMES DE BELO MONTE
As pessoas nascem predestinadas para fazer alguma coisa com prazer e bem feita. É um presente divino para evitar indecisões e perda de tempo. Mas no Brasil as vocações costumam ser partidas ao meio. Conheci pessoas que abriram mão de tudo para chegar na aposentadoria e tirar o atraso. Bem, alguns morreram. O esforço numa idade avançada, a emoção, talvez o remorso ou mesmo a falta de hábito tiraram o corpo daquele nicho onde viveram a vida toda. A ruptura foi fatal.
Vejo nas biografias de autores de livros os sinais explícitos das vocações partidas. Fulano é escritor, autor de romances, crônicas, poesia e também, vamos supor, “O desenvolvimento da Costa Sul do Maranhão – um desafio do Brasil Grande”. Quer dizer, ninguém é de ferro, é preciso viver. Tem gente sob medida para ganhar o sustento escrevendo sketches em programas da televisão, mas acaba sócio de um McDonald. O resultado é uma humanidade em ruínas, atirada pelos cantos, a fazer cursos tardios de criação depois de ver a biografia ir para o ralo.
Colocar-se no miolo do furacão tem um preço mortal. Você pode desaparecer para sempre. Mas também, se insistir, é capaz de acertar. Mesmo nesses casos, nem sempre você consegue seguir exatamente o chamamento (vocare) adquirido misteriosamente na concepção. Por exemplo: você nasceu para o romance policial, por isso insistiu em ser escritor, acaba jornalista e analista de economia em jornalão. Até se esforça, procura resolver o mistério da alta dos juros, mas não há nenhum detetive solitário na sua narrativa, que encontra a bela mulher numa tarde de miséria no seu escritório tomado pelas sombras.
Conheci inúmeros jornalistas que não tinham noção do que estavam fazendo numa redação. Hoje deve ter muita gente assim, depois que as faculdades de comunicação proliferaram como cogumelos pelo país afora. Com o fim da obrigatoriedade do diploma, há talvez um recesso, mas a profissão continua atraindo médicos em potencial ou advogados que jamais conseguiram fazer uma faculdade à altura de seu gosto e talento. O resultado são os nós do noticiário. Vamos pegar Belo Monte, um troço complicado, que confunde até gente preparada.
A Usina de Belo Monte, prevista para funcionar na Amazônia, precisa de mais quatro barragens, além da que terá grudada a ela. Também faz parte de um conjunto de dez hidrelétricas previstas para os próximos anos. Ou seja, a Amazônia inteira, praticamente, será inundada. Isso não é dito explicitamente, pois a estratégia é debater conflitos localizados. Também não se falava nos interesses da Venezuela, que ontem finalmente mostrou a caratonha assinando uma acordo de cooperação energética. Tenho para mim que as usinas da floresta são para abastecer o Chavez, mas como todos sabem, sou apenas um implicante.
Quem está contra Belo Monte e seu entorno?O bom senso, a sobrevivência do país, a diversidade biológica, a preservação de espécies, a manutenção da vida de algumas tribos etc. Quem é a favor? Além de quem se equivoca, os que venceram a concorrência para construir a usina e que são desmatadores profissionais, como mostram inúmeros processos. Ou seja, deram Belo Monte para quem já está destruindo a floresta. Faz sentido, não faz?
Outro detalhe fundamental é que as várias barragens vão formar um conjunto de gigantescos reservatórios de água monitorados por empresas privadas. Já estão roubando água na Amazônia, como atestam várias denúncias. Navios carregam enormes sacos com água potável e arrastam até a clientela. Com as barragens, tudo fica mais fácil? Deixa de ser extrativismo para virar indústria.
O problema é que insurgir-se contra a inundação da floresta é luta exclusiva das Ongs que estão explorando a floresta de todos os tipos. Registrando princípios ativos de plantas medicinais, prospectando novas jazidas de minérios, levando tesouros embora, a vasta rede do Falso Bem inunda a Amazônia com seus pastores, catequistas, invasores etc. O Brasil a tudo assiste de braços cruzados, pois a entrega do país está consolidada desde 1964.
Aí vem o James Cameron, que chamou no filme Avatar os povos da floresta de animais, com focinho e fera e rabo de macaco, defender a floresta. Essa luta não é do Cameron. É nossa. É uma luta contra a ditadura, representada pelos nossos algozes que agora aofercem a chapa única Serra-Dilma (por isso não encontram vice!) e contra o imperialismo, que quer não apenas o ouro, o ferro e o nióbio, mas a água. Mientras tanto, o crime organizado brasileiro provoca problemas na fronteira paraguaia e enche o presidente Lugo de moral, que chega com tropas nas fuças do Brasil.
Só vamos derrubar a ditadura quando nos convencermos que ela existe. Essa deve ser nossa vocação: o Brasil, o amor partido que carregamos no lado esquerdo do peito.
RETORNO - A.Imagens desta edição: duas fotos do filme Niagara (1953), de 1953. A maior é Marilyn Monroe, a esplendorosa vocação partida no auge da beleza. A menor é Joseph Cotten fazendo o que fazem atualmente: estrangulando a natureza.
B. Links sobre o tema Belo Monte, informações pesquisadas por Ida Duclós:
1. "Viável ambientalmente" é o quê mesmo? http://bit.ly/biAz8h
2. BNDS capta dinheiro com o Fundo Amazonia p/ preservar a Amazonia e financia as empresas que estão destruindo a floresta.http://bit.ly/aWpDCY
3.Em abril, Lula assinou decreto q permite construção de novas hidroelétricas na Amazônia http://bit.ly/clJXw3
4.Venezuela negocia importação de energia elétrica com o Brasil http://bit.ly/b3DFDy
5. Até Miriam Leitao não aguentou o leilão para fazer Belo Monte "Na lei ou na marra" http://bit.ly/bg0gjC
6. Belo Monte power station will be built by Bertin company guilty of Amazon deforestation by cattle and slave labor http://bit.ly/2FmmFB
7.Ministra Meio Ambiente Izabella Teixeira assumiu e demitiu presidente e diretores do IBAMA p fazer Belo Monte e + hidroelétricas na Amazonia
http://www.amazonia.org.br/noticias/print.cfm?id=336696
29 de abril de 2010
POUSO
Nei Duclós
Barco é sonho em desuso
Criatura de espécie surda
Pousa no obscuro azul
Véspera de tempestade
Barco náufrago, presságio
Asa na superfície, nada
Sinal de mastros amargos
Mapas de horizonte pálido
Absorto, em pânico, vaga
Imóvel no balir da tarde
Paisagem do olho exausto
Miragem do vago instante
Viagem de verbo escasso
Na lua, estará a salvo
RETORNO - Imagem desta edição: foto de Anderson Petroceli.
27 de abril de 2010
TEMPO CERTO
Nei Duclós (*)
Crônica que usar a data como tema corre o risco de se repetir no ano seguinte. Natal, Mães, Índio, Tiradentes, Páscoa: a sucessão de efemérides exauriu a capacidade de invenção de alguns autores, que agora fogem do chamado “gancho”, num movimento libertário ainda não reconhecido. Eles se opõem à catilinária dos catequistas, que a cada marca do tempo despejam a sabedoria de ocasião.
É bem melhor falar de peixes quando há deserto, ou de vulcões quando dá praia. Os escribas insurretos não se confundem, porém, com os repetitivos anticlericais que acabam comendo carne no dia Paixão, pois esse gesto é tão batido que já foi absorvido. Preferem algo mais radical, como esquecer o Dia do Jornalista para falar de algo mais profundo, como a perda do jogo de botões na mudança da família para a capital.
Lá ficaram os craques de plásticos jogados num canto, sendo varridos pelos novos donos, indiferentes como carros de passeio passando rapidamente por vendedores de frutas na beira de uma estrada remota. Quem irá recolher o tabuleiro abandonado de um jogo milenar de damas, que pertenceu aos ancestrais vindos da Ucrânia, depois que completamos os 18 anos regulamentares e sumimos para sempre na voragem da vida adulta?
Esses são os temas que ocupam os escrevinhadores avessos aos desfiles e procissões. Eles contam outras histórias que passam ao largo de avenidas engalanadas e passeatas comemorativas. A realidade não é o marketing da notícia, o tempo certo de criar ou chorar. Há uma quarta-feira de cinzas nas férias de verão desses implicantes batucadores de teclados. Há uma ascensão solar na madrugada de veludo dos inspirados letristas fora da vida social.
Eles vivem no ermo absoluto, lá onde o arco-íris se refaz da sua arquitetura de abóbadas. São os pintores de néon que fecham a aliança entre as pessoas e seus desígnios e memórias. Possuem chaveiros confusos, bolsas que jamais abrem, meias de tamanhos diversos que nunca formam par. Eles se espantam com os pássaros quando todos estão atentos aos discursos. Colecionam abraços quando há atropelo. E jogam a isca para o amor, arisco por entre as gentes. Alguém há de cair enredado por essa mística.
Eles possuem o tempo certo que escapa ao calendário. .
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 27 de abril de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Esperando pelo Trem, trabalho em naquim e photoshop de Ricky Bols.
CESAR E RENZO: DOIS EVENTOS OBRIGATÓRIOS
Meu amigo Cesar Valente, prestigiado jornalista brasileiro de Florianópolis, lança seu primeiro livro nesta quarta-feira, dia 28. Compareça. De Olho na Capital é uma seleta de textos saborosos sobre fatos e histórias do lado de cá do mundo e também uma geral do autor do que ele sabe fazer como poucos: escrever com segurança e talento, fisgando o leitor pela descontração das palavras e a responsabilidade do que é divulgado.
Meu amigo Renzo Mora, mestre da ironia, do humor escrachado e fino ao mesmo tempo, um criador na maré alta da cultura pop e um profissional de primeiríssimo time, ensina Como criar roteiros publicitários que funcionam. Renzo é do ramo. Escritor hilário, tem três livros publicados, um sobre Sinatra, outro sobre o Cool e mais um sobre filmes ruins (o que rendou excelente entrevista no Jô Soares). Inscreva-se no curso dele. Você só tem a ganhar.
