O Brasil perdeu a graça. Basta ler alguns críticos de cinema. A violência com as palavras chega ao nível da violência física. Perdemos a graça porque perdemos a inocência, não a inocência útil, ou algum estado de imbecilidade pré-natal. Perdemos a inocência do espírito desarmado, a que se abre ao Outro sem má-fé ou disputa. É por isso que lamento chegar tarde aos textos sobre cinema, já que só vejo dvd, expulso que fui das salas de projeção, muito distantes aqui de casa ou impossíveis de aturar devido à presença da multidão de engraçadinhos (os perversos que embarcam nas distorções da comédia). Gostaria de fazer justiça no bate-pronto, desmascarando a falta de juízo sobre obras como Onde anda você (2004), do cineasta maior Sergio Rezende. Teve gente que não viu sentido no filme, tentando desqualificar o autor e sua equipe para o humor. Mas Rezende acerta no veio e é dever nosso dizer porquê.
Lembro um show que vi com o mutante Arnaldo Dias Batista. Ele estava quase vestido de Chaplin e sua performance, poética e hilariante em alguns momentos, era sempre pontuada por um agradecimento ao público muito parecido ao de Calvero, o personagem de Chaplin, no imortal Luzes da Ribalta, quando apresentava seu número com pulgas amestradas imaginárias. A comédia, especialmente a radical, como nesse filme de Chaplin, é um gênero da poesia e costuma sofrer da mesma incompreensão.
Rezende se serve de amplo acervo cultural, de dentro e fora do país, do cinema à música, para contar uma viagem às origens da graça perdida no país dominado pela brutalidade televisiva. Para isso, contou com a ajuda essencial do roteirista Leopoldo Serran, que desdobrou o argumento do próprio diretor, e de atores fundamentais como Juca de Oliveira, José Wilker e José Dumont, e coadjuvantes maravilhosos, como José Vasconcelos (no papel dele mesmo, uma referência ao humor que foi para o buraco negro) Paulo César Pereio (não haveria cinema brasileiro sem Pereio), Castrinho (perfeito no personagem Mirandinha), Drica Moraes (o retrato da grande perda), e o jovem casal Tiago Moraes e Regiane Alves. Além de Aramis Trindade, o foco da narrativa, pois seu Bocapura (a pureza oculta) é alta criação cinematográfica pelo ritmo, pela complexidade e pelo acerto do personagem (Aramis foi também consultor de comédia nesta obra).
A viagem parte do sufoco paulistano (onde só é possível vida na mesa entre amigos ou no passeio da madrugada) para a branca areia do Ceará, representação da inocência intocada e necessária. O impulso é dado pela exclusão, a do comediante que teve seus dias de glória e que, ao perder o grande amor e o parceiro, pretende retomar a vida buscando um novo companheiro da sua aventura profissional. É um filme explicitamente terminal, no sentido de que a procura é pontuada pelos vestígios de um país em ruínas, que assomam em sobreviventes (Dummont, absolutamente genial como sempre) ou condenados em busca da esperança (Juca de Oliveira, o ator que sobra em experiência e talento).
A viagem é contaminada pela culpa, já que Juca de Oliveira, o Felício de outrora, não perdoou a traição entre seu ex-amigo e a mulher que tanto amava. Essa culpa convive com a vontade de não morrer, mas o destino (a morte iminente que é fruto de um coração exausto, a perda total da nação sem graça) acaba se impondo. Contar essa história significa recuperar o sentimento provocado por músicas inesquecíveis (Tom Jobim, Brahms, Pepino de Capri), filmes imortais (Fellini, Mario Monicelli, Chaplin, o eterno cinema da Atlântida).
Não é pouca coisa para um filme que passou despercebido e que hoje, apesar de tão recente, dorme nas prateleiras das locadoras expondo seus enigmas. O mistério é como Sergio Rezende consegue colocar na tela o que perdemos para sempre. Seu instrumento não é a saudade, mas a busca arqueológica de um perfil nacional soterrado pela incúria. Descobre o quanto sobrevive o Brasil que nos criou e formou e foi assassinado nas esquinas do tempo.
Gostar do que somos é uma espécie de anátema. Parece que temos vergonha do país. E pior: fica claro, pela postura que os críticos assumiram diante dessa obra (considerado maravilhoso na sua estréia, pelo público no Festival de Miami), que pretendem colocar Rezende numa espécie de gaveta de um gênero único. Ele seria um “especialista” em filmes históricos, como Canudos, Lamarca, Mauá, Zuzu Angel, e não o que realmente é: um artista completo, múltiplo, com pleno domínio do seu ofício.
Quando falarem mal de Sérgio Rezende, podem contar: eu fecho os punhos e parto para a briga. O Brasil leva décadas para gerar um cineasta como ele. Deveria ser mais admirado do que é e festejado por sua absoluta transparência, sua capacidade de criar imagens fiéis ao que precisamos continuar sendo, sob pena de morrermos como nação.
RETORNO - Imagem de hoje: José Dumont e Juca de Oliveira em "Onde anda você?".
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