23 de fevereiro de 2007

A MUDEZ DO CONTRABAIXO




Para quem não entende de música, como eu, o contrabaixo era um enigma. Quando comparecia num show, achava que o sujeito atrás daquele enorme violão gordo virado para o chão, espécie de tio Abelardo de sobrinhos lépidos e sonoros, era apenas um mímico. Cara bizarro, fazia gestos com todo o corpo, como se estivesse seguindo a música, que era gerada, claro, apenas pelos outros instrumentos. Pois para meu ouvido tosco, nada saída daquele troço bojudo que ele segurava com tanta dificuldade.

Foi Luiz Chavez que me fez ouvir o contrabaixo. Ele dava sentido ao Zimbo Trio, forrando com sua base sonora os lances de seus dois companheiros, Amilton Godoy, a erudição popular no piano e Rubens Barsotti, a sofisticação rítmica que embalou nossos mais belos anos. Nascido em 1931, o paraense morreu ontem, como a nação, de falência múltipla dos órgãos. Meu ouvido perde a principal referência de uma cultura musical que se desdobrou, na percepção, em muitas outras. Luiz Chavez me levou para o melhor da música erudita, de Brahms a Beethoven, para o Olimpo, ao qual pertencia.

A Record, que detinha as fitas de O Fino da Bossa, antológico programa de Elis Regina com o Zimbo Trio, deixou que energúmenos gravassem em cima das preciosidades aquelas materiolas diárias, pois faltava fita para o noticiário. Isso eu soube direto na fonte, pois trabalhei na Record por quase um ano, entre 1991 e 1992. Quis resgatar jóias do acervo da emissora e fui informado disso pelo arquivo. Inclusive eu mesmo peguei uma das fitas e vi: uns segundos de O Fino da Bossa, que era interrompido por alguma barbaridade dita informativa. Ou seja, há tempos deixamos de ser o que fomos. Luiz Chaves, com seu contrabaixo, mais audível que toda a constelação sonora que ele acompanhava, foi-se depois de muitas décadas deste funeral em que se transformou o país.

Agora a Record comprou a TV e a rádio Guaíba. A TV foi a pedra sepulcral de Breno Caldas, que ousou desafiar a Globo em plena ditadura com sua televisão em Porto Alegre. A rádio Guaíba sempre foi um modelo de rádio de qualidade e agora cai nas mãos desse império emergente, vindo do nada, das contribuições do desespero e que cresce à sombra das críticas que se faz à líder de audiência. Não gostamos da Globo? Esperem só para ver o que a Record vai aprontar quando estiver no topo. O que teremos na Guaíba na madrugada? Exorcismo?

Tudo isso faz parte do sucateamento do país. A capa da Istoé mostra o Congresso dominado por acusados de todos os tipos, mensaleiros e sujeitos perigosos e folclóricos. A nova sede do Congresso parece que vai custar uma baba. Vice-governador que exerceu a interinidade com a ausência de governadores-candidatos, agora também têm direito a uma polpuda aposentadoria de 22 mil reais por mês. Vinte e dois mil reais! Ganhar isso tudo uma só vez na vida seria já um milagre. Imaginem agora todo mês, até que a morte os separe, o político e a bufunfa.

Dizem que numa cidade aqui perto os mentepcaptos fazem guerrinha de som, com seus automóveis turbinados com caixas super potentes. Estou na parada de ônibus e vejo passar esses tipos. Gurizada metida, sarada e de boca mole. Fazem a boca mole para parecer cool. Tropa de bandidos. Sub-produtos da ditadura que nos governa e nos governará para sempre, até virarmos pó. Ou não? Ou ainda seremos capazes de fazer como o contrabaixo: demonstrar que o essencial, hoje inaudível pela brutalidade, possa um dia emergir a pleno, como um trem-bala irrompendo num túnel.

RETORNO - Cena do programa "O Fino da Bossa", no país da memória assassinada.

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