26 de abril de 2010
FLOR NA ESTUFA
Nei Duclós
Procurei na estante o tempo da esperança
Debaixo do colchão, em todos os cantos
Até a porta do sótão abri
Encontrei em ti, amor que me acompanha
Teus braços seguros, teu rosto sem susto
Estação de flor na estufa do frio
Descobrimos a presença do prazer em fuga
Dobrada como lenço em vagões de agulhas
Estivemos sós, mas unidos no sim
Depois, buscamos sinais do encantamento
Disseminado em campos incultos
Girassol selvagem no abril
Vimos como brota o que nos negavam
Podíamos compor um sono profundo
Mas decidimos despertar
RETORNO - Imagem desta edição: foto de Ida Duclós.
25 de abril de 2010
DR. MABUSE: FRITZ LANG E O ILUSIONISMO
O cinema foi criado no auge da moda do ilusionismo como espetáculo, quando mesa branca para chamar espírito era reunião social e o psiquismo atraía multidões ao teatro, vestindo de roupas “científicas” os números de magia. Em 1922, ao dirigir Dr. Mabuse, baseado em romance de Norbert Jacques, o gênio de Fritz Lang acertou na preferência do público, que encheu os produtores de dinheiro. O sucesso colocou Lang , mais tarde, na mira do nazismo do Dr. Goebels, o próprio Mabuse em pessoa. Lang descreve o horror que foi o encontro com o propagandista de Hitler, que tentava seduzi-lo para fazer um filme sobre nazistas, bem no momento em que ele, Lang, repetia a dose em mais uma obra com o personagem Mabuse, o famoso personagem manipulador de consciências, isso já em 1932.
Vi por enquanto só o primeiro filme, mas não quero perder a embocadura provocada pelo impacto. É um trabalho longo e muitas vezes monótono, mas poderoso nas imagens e na trama. Mabuse é um psicanalista famoso que opera uma rede de crimes para fabricar dinheiro falso, manipular as ações da Bolsa de Valores e ganhar nas cartas por meio da hipnose das suas vítimas. O irritante é que ninguém consegue flagrar Mabuse na sua onipresença, disfarçado dos mais variados personagens, do mendigo ao mágico, do jogador ao chefe de quadrilha.
Mabuse escapa da perseguição implacável do advogado estatal. A falta de experiência do poder diante das novas forças do crime é limitada a essa época emergente. Sabemos no que deu tudo isso. O nazismo usou todas as técnicas de manipulação de consciência (inclusive a magia e o psiquismo), por meio da propaganda de massa, dos espetáculos pirotécnicos para as multidões, mentindo todos os dias até a mentira virar verdade. Foram lições aprendidas pela publicidade e pelos poderes que nos governam.
Não por acaso o dinheiro falso e o jogo da Bolsa entram na mira de Lang, que denuncia com clareza o esquema. Marx fez o mesmo com o capitalismo nascente: os gênios vêem o sistema completo quando eles surgem na vida social. Lang notou como era possível obter lucros por meio da interferência artificial nos preços das ações, inventando fatos (o roubo de um acordo secreto entre as potências, por exemplo, e depois sua devolução, quando as ações voltaram a subir). E mostrou como era possível usar o sobe desce das moedas para abastecer o mercado de dinheiro falso.
O jogo bruto, assassinatos e seqüestros, entram como apoio do que é feito na percepção coletiva. O uso da agitação política para cometer crimes, tão comum em nosso meio, está lá, nesse filme magistral, em que Lang debocha da palavra expressionismo, a marca registrada que usaram para definir seu cinema magnífico. Expressionismo é como tudo, uma falsidade, uma comédia, diz um dos personagens. Lang não deixa nada barato e sua radicalidade pode ser vista com todo seu esplendor neste filme. Não bastasse ter feito obras primas como M ou Metrópolis, Fritz Lang ainda nos dá Mabuse, uma obra densa, profunda, com a fúria da lucidez sem limites.
Logo depois que Goebels tentou levá-lo para as hostes do nazismo, no mesmo dia, Lang pegou suas trouxas e fugiu para os Estados Unidos. Tinha visto onde aquilo iria parar. Foi continuar seu trabalho no grande ilusionismo que é o cinema e que ele usou para denunciar a sacanagem. O cinema em Hollywood teve desvio de conduta, principalmente depois do macartismo dos anos 50, que eliminou a inteligência e a liberdade, especialmente dos criadores que fugiram da Europa em guerra.
Dr. Mabuse é, como todos, um filme sobre cinema. A Sétima Arte, que faz parte do nascente ilusionismo de massa que tomara conta da vida social do Ocidente, tinha condições de virar o jogo, denunciando os truques das grandes mentiras. Mas também foi enredada pelos poderes, mais tarde totalmente tomados pelos inúmeros Mabuses.
RETORNO - Imagem desta edição: cena de Dr. Mabuse, em que a elite convoca os espíritos e torna-se refém (mais tarde protagonista) das forças de manipulação.
23 de abril de 2010
INVASÃO URBANA DA GRUTA DO PAMPA
O cinema do Brasil, apesar dos festivais e de alguns sucessos da bilheteria, costuma se esconder. Por isso vejo tardiamente o que se faz dentro das nossas fronteiras. O jogo de gato e rato com as obras me cansa. Gostaria que tudo estivesse bem à mão para todo mundo assistir, mas não é isso o que acontece.
Como tomo conhecimento depois que os eventos sobre o lançamento já fizeram mais de um aniversário, corro para ler a crítica e só vejo injustiça. Ou por omissão ou por indiferença ou pelo vazio dos textos, que definem alguns lugares comuns para abordar um trabalho coletivo, complicado, árduo, enlouquecedor muitas vezes e que depende totalmente dos financiamentos públicos, pois não temos indústria, nem mercado sintonizado com o cinema nacional. A avalanche americana matou o resto entre nós, até mesmo o cinema italiano, que era tão presente. Hoje os americanos chegam ao cúmulo de refilmar tudo que é sucesso europeu.
Numa boa conversa em tarde chuva no feriado de Tiradentes, comentávamos com Miguel Ramos e Tabajara Ruas como víamos filmes de todas as nacionalidades nos anos idos, desde mexicanos até franceses e espanhóis. Hoje é tudo blockbuster, tiroteio, invasão do Iraque e gringos protagonizando todas em qualquer parte do mundo, principalmente traçando nativas asiáticas, hispânicas ou eslavas. Os Estados Unidos devoram o mundo e o invadem pelo comércio, a guerra e por uma invenção européia, o cinema.
Mas a visita na Lagoa no feriado foi boa também porque ganhei de presente de Miguel Ramos três preciosidades: o curta-metragem sobre "A Invasão do Alegrete", de Diego e Pablo Muller, que é, acho, a primeira incursão cinematográfica no vasto anedotário do pampa, um ineditismo que precisa ser levado adiante, pois essa é uma riqueza larga e que renderá bons frutos; algumas cenas de divulgação de “Enquanto a noite não chega”, de Beto Souza, que está em fase de pré-lançamento; e, o mais importante por enquanto, que é o filme de 2005 também de Beto Souza, Cerro do Jarau. Não li nada que preste sobre este filme que mistura vários gêneros, onde se sobressai o policial. Mas posso estar enganado.
Cerro do Jarau tem o mérito de ousar despretensão com uma produção apurada, um roteiro bem feito e interpretações antológicas. Brinca com a lenda sobre a Salamanca do Jarau, mito trazido pelos espanhóis sobre a bruxa moura devoradora de homens que vive numa gruta no Cerro do Jarau, tema que inspirou João Simões Lopes Neto (que está sendo definido como “o Guimarães Rosa do Sul”, quando publicou sua obra muito antes de Rosa, que dele bebeu-lhe diretamente na fonte, do trabalho na linguagem a personagens, como o narrador Blau Nunes, que gerou Riobaldo de Grande Sertão, como publiquei no prefácio de uma edição de Lopes Neto para a Editora Globo).
O Cerro do Jarau exerce grande fascínio naquela região da fronteira. Lembro que as pescarias em lugares mais remotos estavam perto daquela elevação de terra, rara no horizonte estaqueado do pasto. O filme gira em torno da mulher e seu poder de costurar a história, onde os homens são coadjuvantes e suas vítimas. Implicaram com Beto Souza com o título escolhido, já que “ninguém conhece” a lenda. Haja. Primeiro porque isso é mentira, a lenda está entranhada na cultura geral do estado. Segundo, porque se fosse mesmo desconhecida aí é que deveria ser escolhida, ora pampas! Está tudo invertido no país das facilidades fofas.
Virou moda torcer o nariz para temas gaúchos no cinema. Vejam que coincidência. No momento em que os filmes no Rio Grande do Sul deram um salto com o trabalho de Tabajara Ruas e Beto Souza, entre outros cineastas, é que inventaram de implicar com o gauchismo. Não é demais? Sentiram medo da concorrência, pois um centro alternativo de cinema, fora das garras normais, capta financiamento e isso é um perigo para os devoradores de grana.
O diretor foi certeiro ao atualizar a lenda promovendo uma invasão urbana na gruta do ermo. Uma perseguição digna de um bom filme policial enfrenta o resgate da amizade cultivada na infância. Corações partidos lidam com o cinismo triunfante de um personagem que é a expressão máxima da interpretação entre nós: Miguel Ramos, o monstro, no papel do Correntino, o vilão hilário e sinistro. Costumo dizer que os atores/monstros, os que se transformam nas criaturas que inventam, fazem isso para nos assustar. Miguel Ramos, que ganhou tudo que é prêmio com esse papel, consegue. Tenho medo daquele correntino, síntese de todos os canalhas que conheci na fronteira, representado com perfeição pelo nosso ator maior.
