21 de janeiro de 2010

UNIVERSO BALDIO: DE REPENTE, UMA LEITURA


Lancei meu romance em 2004. Recebeu algumas críticas ótimas, mas a grande imprensa emudeceu, ajudando a criar uma barreira entre o lançamento e o público. Apesar de ser comentado por Raduan Nassar e apesar de eu ter militado décadas nas redações, estas se mostraram indiferentes. Basta o Catchorrinho fazer au-au em letra de forma para darem páginas e páginas com fotos do autor e do livro, com generosas resenhas e espaços de entrevistas, enquanto nem sequer dizem que Universo Baldio está na praça. Mas não importa. O texto a seguir é de um jovem professor de Porto Alegre e muito me honra sua leitura e observações. Atenção: o texto a seguir não é meu, é do professor Lucas! (ponho esse aviso porque acabam sempre confundindo).

DO CERCO À PERDIÇÃO

Lucas de Melo Bonez (*)

"Sempre escutamos histórias sobre como a ditadura foi complicada para a massa que queria a democracia para o país. Repressão, prisão, humilhação. Um país afogado em dívidas e um povo afogando as próprias palavras. Na literatura, houve muito destaque pra isso.

Há um bom tempo atrás, apresentei um trabalho no Seminário de Crítica Literária, na PUCRS, que tratava sobre o assunto, mais especificamente sobre a questão do herói degradado nessa época. Meu objeto de análise foi um livrinho do Arnaldo Campos, bem curtinho, chamado Réquiem para um burocrata. O enredo relata sobre um funcionário público que, no auge da ditadura, é convocado a prestar depoimento na polícia. Não sabe o real motivo, mas sua paranoia se perpetua no decorrer da narrativa, graças a uma singela presença numa roda de subversivos, numa dada noite. Com medo de que os militares descobrissem, ele evita falar no assunto, a presença de pessoas suspeitas, sua própria família. Lembra, com muito carinho, apenas da Princesa, sua cadela que falecera há pouco. Perdido em memórias e traído pelo destino, entrega-se à loucura, perdendo todo o senso da realidade. Resultado de uma sociedade opressora e mal regida.

Li ontem Universo baldio, do Nei Duclós, e me lembrei disso. O enredo também gira em torno da ditadura, mas sobre um grupo que fugiu de Porto Alegre e tenta a vida na praia de Itaguaçu, praticamente inóspita, em Santa Catarina. Alguns drogados, outros apenas desempregados, ainda os bitolados. Não havia uma alma que fosse trabalhador comum, que se contentasse com a situação. Alguns até o eram, mas pareciam mais invadidos pelos entorpecentes e acabavam assim. Luís, o protagonista, perde-se em viagens interiores, levando-o de encontro a Honório de Lemos, general gaúcho revolucionário, que o guiará de volta a sua vida.

O enredo parece muito aéreo, contudo traz representações significativas para quem lê: a questão do encontro consigo, o qual muitos já perderam o caminho, mas que Luís acabará trazendo à tona. Um dia, nos fins de 1960, um revolucionário, um lutador contra a repressão; poucos anos depois, um drogado que pedia esmolas e fazia poucos serviços em Itaguaçu; deixara faculdade da UFRGS para viver de música; queria ser escritor, mas mal colocava palavras num guardanapo. Quem era Luís afinal? Quem ele queria ser? Em quem ele se tornou? O livro discute esses aspectos e relança o personagem na sociedade, já sem repressão, sem domar suas ideias, que agora já não mais serviam.

Comprei esse livro numa loja de 1,99. Já me valeu bem mais do que paguei. Partir dessa obra para reflexão sobre quem somos também vale como possibilidade. Afinal, não adianta apenas nos questionarmos constantemente sobre isso se nem conhecemos realidade alheias, sejam essas reais ou literárias."

(*) Professor de Língua Portuguesa e Literatura, Mestre em Teoria da Literatura (PUCRS/2008), Especialista em Literatura Brasileira (PUCRS/2005) e Infanto-Juvenil (PUCRS/2006), graduado em Letras (Unilasalle/2004). Atualmente cursa Ciências Sociais (UFRGS/2009)

RETORNO – Coloquei lá o seguinte comentário: R$ 1,99? É duro não ser um líder (de vendas). Mas o que é importa é que o livro, lançado em 2001 pela W11/Francis, boicotado pela grande imprensa onde trabalhei por décadas, chega sempre ao seu destino, à leitura qualificada que produz observações tão certeiras e estimulantes como as que leio aqui. Obrigado.

Ao que o professor Lucas respondeu:


Aurora privilegiada

Lucas de Melo Bonez

"Quando leciono argumentação aos meus gloriosos educandos, digo que existe uma forma de convencimento que é baseada em pessoas reconhecidas pela sociedade, aceitas pelo grande público. Ao citarmos Aristóteles, Rousseau, Roosevelt, Saramago, até o nosso presidente Lula (!), podemos esclarecer certos pontos de vista e ideias sobre determinados assuntos.

Hoje, acordei, vim ler meu blog, e me senti um privilegiado. Ontem, tratei um pouco sobre textos referentes à ditadura e expus um pouco sobre o Universo baldio, do Nei Duclós. Eis que, ao ver que havia comentários sobre o texto, descubro que são do próprio autor. Ainda bem que leio os vivos, para que possam um dia ver o que falam a respeito deles. Tudo bem que alguns nunca lerão que escrevo aqui - vide Saramago -, entretanto notei um ar de louvor ao ler um pouco mais do autor de minha última leitura.

Sobre a argumentação: quem sou eu pra tecer maiores comentários quando um renomado escritor diz que seu blog tem algum conteúdo útil a ser lido?"

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