Mas tem mais. Lu Adams no papel da mulher dilacerada por um casamento de traições e que procura no passado a redenção, está perfeita, sensual, intensa. Tarcisio Meira Filho faz muito bem o galã de duas caras, atrapalhado e fraco. Roberto Birindelli, Thiago Real, Nestor Monasterio e João França matam a pau em personagens coadjuvantes que dão grande sustentação á história. E no mais é o palco da música avassaladora do sul, o pampa aberto e limpo com sua mística e força, e o perfil de metrópole de Porto Alegre, mostrada não como paisagem, mas como um labirinto, conjunto indecifrável de prédios e pontes num clima noir. “Cinza é o nome da cidade apesar do claro que me abriu na alma” disse eu num poema do livro No Meio da Rua. É assim que eu via Porto Alegre e é assim que Beto Souza filma, com sua equipe técnica de primeira e o apoio de excelentes roteiristas. Geraldo Borowski e Fernando Marés de Souza, que trabalharam o script junto com Taba e Beto.
Querem mais de um filme? Ora, vão ver Avatar, que é, literalmente, uma bosta. Cerro do Jarau está numa caixa caprichada com dois cds, um é o filme e o outro são os extras, com cenas das filmagens, depoimentos e dois curta-metragens como bônus.
RETORNO - Imagem desta edição: Beto Souza dirige Tarcisio Filho e Lu Adams. Não consegui, vasculhando a internet, uma só foto do Correntino, interpretado por Miguel Ramos. O filme não tem um site oficial e suas comunidades do Orkut estão abandonadas. Descuidam do marketing na grande rede! Assim fica difícil. Acordem que já passa de 1930. Hoje se faz um site/blog em cinco minutos. Dá licença!
22 de abril de 2010
EXEMPLARES INÉDITOS DO POEMA NO TWITTER
Nei Duclós
Escrever diretamente para as pessoas, limitado pelo espaço de 140 toques, é um exercício poético fecundo. Faz parte da minha militância online, com excelente repercussão entre seguidores da literatura, do jornalismo e da cidadania em geral. Selecionei vários poemas de um só verso que publiquei nos últimos dias. Como adendo, mais frases de política e comportamento.
POESIA POR MINUTO
O poema é o presente secreto que o destino coloca embaixo de uma pedra. Acha quem lavra no deserto
Estava quase desistindo, quando recebeu a mensagem de partir imediatamente. Alguém precisava de um anjo na beira de um abismo
Não se iluda. Sob a espessa camada de neve do coração há um vulcão extinto, que ressuscita só para jogar cinzas na tua cara
À noite não vejo quem me escuta. Lá fora passos de veludo. O pássaro vigia sobre o muro. Uma carruagem se aproxima
Dentro, o espelho encerra uma princesa. O rosto pálido flutua. A coruja consulta a pitonisa. Uma guerra espreita além da curva.
Quem vai socorrer a comitiva? Alguém sujo de sangue leva um tiro. Cavalos espalham pedregulho. Um anel vem junto na batalha
Do Leste veio a face sem a víbora. Ela desce gloriosa enquanto lutam. Já decidiram o desfecho da refrega. Uma nova rainha se revela
A história é de um reino sem ruído que entregou-se à vilania, mas refez-se com a briga soberana, instaurando de novo a melodia
Alguém tirou uma lasquinha da tarde. Ficou a marca: o esboço da Lua Nova, visível na hora do Ângelus
O amor é um milagre que liberta
Beijo qualquer com gosto de Lua, dado ao acaso num lábio de rua, volte ao cordão que nos viu amarrados, traga a manhã ao som do dobrado
Abri devagar o tempo. Espiei a varanda, debaixo das estrelas. Elas chegaram, curiosas. Queriam saber que fim deu daquele menino
A prata da noite pousava no dorso da água. Todas as bóias do espinhel iam para o fundo. Emergia Guaçu Boi, que ameaçava
A lua cheia trazia os peixes para a beira do rio. Íamos lá ver. Era uma isca colocada pelas sereias de água doce, que nos puxavam
Não éramos muitos, éramos todos. Depois, fomos escasseando. Alguém se afogou, outro sumiu, um tirou fechou o melhor amigo. Houv e um tempo
Supernovas são proibidas de sair à noite. Estrelas anãs vigiam, ameaçando com buracos negros. Mas asteroides bêbados prometem serenata
A noite é o asilo dos pássaros que gastaram tudo na algazarra do crepúsculo
Estrelas jogam futebol na Lua Cheia. As Três Marias formam barreira. O Cruzeiro bate e Vésper tira de cabeça. É falta, grita o Cometa
Quero ouvir tua voz quando eu já me for, morrer para o ruído ao redor, sobreviver no som improvável do amor
MILITÂNCIA DA LINGUAGEM
Não peça nada a ninguém, que a bola virá quadrada. Nem estenda a mão, que será ferida. Dar e receber são dons de intermediação divina
O entendimento pode levar à soberba. A religião leva à espiritualidade, que é casa do saber habitada pela transcendência
Ética não é fruto da formação racional apenas. É fundamental a formação religiosa teológica, para não cairmos nas armadilhas da vaidade
A inteligência e o talento não podem estar a serviço do exibicionismo das palavras e sim a serviço da ética
Quando vc está bem à vontade com a amizade que não reconhece como falsa poderá receber a punhalada fatal.Tarde demais para perguntar por que
A música é da praça quando o som do povo faz sentido
Quando pararem de pagar anúncios sobre ética, teremos alguma chance
Inverter conceitos para se fazer de interessante é o esporte preferido dos lagartos do semi-árido. "Isso não é isso e assim é assado". Cool
A floresta humilha os semeadores de deserto
O crime é matar dentro de nós o acervo de emoção que a cultura do Brasil soberano plantou e não consegue colher
Os relacionamentos se dividem entre ficar para sempre e a pressa de ir embora
As pessoas não acreditam em Deus, mas acreditam nas pesquisas.
Sempre tem uma explicação covarde para a valentia do desconhecido.
O país é mal assombrado. Espíritos pulam muros, soluços mergulham, máscaras acenam e lá no alto, sem ninguém pedir, a Lua!
Quando crianças, sonhávamos viver no mundo imaginário em que os animais falavam. Fomos atendidos.
RETORNO - Imagem desta edição: Nartureza/correnteza, nanquim e photoshp de Ricky Bols, que diz: "O desenhista tem que ser um cara versátil, moderno e pesquisador. Com a cabeça pronta para o novo e a idéia no gatilho. Vendendo seu trabalho e não esquecendo de que sua criação é o ar que respira, o espaço onde voa. Sem fronteiras."
21 de abril de 2010
CIDADE VIA
Nei Duclós
Brasilha terra vera, Cruz
Mais tarde Brasilho
Filho do eixo norte-sul
Senil cerrado sem cerros
Avião pousado em partidas
Quem te decifra bruto fruto
senão deshabitantes fixos
os que inventaram uma raiz
e abriram trilhas de seiva
no plantio provisório do futuro
Sonho que aniversaria
com espinhos de flor no lixo
Amor espelhado em romarias
cidade via, imaginada e crua
Carregas um coração de vidro
RETORNO - 1.Imagem desta edição: tirei daqui. 2. Poema para os 50 anos de Brasília, que enviei para o poeta Nicolas Behr, atendendo a uma convocação geral, via e-mail, para produzir algo sobre o evento. O poema selecionado por Behr está também no site do Bar do Escritor.
20 de abril de 2010
MIOLOS
Nei Duclós (*)
Ter idéias é espremer a testa com rugas profundas e dar um piparote do indicador na cabeça. É também fazer cara de produção de pensamento, olhando significativamente para o nada. Morder óculos ou olhar para o interlocutor de baixo para cima, com um ar de divertido aborrecimento, também são expedientes que sugerem que somos bambas nessa arte de tirar coelhos da cartola.
A pergunta mais recorrente das entrevistas é sobre “essa coisa” de criar. Inventar parece ser mágica bizarra demais para o entendimento normal. Quando alguém diz que é o responsável por algo inédito, precisa enfrentar o tribunal. “Já vi isso em algum lugar. Foi teu professor que disse. De onde você copiou?” Falei com um empresário que jurava ter criado todos os seus produtos: “Meu filho passava um fax do Japão com o design”, dizia ele.
Por ser esdrúxula, a criação passou a ser artigo de luxo. Os espertalhões aproveitaram para faturar com bancos que não servem para sentar, mas funcionam maravilhosamente na prancheta ou nas fotos. O cérebro buscando caminhos seria então uma espécie de grife, com valor de mercado e não uma atividade do cidadão em sua plenitude.
Vimos o que aconteceu com Santos Dumont. Milionário livre em Paris, deixou-se envolver pela procura mundial de uma solução para levantar o mais pesado que o ar. Conseguiu, mas não patenteou seu invento. Dois anos depois de seu feito, dois fabricantes de bicicletas americanos mostraram a foto de um artefato catapultado para o abismo e que, segundo recentes testes, jamais teria condições de levantar voo.
Dumont foi incensado por décadas até que o Brasil envergonhado tomou conta do outro, o soberano. Foi quando venceu a versão adventícia. O Pai da Aviação acabou caindo na vala comum dos inventores brasileiros, como o Padre Landell de Moura, que teve seu laboratório de testes destruído porque mexia com raios e ondas e descobrira o rádio e o telégrafo sem fio antes dos outros. Sem falar no padre Francisco João Azevedo que enviou para uma fabricante de armas, a Remington, os detalhes de sua criação, a máquina de escrever.
Mas quem liga para isso? Nascemos para imitar, já que espremer os miolos deve ser atributo que medra fora das nossas fronteiras.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 20 de abril de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: o brasileiro Santos Dumont e seu invento.
19 de abril de 2010
NOVO TESTAMENTO
Nei Duclós
Se Deus fosse um pesadelo
a chance de acordar seria o tempo
e o gosto de dormir a nossa igreja
Ninguém poderia combatê-lo
a não ser o sonhador e sua teia
cercando a neve em incêndio
Abraçado ao luar, viria o peixe
nesse ataque feito de surpresa
e pássaros voando sobre o gelo
Mas despertar não seria Deus exposto
em carnes penduradas pelo susto
ou asas condenadas à frieza
O levante se faria em outro plano
com o avanço da manhã de seda
desabando os materiais do sonho
Deus assim mostraria um novo rosto
aberto como alguém que vem de longe
oculto para não perder o fôlego
RETORNO - 1. Poema do meu livro "No Mar, Veremos" (Editora Globo, 2001) 2. Imagem desta edição: Jesus Cristo interpretado por Enrique Irazoqui no filme "O Evangelho Segundo São Mateus" (1964), de Pier Paolo Pasolini.
3. Estamos fechados com as Igrejas Cristãs do Brasil do Conic na sua nova Campanha da Fraternidade Ecumênica, contra a ditadura econômica do atual regime. Lema: Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro (Mt 6,24) http://bit.ly/afMZBm. Detalhes neste link. "Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro". É muito simples e muito radical.
4. Nesta época em que os chacais aproveitam crimes de padres católicos para desmerecer todo o trabalho da Igreja, e para debochar de quem tem fé, é bom que os demagogos, os prepotentes, os caluniadores, os falsos amigos fiquem atentos: as certezas de um ateismo ágrafo, que ignora a obra teológica de dois mil anos em função de um noticiário tendencioso (por destacar a acusação e reduzir o espaço da resposta), equipara-se à ignorância plantada pela ditadura.
São vasos comunicantes: a barbárie é de quem só enxerga o que já estava vendo antes da atual campanha. É claro que a Igreja católica é uma pedra no sapato da ditadura: quem poderá peitar os poderosos do dinheiro? É claro que essa tarefa não estará a cargo do covardes que atacam pelas costas, os neo-bobos de uma falsa correção política, os profissionais da ética de araque.
17 de abril de 2010
DOIS CLÁSSICOS DA LUTA DE CLASSES
Três décadas separam dois vencedores de Cannes: o alemão A Fita Branca ( no original com o complemento “Uma história para crianças"), de Michael Haneke, de 2009; e o italiano A árvore dos tamancos, de Ermanno Olmi, de 1978. Ambos abordam sociedades camponesas fechadas, cristãs, dominadas por um rígido sistema de classes, onde um dono de terra é dono da vida de cada um. A narrativa é ambientada em épocas próximas e idênticas: anos 1910 antes da I Guerra em Haneke e final do século 19 em Olmi.
A opção visual diz tudo sobre as intenções e resultados das duas obras. O preto e branco alemão enfoca a classe média – o professor, o médico, o pastor - como reprodutora dos princípios do regime de castas, que é a repressão, o ressentimento e a vingança. O colorido italiano resgata a rica diversidade dos hábitos do povo, sem deixar de lado os crimes produzidos pela imposição econômica. Ambos giram em torno das novas gerações, que sofrem o impacto da situação e interagem com ela.
Mesmo que Haneke seja duro com seu universo da Alemanha pré-nazista, denunciando suas fraudes e perversidades, e Olmi coloque em pauta a alienação e divisão entre os camponeses, que acabam sendo coniventes com os crimes, fica claro o fascínio que essas sociedades fechadas exercem sobre os dois cineastas. Olmi, filho de família ferroviária, não esconde a admiração por uma comunidade, do norte da Itália, que ainda tateava as máquinas e providenciava a sobrevivência por meio do trabalho duro, a união dentro da família, a obediência cega ao patrão. As brigas, as festas, o trato com os animais, os cuidados com as crianças, tudo é encantador no filme italiano, mesmo que encerre uma verdade cruel, a do camponês que foi expulso da gleba por ter recortado um olmo para fazer tamancos que seu filho pequeno necessitava, pois caminhava seis quilômetros por dia para estudar.
Haneke disfarça bem seu fascínio pelo perfil social da Alemanha que gerou o nazismo. Seu filme é sinistro. Um professor/detetive/narrador conta a história de crueldades praticadas contra os habitantes da aldeia. O médico pedófilo, o pastor sádico, o barão tirano, a babá submissa, o camponês que cala diante da morte suspeita da esposa fazem parte de uma paisagem que só muda nas estações, já que sua vocação é permanecer eternamente igual. Essa mesmice sufocante, com a emergência das crianças, que pipocam por todo, não cabe mais na ilusão sazonal do clima, que modela o trabalho escravo na semeadura e colheita. O momento é de ruptura.
No caso alemão, a briga familiar do patrão, pressionada pelos eventos criminosos do lugar, é o sintoma de uma ruptura maior, a do assassinato em Sarajevo que desencadeou o primeiro grande conflito mundial. No caso italiano, a saída à noite, do camponês junto com a mulher a braços com um recém nascido e rodeado de crianças, é prenúncio da agitação social que desaguou no fascismo. Vão para onde? Para o desconhecido. Para a guerra.
“Quando existe um princípio, uma ideologia ou uma religião absoluta, será automaticamente desumano”, disse Haneke numa entrevista. “Essa é a raiz de todos os terroristas, não importa a ideologia ou a religião. Se existe uma idéia perversa de ideologia, é perigoso. Também não é um problema especificamente alemão, mas uma grande generalidade”. Tirar da Alemanha a canga exclusiva da tirania colocá-la nos ombros da humanidade é a tarefa do alemão Hanecke que, sem omitir responsabilidades, chama o espectador para outra arena. A que está ao nosso redor.
Olmi e Haneke produziram clássicos na linhagem marxista, mesmo que não admitam. Eles seguem o que a obra de Marx tem de mais significativo, que é definir a história humana como a história da luta de classes. Em ambos, a identidade cultural entre as classes envolvidas serve para dar mais transparência ao conflito principal, já que são seres da mesma nacionalidade que convivem num sistema de opressão. Na época abordada pelos filmes, não há, como hoje, o confronto de opostos que existe entre a barbárie americana e o fundamentalismo árabe.
É entre iguais que se dá o drama. A sociedade imobilizada começa a ruir e deságua na guerra. Nada será como antes, mas o modelo das sociedades fechadas, fundamentalistas, permanece. Ou como denúncia ou como fascínio, vetores poderosos nestes dois filmes admiráveis. Eles mostram que não há espaço para a inocência numa sociedade dividida em classes. A fita branca colocada no jovem rebelde, em vez de significar a pureza de sentimentos, como quer o pastor, é o sinal da impossível reconciliação entre a opressão e a responsabilidade. E o pé de tamanco novo, que calça o garoto camponês escolhido para ir à escola, torna-se inútil com a expulsão da família ao cair da noite, quando todos se recolhem para não se envolver com o pecado do pai que quis proteger o filho.
RETORNO - Imagens desta edição: o camponês italiano derruba o olmo em "A àrvore dos Tamancos"; e o camponês alemão destrói a horta do Barão em "A Fita Branca".
16 de abril de 2010
SAGARANA CONTRA A SERVIDÃO INTELECTUAL
Quando publico aqui a grande novidade do trimestre – mais uma edição da melhor revista cultural do Mundo, a Sagarana – dou sempre a palavra ao seu idealizador, editor e diretor Julio Monteiro Martins, o mais importante escritor em atividade no Exterior. Primeiro, a carta em que ele anuncia a edição número 39. Depois um trecho, seguido do link, do seu editorial contra a servidão intelectual na Itália, um exemplo que serve para todos nós. E, terceiro, meu poema Ainda o Haiti, que foi traduzido para o italiano por Julio, seguido da sua versão original em português.
Sagarana, sempre um acontecimento que merece leitura e repercussão.
ATRAÇÕES DA EDIÇÃO NÚMERO 39
"Caros amigos e amigas,
É com satisfação que anunciamos a presença on-line, a partir de hoje, do n° 39 da revista Sagarana, em língua italiana, no endereço telemático www.sagarana.net .
Esta edição apresenta apresenta uma entrevista inédita da grande escritora indiana Arundhati Roy, feita por Amy Goodman, "Persone preparate a resistere", e em ensaio do intelectual da realidade contemporânea Chris Hedges, "Ribelli, all'appello!", um artigo de Eduardo Galeano sobre o Haiti, um texto de Jacqueline Risset e um outro de George L. Mosse, além do Editorial de Julio Monteiro Martins sobre a polêmica questão dos escritores italianos que publicam pelas editoras que pertencem à família Berlusconi, "Una resa a cinque stelle".
Em Narrativa são presentes uma tradução inédita de um trecho de um romance de Ana Maria Machado e de um de Rubem Fonseca, trechos da obra de Thomas Mann, Luigi Meneghello, Erri De Luca e Christopher Isherwood, além de textos inéditos de autores contemporâneos como Daniel Galera, Gabriel Wolfson e Tullio Bugari.
Em Poesia, as "Quartine erotiche" inéditas de Assunta Finiguerra, novas traduções de Jotamario Arbeláez, Francisco Ruiz Udiel e Nei Duclós, além das de poesias de Ingeborg Bachmann, de Alda Merini e de Mario Benedetti. E estão presentes também os contos e as poesias de autores novíssimos na seção Vento Nuovo.
Neste mesmo endereço telemático poderão encontrar a seção Il Direttore atualizada, com os contos inéditos Cinque racconti brevissimi, de Monteiro Martins, e na seção Scuola todas as informações sobre os projetos da Scuola Sagarana para o 2010/2011, em Pistóia, na Itália. Ademais, na seção Archivi, estão disponíveis para leitura todos os números anteriores da revista e todas as "Lavagne del Sabato" publicadas até hoje em Sagarana.
Esperamos que os os ensaios, os contos, as poesias e os trechos de romances selezionados possam oferecer-lhes muitas horas de agradável leitura.
Cordialmente,
A Redação de Sagarana."
EDITORIAL: UMA RENDIÇÃO DE CINCO ESTRELAS
"Aqui está a pergunta inevitável, a mais incômoda nestes nossos dias, para os produtores de arte e de cultura italiana: Pode um escritor comprometido com uma visão progressista de seu país e no futuro publicar seus livros por uma editora que pertence e é dirigida pela família Berlusconi, como é o caso da Mondadori e suas "irmãs"? Minha experiência com essas "relações perigosas" me faz pensar que não, não é possível. E querer justificar este argumento é tentar forçosamente a quadratura do círculo.
Você pode imaginar que Pablo Neruda que publica por uma editora dirigida por Pinochet? Ou Che Guevara, a publicar os seus ensaios políticos em uma revista patrocinada pela CIA? Ou Pasolini pedindo a Licio Gelli, o chefe da loja maçônica P2, um adiantamento para financiar a produção de um sue filme? Difícil de imaginar… Mas na confusão e no conflito entre a coerência ideológica (totalmente ausente, no caso) e a vontade de ter grande visibilidade editorial e na mídia, muitos escritores e diretores, que hoje se apresentam publicamente como de "esquerda", aceitam este o pacto com o diabo.
Ou seja aceitam ser financiados e distribuídos pela Medusa Film, ou pela Mediaset, de Berlusconi ambos, ou publicado depois do seu "Visto. Autorizo a impressão" nas editoras das quais ele detém o controle acionário, o poder do capital que é a marca da sua ditadura, e que, eventualmente, é o poder decisivo no sistema onde estamos atolados aqui, uma ditadura agravada ainda mais nos tempos recentes pelos novos modelos de convivência espúria entre cultura, política e negócios."
Segue o editorial neste link.
L'HAITI ANCORA
Nei Duclós
L’Haiti ancora respira
Nella fossa comune dell’esplosione della roccia
Nell’urlo finale di braccia e di gambe
Nel sordo legame tomba/caverna
Nella coda affamata di una nuova guerra
L’Haiti ancora spera
Nelle strade cosparse di erbacce
Nella lotta senza tregua tra bandiere
Nella miliardaria industria della miseria
Nella mano bugiarda del mondo sterile
L’Haiti ancora coopera
Scomparendo anonima attraverso la brutale preghiera
Spreco di ovulo e di sperma
Funerale di dolore in campo aperto
Compiuta espressione della cancrena
L’Haiti ancora accenna
Come un segno dopo la tormenta
Come un porto sommerso di candido fazzoletto
Annegato nel tunnel della memoria zero
Segue in pianto i dannati della terra
L’Haiti ancora fatica
Piccione viaggiatore che migrò senza le ali
Bussola a girare sull’amaro scafo
Poema ferito nella corte dei naufraghi
Tra amici inutili come un deserto
(Traduzione dal Portoghese di Julio Monteiro Martins)
In lingua originale:
AINDA O HAITI
Nei Duclós
Haiti ainda respira
Na vala comum do estouro de pedra
No grito terminal de braços e pernas
Na ligação surda do túmulo/caverna
Na fila faminta de uma nova guerra
Haiti ainda espera
Nas ruas plantadas de daninha erva
Na briga entre bandeiras sem trégua
Na milionária indústria da miséria
Na mão mentirosa do mundo estéril
Haiti ainda coopera
Sumindo anônimo pela bruta reza
Desperdício de óvulo e de esperma
Funeral de dor em campo aberto
Expressão completa da gangrena
Haiti ainda acena
Como um sinal depois da tormenta
Como porto submerso de pálido lenço
Afogado no túnel da memória zero
Trilha de choro dos perdidos da terra
Haiti ainda emperra
Pombo correio que migrou sem asas
Bússola em rodízio no convés amargo
Poema ferido na corte de náufragos
Entre amigos inúteis como o deserto
15 de abril de 2010
APRENDIZES DE FEITICEIRO
Um terremoto por dia, mar revolto onde a água era calma, vulcão na Islândia: o que falta para entender que o uso da máquina de provocar sismos e a evolução das armas climáticas fazem parte de uma política de terra arrasada, dentro dos princípios da economia da Catástrofe, apontada pela jornalista canadense Naomi Klein? Os responsáveis querem menos gente na terra e mais lucro, por isso promoveram o genocídio do Haiti, o que foi muito bom para os negócios, como prova o comportamento americano depois do massacre, em que Bush limpa as mãos na camisa de Clinton para ficar livre da contaminação, pois tinha acabado de apertar a mão de um “nativo”. Enquanto isso, o Exército brasileiro exerce a função de polícia e assistente social no território conflagrado.
O problema é que o excesso de eventos escapa do controle dos próprios aprendizes de feiticeiro, que ganharam de troco o terremoto do Chile e agora o da China, entre outras calamidades. As ondas emitidas para provocar o estrago são infinitas e se comportam, depois de um primeiro impulso de obediência, de maneira imprevisível. Não me venha com bocejos de teoria de conspiração e preste atenção no mar carioca de ondas altíssimas, e nas ressacas além da conta por toda costa brasileira, como se tsunami fosse uma impossibilidade entre nós.
Falar em armas climáticas é péssimo para os negócios. Como os americanos poderiam posar de politicamente corretos sem a teoria do aquecimento global, que coloca a culpa na humanidade poluidora e não nos governos que poluem tudo? Se for admitido que é o Haarp, a bomba eletromagnética que está fazendo o serviço, como é que James Cameron vai posar de mensageiro do Bem ao lado de sua na´vi favorita, a candidata Marina Silva, que se identificou com os povos da floresta de Avatar, os que possuem rabo de macaco e focinho de fera, o que está claro para quem viu o filme e não apenas dele ouviu falar?
Há uma indústria do aquecimento global, essa sim uma teoria fake de conspiração, que aquece os coraçõezinhos culpados e faz todo mundo querer o Bem enquanto são carregados nos ombros por súcias de bandidos? Se existe um grupo determinado a destruir o que resta do Terceiro Mundo provocando todo tipo de catástrofe encarada como “natural” então cai por terra essa movimentação, os jogos teóricos, os apertos de mão, os abraços e as mensagens politicamente corretas que infestam a mídia como uma avalanche de mentiras.
Mas vai dizer isso nas fuças da máfia e de seus inocentes úteis, vai. Eles te enquadram e continuam insistindo no Mesmo, porque assim é que é gostoso, se convencer de uma coisa e ficar nela para sempre, até que tudo se exploda e a culpa seja atribuída ao cidadão que, desesperado, se suicida nas estradas, se entope de junk food por falta de opção ou simplesmente sucumbe numa espiral de horrores num mercado de trabalho onde tudo está devidamente focado na subjugação do talento (esse mistério da sabedoria) e na desmoralização da ética por meio do catecismo de araque da auto-ajuda e das consultorias de terno e gravata.
Talvez os caras que promovem as calamidades estejam esperando que a onda passe e se dilua no cosmo para começar tudo de novo. Ou então estão mesmo promovendo cada barbaridade assistida por nossos sentidos em pânico. Nascidos para matar, os verdadeiros assassinos se travestem de sistema oficial que finge se importar com o futuro do mundo. Eles querem que todos morram. Deve ser gostoso destruir o próximo e gargalhar diante das inúteis insurreições que pipocam pelo mundo.
Mas chega uma hora que o aprendiz de feiticeiro poderá ser engolido pela própria mágica. Basta que as vítimas se dêem conta do truque e reajam à altura, em conjunto com a disposição de vencer. Mas que essa disposição não vire mais uma carta marcada do universo político que sabe transformar a revolta em mercadoria.
RETORNO - Imagem desta ediição: Walt Disney sabia de tudo.
13 de abril de 2010
MAIS VOGAIS
Nei Duclós(*)
Países imperiais cevados no frio só descobriram as vogais quando aportaram nas terras banhadas pelo sol. Excesso de luz, brisa marinha nas palmeiras, abundância natural liberaram as emissões fonéticas de todos os obstáculos e foi assim que nações consonantais foram seduzidas por algo mais valioso do que o ouro. Levaram alguns exemplares para exibir nas Cortes junto com papagaios e índios, onde foram incorporadas em parte.
Há resquícios de vogais em línguas européias, como o português de Portugal e o alemão. Em outras nações ganharam conotações bizarras, como no francês, em que se faz biquinho na hora de emitir um u, que, como dizia meu professor de ginásio, tem o som de buzina de fordeco velho. Ou no italiano, em que as vogais se transformaram em atrações nas manifestações coletivas.
Os italianos são mestres do ilusionismo, o que ficou provado definitivamente quando juntaram milhares de fabriquetas de roupas altamente perecíveis, jogaram dentro de tonéis de tinta, fizeram campanhas publicitárias com pacientes terminais rodeados de familiares desesperados e batizaram tudo isso de design. Uma lição para quem, como nós, vive gerando escassez com o que possui de sobra .
As vogais só não conquistaram países mais remotos, naquele cinturão de asteróides étnicos que faziam parte da matéria-prima da antiga Cortina de Ferro. Para amenizar a dureza que é falar só por consoantes, eles malharam em ferro frio o que dispunham, enchendo as letras de chumbo com articulações variadas, molhando-as com arranques agudos. Amigos que visitaram recentemente um desses lugares ficaram impressionados como eles precisam de frases longas para avisar a próxima estação do trem elétrico. Ignorar vogais gera esse tipo de transtorno.
No Kirguistão, que se situa na Área Consonantal Profunda, na recente revolução popular que derrubou o governo corrupto, um engraçadinho colocou “mais vogais” na lista de reivindicações. É uma demanda justa. Vogais servem para o grito indignado em praça pública. Não se acaba com uma tirania se submetendo à ditadura das consoantes. Ao mesmo tempo, vimos entre nós que uivos não são suficientes para mandar embora os meliantes da política. Bem que precisávamos de uma cultura fonética mais concreta para fazer valer nossa vontade de mudança.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 13 abril de 2010 no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: o povo em sua majestade, na recente revolta no Kirguistão contra um governo traidor e corrupto. Não lembra nada, não? Quem nos dera tanta coragem! Peguei emprestado a foto para divulgar o site onde aparecem essa magnífico movimento popular. Ela foi feita por Vladimir Pirogov, da REUTERS. A cobertura visual, fantástica, está neste link.
12 de abril de 2010
O PREDADOR
“Cisnes se acasalam por toda a vida. Não somos cisnes. Somos tubarões” diz numa palestra George Clooney no papel de Ryan, o profissional contratado para demitir gente por toda a América, no filme Up on the air (Amo sem escalas, 2009). Foi indicado para seis Oscars, incluindo Clooney como melhor ator, melhor filme do ano, script (de Jason Reitman e Sheldon Turner) baseado em livro e as duas coadjuvantes, excelentes, Vera Farmiga no papel da imagem espelhada do predador e Ana Kendrick, a jovem scholar que quer informatizar o serviço das demissões. Não ganhou nenhum. O que deu errado?
Para mim, acertou no atacado – a concepção do filme é brilhante, pela atualidade do tema e dos personagens e pelo ritmo da trama, sintonizada com as inúmeras conexões necessárias para o predador se movimentar em seu ambiente e fazer estragos. Mas errou, várias vezes, no varejo. Primeiro, porque os realizadores imaginam que poderiam enganar o espectador. A mulher liberada que procura um relacionamento seguro não tem o perfil da dona de casa flagrada pelo ímpeto do amante. Na era do celular, ninguém toma uma avião para chegar de surpresa num lugar onde nunca esteve sem cair na tentação de fazer uma chamada.
Um cara escolado como Ryan jamais se deixaria enganar sem antes, pelo menos, consultar a moça em questão, tão bem sucedida . Ela faz o quê, trabalha em quê? O filme não esclarece, mas uma googlada mostraria tudo. Um noivo em dúvida jamais se deixaria levar por um argumento tão pífio quanto aceitar ter uma esposa como co-piloto, metáfora adequada ao filme, mas que não está à altura do argumento e do roteiro. O filme erra o oferecer clichês para solucionar situações complicadas.
O anti-herói no fundo é um bom moço – como já provou o sucesso do protótipo do gênero, o Ricky/Bogart de Casablanca. Mas o mundo ficou intrincado demais para suportar antigas soluções. O rapaz pronto para uma conexão com o mundo real não se deixaria levar pelas emoções, mesmo que a família tenha entrado no circuito. Os americanos no fundo não perdem os vínculos com suas patriotadas.
O profissional malvado acaba sendo um bom sujeito no trato com sua concorrente, a jovem recém formada que veio com idéias revolucionárias para a empresa dos cortadores de cabeças. O roteiro oferecia várias chances de desdobramentos, mas o diretor insistiu em alguns vícios, como a repetição exaustiva de situações – por exemplo, a rotina das conexões. Isso ficou claro nas primeiras cem vezes, precisava reiterar 800 vezes mais? Precisava também fazer um clipezinho na seqüência da festa, em que entram todos os lugares comuns, do karaokê aos hurras babacas coletivos e o banho de mar na madrugada. E ainda tem a filosofia barata de conseguir metas difíceis e na hora agá achar tudo uma besteira.
Trata-se de uma chance perdida de fazer um bom filme. Há a vantagem de o predador manter sua dignidade de um cara isolado e firme, que se entrega ao trabalho depois de fazer alguns atos caridosos. Mas desta vez, não por convicção, mas porque, como todo mundo, sofreu uma desilusão amorosa. É pouco para o personagens muito bem elaborado por Gorge Clooney, um ator que não costuma errar e um realizador que não cairia nas armadilhas que enredaram o diretor Jason Reitman.
Assim mesmo, com todos os defeitos, gostei de ver. É o que eu chamo, numa gíria doméstica, de “pororoca”. Porque uso esse termo, não me pergunte, esqueci (talvez porque promete muito e só faz marola). Mas funciona de ouvido. É uma boa pororoca.
RETORNO - Imagem desta edição: George Clooney em "Amor sem escalas".
10 de abril de 2010
A DÚVIDA EM AKIRA KUROSAWA
Ver Kurosawa é obrigatório: ele inventou o cinema que grandes cineastas copiaram. No seu centenário de nascimento, que se comemora este ano, é uma forma de homenagear os olhos e o espírito. E o correto é ver tudo, já que não existe Kurosawa menor. Ele sempre extrapola o que percebemos à primeira vista, pois usa sua arte como síntese e desdobramento de conflitos profundos, explícitos em cenas de grande confluência de vetores. É o caso de Anatomia do Medo (Ikimono no kiroku, 1955), de Akira Kurosawa, com Toshiro Mifune no papel do empresário que morre de medo da bomba H e tenta, em vão, levar a família para fora do perigo, o Brasil (já fomos uma vez o Eldorado).
O filme é sobre a dúvida, o medo é sua conseqüência. Há a dúvida que provoca o medo generalizado, surdo e mudo, que impede o pânico de vir à tona. Nessa doença social crônica as pessoas se iludem com a estabilidade enquanto paira a ameaça real do extermínio. “Ele está louco?” pergunta o psiquiatra da casa de repouso onde está internado o velho que pôs fogo na fundição da família para forçá-la a emigrar com ele. “Ou louco estamos nós que ficamos absolutamente impassíveis num mundo insano?” A dúvida é: devemos nos insurgir ou deixar como está, desde que não há nada a fazer? A maioria cede, mas alguns não.
O dentista interpretado por Takashi Shimura, um dos atores mais convocados por Kurosawa, junto com Mifune, sabe que o velho tem razão, mas tem dúvidas se deve ou não considerá-lo judicialmente incapaz, pois sua paranóia está provocando a ruína das finanças da família. A decisão do tribunal de pequenas causas é contra o empresário, mas isso provoca uma espiral de tragédias. É notável o detalhe de algumas cenas em que as pessoas tentam falar alguma coisa ao mesmo tempo depois de um longo silêncio. Ou quando custam a sair do lugar depois de um diálogo, como a considerar o que ainda vão dizer ou decidir.
Qual a síntese a que me referi acima nas seqüências de Kurosawa? Há vários exemplos. No início, a câmara passeia pela cidade lotada de gente, bondes, automóveis, barulho, e de repente fixa numa janela onde está o dentista que será o fio condutor da trama. No caos urbano de uma sociedade ameaçada, a vida normal da sobrevivência da classe média procura uma atividade social, que é a de participar dos julgamentos de casos familiares. O dentista que trabalha no consultório junto com o filho tem dúvida sobre essa atividade paralela e mantém com ela uma relação dúbia, de fascínio e ojeriza. Tudo isso está em poucos segundos de cinema. Kurosawa não brinca em serviço.
Num plano geral, vemos que a saga familiar é apenas um aspecto da luta de classes. O empresário que emprega dezenas de operários só pensa em salvar a família. Destrói o patrimônio que construiu ao logo da vida para tirar as pessoas próximas do perigo. “E nós?” pergunta o metalúrgico, “que vivemos desta empresa, o senhor não pensou em nós?” Flagrado no egoísmo, o velho entra em parafuso até a loucura. A própria ameaça da Bomba H é a extrapolação da luta de classes em escala mundial. Os impérios entram em choque e só a ameaça de solução final decide a parada.
Os Estados Unidos deveriam ter jogado a bomba em duas grandes cidades japonesas, onde não havia soldados, só civis, a maioria velhos, mulheres e crianças? A guerra já estava ganha, mas era preciso dar uma lição para vingar o ataque a Pearl Harbour (eles são os imperdoáveis). A bomba cairia de novo no Japão ou a antiga potência se enquadraria de vez no jogo do Ocidente? Vimos o que aconteceu. Mas em 1955, ano em que foi feito o filme, o Japão ainda se digladiava com suas dúvidas, recém egresso de um conflito que acabou com a imagem tradicional do país.
Kurosawa também teve dúvidas no inicio de carreira Queria ser pintor, mas não conseguiu porque a escola de arte era cara. Só foi para o cinema quatro anos depois que sua irmã mais velha, narradora de filmes mudos, se suicidou. Ele mesmo tentou suicídio (devo viver ou não?) numa crise de depressão nos anos 70. Cortou o pulso várias vezes. Não teve êxito. Sorte nossa, que podemos ver seus 30 filmes maravilhosos. Em relação a Kurosawa, não há dúvida: este é o cineasta maior. David Lean, meu favorito, que me perdoe.
RETORNO - Imagem desta edição: Toshiro Mifune, magistral, no papel do empresário que enlouquece em “Anatomia do Medo”, de Kurosawa.
8 de abril de 2010
DEMOCRACIA FAZ A DITADURA FUNCIONAR
A especulação imobiliária quer destruir a cidade praieira. Então convoca uma reunião para “consultar a sociedade”. Assunto: mudar o Plano Diretor, que vai permitir construir edifícios nas reservas ambientais e abrir as comportas dos morros, até agora verdes, para a construção siderada de condomínios de luxo e suas consequências, a favelização geral. As pessoas comparecem, fazem passeatas, o assunto é discutido e...as modificações sugeridas pelos tubarões são aprovadas na marra. É assim que a ditadura funciona.
Há um projeto de ficha limpa, que impediria os candidatos sob investigação ou condenados a disputarem eleições. Os deputados fazem a maior onda, comparecem em massa, acatam as assinaturas de um milhão e meio de pessoas e...adiam a votação. Resultado: o projeto será aprovado, com a diferença, imagino eu, que serão proibidos todos os que tiverem ficha limpa.
Como o país está podre, pobre e não tem para onde ir, fala-se muito em liberar milhões para áreas de risco. Liberaram. Quase a metade foi para um curral eleitoral baiano, enquanto o Rio ficou com menos de um por cento da verba. Tudo foi feito direitinho: a necessidade havia, os recursos foram liberados, os caras eleitos pelo voto direto tomaram conta e deu nisso aí. É assim que a ditadura funciona, usando todos os recursos da democracia.
Lula viaja, o vice está doente, o presidente da Câmara é candidato e não pode assumir no seu lugar. Sobra para quem? Para Sarney. alvo de denuncias pesadas na imprensa e até por livros best-sellers, como Honráveis Bandidos, de Palmério Dória. Ou seja, Sarney, egresso do PDS, partido da ditadura, que se passou para o MDB para assumir a vice-presidência da chapa com Tancredo e com a morte desse assumiu o poder sem ter direito a tanto, pois a chapa ainda não tinha tomado posse. Resultado: sua gestão aplaina o terreno para que a democracia fizesse o serviço da continuidade da ditadura. Agora ele vira presidente de novo. É assim que o regime funciona.
Alguma dúvida? Colunistas políticos falam em opção única entre Dilma e Serra, ou seja, já aparelharam as eleições nove meses antes do voto. É a ditadura dando as cartas por todo lado, na mídia, na política, nas verbas, nas tragédias. O prefeito do Rio prometeu que os carros levados pela enxurrada não serão multados. Tenha dó, tchê. Também dá a boa notícia de que as avenidas estão liberadas, apesar da má notícia de que 200 corpos devem estar debaixo dos escombros de uma aterro sanitário que virou favela. Onde estão os patíbulos públicos? Fazem falta.
Uma enxurrada de 24 horas provoca tragédia porque antes dela, por semanas e até mesmo meses choveu sem parar, preparando a terra para o deslizamento, sem que se fizesse nada a não ser correr atrás do pré-sal, dos candidatos federais, do futuro político. Quando uma tonelada de lixo sanitário trazendo casas, crianças e adultos pela frente, como aconteceu em Niterói, escancara o país que vivemos, é hora de perguntar: por que não derrubamos a ditadura?
Abaixo a ditadura e fora o imperialismo. As palavras de ordem de 1968 estão de pé.
RETORNO - Imagem desta edição: Revolução Francesa. Tirei daqui.
7 de abril de 2010
FRASES COM ECO
Tenho caprichado no Twitter, arena excelente para exercer a compulsão do texto, dentro dos parâmetros exigidos tanto pelo blog (ou microblog, como queiram),as tais frases de 140 toques, como pelo próprio jornalismo ou a literatura. Algumas frases são mais felizes e são reproduzidas por várias pessoas,o que por sua vez atrai outros seguidores. Vou colocar algumas aqui, recentes, pois com o uso na rede a origem pode ficar confusa. É precisa que se diga sempre: essas frases são de minha autoria. Quem gostar, como tem acontecido, cita a fonte. Começamos pelas mais fortes:
DIA DO JORNALISTA (7 DE ABRIL)
Jornalismo no twitter tem tamanho de legenda e força de manchete
Esta frase que criei na manhã do dia 7 de abril de 2010 teve ampla repercussão. Coloquei nela minha formação em fechamentos nas redações. Ou seja, você precisa criar titulo, linha fina, legenda etc. para o jornal ou revista ficar pronto. No Twitter, não desperdiço espaço e uso o mesmo critério rigoroso. Isso me levou a ter esse insight, que conquistou a jornalistada do Twitter.
Governo Lula é aprovado por 92% dos jornalistas. Os outros 8% foram demitidos
Jornalismo é estiva, carregar saco de carvão para o porão do navio. Glamour é desfile de moda no convés
INUNDAÇÃO NO RIO
O Brasil não foi feito para a chuva.
Sempre me pergunto o que é estado de alerta ou de emergência. Os incompetentes de sempre ficam de orelha em pé?
Ser prefeito é montar no helicóptero da Globo e pontificar para os telespectadores enquanto a cidade afunda
As inundações atípicas são previstas pela Lei de Murphy e punidas por sapateados oficiais até a chuva parar
POLÍTICA
O que seria um "embate ético" entre Dilma e Serra? Cada um bate com um volume grosso de Hegel no outro?
Hoje é moda achar que o Brasil sempre foi assim "desde que o mundo é mundo". Velho truque: transformar o Mal implantado em algo "natural" : PM Apr th via web
Hoje é moda desprezar o Brasil, mas o que existe é essa nação desconstruída pela ditadura, que acabou com a confiança no país :
Nos anos , líderes secundaristas subiam no caixote e faziam discursos citando Aristóteles, para uma massa atenta. Já fomos melhores :
Destruiram a excelência da nossa educação, que formou os gênios do Brasil, para gerar zumbis que admiram ex-BBBs :
Estudei frances, inglês, latim e música aos anos de idade, no ginásio. Tínhamos educação de qualidade, sucateada a partir de :
Eudcação em país de política econômica soberana está voltada para a formação escolar plena e não para gerar balconistas do McDonalds :
Levantar a bandeira da educção sem a contrapartida de uma política econômica soberana é tapar o sol com a peneira :
Num país soberano, a política econômica está voltada para o povo, não para meia dúzia ou para estrangeiros. E a educação, para a cidadania :
Educação não tem poder nenhum quando a política econômica é de entrega da soberania. Num país vendido, forma-se para o "mercado" :
POÉTICAS
O tempo fechou. Dois corações descalços palmilham a inundação na inútil tentativa de voltar ao que era antes
Terremoto na Lua: nove graus na escala dos corações partidos
Vou sortear duas pedrinhas de rio, numa promoção de outono clássico. Quem ganhar leva ainda um papel virtual rabiscado de memórias
Num sonho muito antigo e muito real, escorregou num poço e foi-se. O que o impressionava não era o pesadelo, mas o fato de continuar vivo
Evitava passar em frente ao próprio carro. Temia que ele mesmo, o dono ao volante, pudesse atropelá-lo. Contou para o médico, que bocejou
A coruja soluçou alto sem interrupção. Acordou. Foi ver lá fora. O portão estava aberto. Fechou. A coruja calou-se e ele voltou a dormir
RETORNO - Imagem desta edição: "Trabalhadoras gregas em plantação de chá", foto de Sergei Prokudin-Gorski. Fiquei sabendo desse trabalho pelo Twitter, que não é apenas uma frase atrás da outra, mas um conjunto de links poderosos para tudo o que é informação. Ou seja, jornalismo elevado ao infinito.
6 de abril de 2010
SERVIÇO COMPLETO
Nei Duclós(*)
Recebo um baú de fotos com cenas da família. Quase todas se referem à escola: o desfile com o uniforme do Jardim da Infância, a entrega do diploma, a reunião com os colegas, o time do ginásio, os professores conversando com os pais, as rodas das bicicletas com papel crepom, ao lado de uniformes azuis e brancos, a saída do colégio.
A vida estudantil era hegemônica antes da reforma da educação promovida pelo regime de 1964, que hoje leva a fama da excelência do estudo, quando apenas usufruiu das gerações formadas antes do golpe de estado. A aprovação por decreto, dos anos 90 para cá, e agora a imposição de cotas raciais para driblar o vestibular apenas completam o serviço.
Lembro da cartilha Caminho Suave, criada pela educadora brasileira Branca Alves de Lima (1911-2001), que alfabetizou mais de 40 milhões de brasileiros, antes da atual febre de analfabetismo institucionalizado. Aprendi a ler no primeiro ano primário com ela. As letras eram identificadas com o desenho do significado das palavras que ajudavam a formar. A barriga do b era humana, o marfim do elefante fazia parte do e, as vogais unidas às consoantes levavam às sílabas, estas às palavras até chegar à frase e ao texto.
Debocharam até derrubar o famoso “Ivo viu a uva”. Mas com apenas uma consoante e quatro vogais era possível formar uma oração completa, suprema síntese de fácil e rápido entendimento, reveladora das possibilidades da linguagem. No seu lugar, atropelaram a mente infantil com palavras completas, que não fazem sentido à primeira vista. Mas esse sistema silábico caiu há tempos de moda.
A educação que sacode afirmativamente a cabeça, de maneira muda depois de grandes frases teóricas, aguarda que a platéia dos eventos entre luminares chegue à altura dos seus conhecimentos, enquanto a estudantada entra numa espiral ágrafa. O que existe é soberba. O que inexiste são políticas publicas, a começar pela remuneração decente de quem escolheu a profissão de ensinar (ou foi empurrado para ela, diante da falta de perspectivas).
Lembro que os professores retratados nas fotos que recebi exibiam vocação, no caso dos religiosos, somada a uma situação econômica estável, entre os mestres leigos. Isso transparecia na sala de aula, lugar de respeito, onde ninguém puxava a faca no meio da lição.
RETORNO - 1. Formada professora, minha mãe, Dona Rosinha, posa com sua roupa de gala da educação brasileira de excelência. Foi nos anos 30, época do Brasil soberano. 2.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 6 de março de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
3. Comentário de Marcos que merece destaque aqui. Diz Marcos:
Também fui educado com o modelo antigo, que dava certo, e fiquei curioso com o modelo que estão praticando agora, o tal construtivismo. As definições não mudam muito, como diz um tal Fernando Becker:"Construtivismo significa isto: a idéia de que nada, a rigor, está pronto, acabado, e de que, especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como algo terminado. Ele se constitui pela interação do indivíduo com o meio físico e social, com o simbolismo humano, com o mundo das relações sociais; e se constitui por força de sua ação e não por qualquer dotação prévia, na bagagem hereditária ou no meio, de ! tal modo que podemos afirmar que antes da ação não há psiquismo nem consciência e, muito menos, pensamento."
Esta filosofia educacional só tem como objetivo destruir tudo o que fomos, como nada está pronto, acabado, como diz a definição, o conhecimento que recebemos de nossos pais e professores, que incluía principios espirituais e morais perenes, foi substituído pelo vazio. A estratégia política por trás do crime é evidente, o bando de cabeças vazias que o sistema educacional está produzindo perpetuará para sempre os Lulas e Dilmas e sua corja de mequetrefes no comando deste espaço de terra que outrora já foi chamado de país.
4 de abril de 2010
AGITAÇÃO NO TWITTER
Dediquei o feriadão de Páscoa para assestar baterias contra a cara de pau da ditadura brasileira que forja mais uma eleição geral fajuta para reiterar o mesmo e continuar ungindo os de sempre na partilha do butim, o dinheiro público arrancado da população por meio do mais escorchante sistema de impostos do mundo. Foi produtivo: em três dias conquistei mais 26 seguidores, sensibilizados pelas frases até 140 toques disparados por mim em vários momentos do dia. Não se deve dar trégua para essa canalha. A seguir, uma seleção dos mísseis disparados a esmo:
CAMPANHA ELEITORAL E DITADURA
Vamos combinar o seguinte: elimine-se os termos petralha e neoliberal para reduzir a um décimo o volume do debate político
A sucessão de projetos furados, promessas vãs e acusações mútuas é o mais grave sintoma do pacto sinistro que nos governa em rodízio
Tomar partido por qualquer um dos lados do atual sistema bipolar é assinar a própria condenação política
É preciso que as pessoas acreditem que estamos numa democracia para que os maganos de sempre saiam com as mãos carregadas de ouro
Censurar blogs é a covardia atual do regime de cartas marcadas, onde a bandidagem disputa mais uma temporada de assalto ao butim
Jornalistas que não dizem com todas as letras a cumbuca onde todos metemos a mão não merecem exercer a profissão
Um regime que não suporta o jornalismo, tentando enquadrá-lo ou censurá-lo por meios "legais", não passa de ditadura rastaquera
Uma boa biografia jornalística pode valer mais de um milhão de reais por ano. Mientras tanto, a profissão vai para o brejo
Jornalistas de renome que usam seus portais para fazer campanha eleitoral no atual sistema de tirania são vendedores de biografias
Os institutos de pesquisa substituem o processo eleitoral. Impõem resultados previamente para manipular o voto útil (de cabresto)
Campanha eleitoral gera emprego de segurador de bandeira e distribuidor de panfleto. Quem gritar urrú para o palanque ganha extra
O único candidato que existe é o photoshop
O que mais irrita é fingir que a campanha eleitoral serve para a produção de pensamento, quando tudo não passa de conversa
Candidato que falar em saúde e educação, quando já estamos fartos de saber como funciona o esquema, leva cascudo
Levar a sério a campanha eleitoral é como se perfilar diante de um camelo
Acabou o sossego A campanha eleitoral pegou firme no twitter. Só falta agora a turma dos beijos no coração
São sempre os mesmos, que ocupam cargos com maior ou menor visibilidade. É porque a ditadura é sempre a mesma
Hoje é moda achar que o Brasil sempre foi assim "desde que o mundo é mundo" Velho truque: transformar o Mal implantado em algo "natural"
Hoje é moda desprezar o Brasil, mas o que existe é essa nação desconstruída pela ditadura, que acabou com a confiança no país
Nos anos 60, líderes secundaristas subiam no caixote e faziam discursos citando Aristóteles para uma massa atenta. Já fomos melhores
Destruiram a excelência da nossa educação, que formou os gênios do Brasil, para gerar zumbis que admiram ex-BBBs
Estudei frances, inglês, latim e música aos 11 anos de idade, no ginásio. Tínhamos educação de qualidade, sucateada a partir de 1964
Eudcação em país de política econômica soberana está voltada para a formação escolar plena e não para gerar balconistas do McDonalds
Levantar a bandeira da educção sem a contrapartida de uma política econômica soberana é tapar o sol com a peneira
Num país soberano, a política econômica está voltada para o povo, não para meia dúzia ou para estrangeiros E a educação, para a cidadania
Educação não tem poder nenhum quando a política econômica é de entrega da soberania Num país vendido, forma-se para o "mercado"
Não se trata de praticar a virgindade política. Isso não existe: somos sobreviventes Mas enxergar claro para destruir a rede d e ilusões
A hora é da verdade Quem comercia com fatos depois de inventá-los precisa ser desmascarado
A credibilidade emigrou da pose dos chamados grandes comunicadores para a mídia autoral sincera disseminada pela rede
As pessoas de bem devem dedicar este ano eleitoral para criar uma barragem de indignação efetiva contra o avanço da ditadura
Criticar é fruto da percepção e da análise, não pessimismo barato contra o "lado positivo" da vida. É o primeiro passo para a ação efetiva
Celebridades jornalisticas envolvidas na campanha eleitoral: virem essas biografias para lá, que elas não valem mais nada
Propostivos: Erradicação de todos os envolvidos em falcatruas, recuperação do patrimônio nacional, a volta do ensino de qualidade
Vamos ser propostivos: peso identico do voto nas capitais e grotões, resgate do sistema ferroviário, fim da remuneração criminosa dos juros
MISCILÂNEA
Hoje o Brasil falsifica bebida para o Paraguai revender
Beber não é problema. O que pega é pagar caro o metanol com rótulo de vodka
A natureza não existe. O que existe é cultura e comportamento Ninguém brota como um cogumelo
Nutrientes é uma palavra que empresta rigor a matérias frescas E insumo é a máscara noticiosa da matéria paga
Feriadão é aquele periodo de lazer em que as famílias saem de casa para morrer nas estradas
Ninguém é socialmente responsável num país que tem favelas e políticos visitando favelas em época eleitoral
A vida adulta foi erradicada do imaginário nacional O que temos é adolescente xingando pai em novela das nove
Filme brasileiro cacifado por dinheiro público não leva cinco minutos para alguém começar a tirar a roupa. Olhaeuaquitransando é cool
Aeronave, óbito, viatura: o jornalismo está assumindo a linguagem dos escrivães
O noticiário da TV é aquele que transmite reportagens de segundos e publicidade de várias horas
O que é pior: o robô que não sente dor, os cretinos do cervejão, a promoção sem juros com juro embutido ou o iogurte que vai aos pés?
O noticiário da Páscoa é o mesmo do ano passado: a culpa é dos motoristas, os fiéis esfolam os joelhos e a paixão usa capuz medieval
RETORNO - Imagem desta edição: obra de Ricky Bols em fotos, aquarela e photoshop.
3 de abril de 2010
IGREJA CATÓLICA: RESPONSABILIDADES E CAÇA ÀS BRUXAS
Está certa a Justiça americana em querer enquadrar o Papa Bento XVI por ter acobertado o padre pedófilo que molestou 200 crianças surdas em Wisconsin. Não está certa a Justiça americana ao permitir que os soldados do seu país matem civis diariamente no Oriente Médio, obedecendo os ditames da indústria do petróleo e da geopolítica imperial. O ex-cardeal Ratzinger pode ser apeado do trono, mas a Igreja Católica não é apenas o Papa da hora, assim como os juízes americanos não são todo-poderosos, que poderiam impedir o envolvimento político do Império por meio da guerra nos países pobres. Tanta a Igreja quanto a Justiça são instituições acima dos erros de seus membros, mesmo que sejam crimes hediondos, como acobertar ou permitir outros crimes.
Por que estão acima? Porque existem em função de princípios e ações que servem de barragem à maré alta da bandidagem internacional. Esta, já fez o serviço com os muçulmanos, desmoralizando-os ao empurrarem os mais radicais para a violência, depois de desestabilizarem as regiões onde viviam. Fez também o serviço completo com os judeus, expulsando-os da Europa depois do massacre da Segunda Guerra. Os budistas estão sob controle, confinados pela China. E os protestantes, antigos e novos, se pautam pela dispersão: eles não tem a força de uma Igreja una, duplamente milenar, que ascendeu ao poder secular quando conquistou o coração do Império Romano e assim fez parte da gênese da maioria das nações do Ocidente.
Como desmoralizar um poder que está acima dos países, que forma o caráter de populações, que faz parte da educação de milhões de pessoas há séculos, que possui em seu acervo o que há de melhor e mais significativo em arte, sem esquecer a filosofia, literatura etc.? A Igreja Católica é um sapato no poder multinacional que precisa ter o território livre para impor suas forças, que são: o sucateamento das fronteiras para que meia dúzia tenha acesso a todos os recursos da terra sem ninguém para atrapalhar; o fim da moral e bons costumes para que todos possam consumir a tralha industrial envenenada sem tugir nem mugir, apesar das campanhas milionárias da falsa correção política; a multiplicação e superconcentração dos recursos, à custa do suor de bilhões de pessoas, entre outros objetivos.
Por não possuir um Vaticano, por não ser explícito e visível, esse poder sinistro se impõe pela negação da sua própria existência. Tudo o que bate contra ele é tratado como teoria da conspiração. Sua natureza é oposta a instituições como a Justiça ou a Igreja, que são palpáveis, possuem sedes e porta-vozes e representações onipresentes no mundo inteiro. Armar o circo como se fosse obra da natureza é a especialidade desse poder que estimula uma indústria como o agronegócio, que trata as terras aráveis como matéria-prima de desertos, em detrimento da agricultura pulverizada e familiar, que gruda a população ao campo, em vez de soltá-la como rebanho louco pelas cidades em ruínas, onde ficam à mercê dos invasivos oficiais ou marginais .
Um dos grandes álibis desse poder secular que transforma em marionetes a gentinha atualmente no poder (os estadistas de estádio) é se postar ao lado da modernidade contra ao atraso das instituições. Disseminar a ilusão de que combatendo a Igreja as pessoas imediatamente se inserem no futuro da humanidade é um truque pesado que enreda muita gente. Mas o poder que instaurou o eterno presente, eliminando os tempos próprios de nações e povos, para que se consumam as porcarias que fabricam, gera apenas vazio e medo, enquanto instituições como a Igreja e a Justiça são a trincheira onde almas e corpos se abrigam para enfrentar o terror instaurado como norma.
A caça aos padres pedófilos não se restringe aos casos, inúmeros, que pipocam há tempos pelo mundo todo. Faz parte de uma ação política maior, que usa todos os recursos, inclusive a ação de outras instituições, para difundir uma nova caça às bruxas, procurando limpar o terreno ideológico e midiático e assim impor uma falsa realidade: o poder incontestável do dinheiro globalizado especulativo, da indústria de armas e do petróleo (vejam o Putin na Venezuela!) e dos genocídios por meio invenções cada vez mais sofisticadas e mortais. Quando se tentou minar a confiança no catolicismo por meio do resgate da Inquisição, o Papa João Paulo II pediu perdão, o que serviu pelo menos para impedir maiores estragos na imagem da Igreja.
Mas agora a violência é muito maior, pois a Igreja errou ao conviver intimamente com o pecado da pedofilia e ficou assim vulnerável ao ataque. Que se faça justiça, mas que se tenha claro o enfoque político da campanha, que procura negar a obra da Igreja em mais de dois mil anos, e que não é pequena. Seus erros, seus equívocos, suas distorções, suas misérias fazem parte do humano. Mas a grandeza da sua presença num mundo cada vez mais hostil é necessária e irreversível. Não se tape o sol com a peneira, mas também não se ignore que os poderes que aproveitam os pecados são eles mesmos a fonte do horror apontado em território alheio.
Diz a Igreja que a pedofilia atinge 4% os seus quadros, um índice muito maior do existente na sociedade. Não justifica nada, apenas serve para mostrar que a porção maior do catolicismo não comunga com esse crime. Colocar todos os padres na vala comum da pedofilia é o mesmo que chamar todos os muçulmanos de terroristas ou todos os americanos de invasores. Devagar com o andor que o sábado é de Aleluia.
RETORNO - Imagem desta edição: Caravaggio e o Cristo morto.
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