17 de agosto de 2006

AQUI, ALÉM DO MAR




No coração seco e enterrado, não há motivos para admirar o talento. É uma tragédia, pois as manifestações do talento são o único lugar que podem transcender essa vida de aniquilamento a que se dedicou a humanidade. Erradicar o talento é um ato facilitado por várias causas. Uma delas é a inveja (por que o Outro e não eu?), outra é a incompreensão (de onde vem esse dom?), mas a pior é a vontade de destruir o que pode desmascarar a mediocridade. É por isso que a mediocridade fareja o talento. É uma questão de sobrevivência. Qualquer manifestação da graça poderá acabar com o poder exercido pelos medíocres. O pior é que o talento não tem autodefesa, pois precisa de espaço e liberdade para acontecer. Por isso os gênios caem e só são considerados quando não oferecem mais perigo.

Mas há talentos tão vastos que conseguem em vida se impor, mesmo sofrendo o ataque severo da maldade. É que o esforço para fazer o próprio talento acontecer vem misturado com uma carga de ira justa, o que acaba derrubando paredes. A grande dificuldade não é reconhecer a genialidade, mas não admitir que o talento se espalhe por todo o canto. Cada um tem uma semente da grandeza, mas ela é continuamente assassinada. Ou então se manifesta de maneira precária. Ou é ceifada ainda em vida. Ou não desabrocha totalmente ou então consegue acontecer mas não tinha muito a crescer.

O que é admirável na América é que o talento tem um lugar na sociedade, que vive (ou vivia, antes da era Bush) em função dele. Mesmo talentos meio apagados, como Bobby Darin, o cantor que começou com Splish splash e decidiu-se por canções clássicas mais tarde. Ele conseguiu se superar e vencer, mas morreu cedo, aos 37 anos, como conta Kevin Spacey, que levou 15 anos para concretizar seu sonho de criar Beyond the sea (Uma vida sem limites, 2004), uma cinebiografia fictícia. Kevin é um fenômeno. Ator de primeira, todos sabem que ele não canta ou dança à altura dos ídolos, mas ele canta e dança como grande ator que é e convence. Seu filme não foi bem recebido, deu prejuízo, o que é uma pena, pois é maravilhoso.

Sou suspeito. Não que gostasse de Darin assim do jeito de sua biografia me agradar. Mas o filme me revela uma pessoa completa, trágica, que sofreu e que cantou magníficas canções, a começar pela que dá título ao filme. Sou suspeito porque os musicais americanos me embalaram a vida toda. De Sweet Charity a West Side Story (obras-primas absolutas), e toda a galeria de Fred Astaire a Gene Kelly, fui levado pela mão para o corpo em movimento e as canções inesquecíveis. Kevin tem traços de Bob Fosse na direção e faz um filme todo ele baseado na técnica do distanciamento brechtiano, em que os atores narram seus personagens. Não entendo porque dizem coisas como Kevin está velho para o papel ou que ele não sabe cantar ou dançar. O cara é ator, será que não vão descobrir a natureza do ofício? Inclusive a idade e a performance ajudam no distanciamento: você sabe o tempo todo que é Kevin interpretando Bobby e isso é inteligente demais para os preguiçosos.

Aqui, além do mar, existe um lugar onde o talento se manifesta e onde é possível conviver. Não fosse o talento, estaríamos na idade da pedra. O mau uso da genialidade está deitando tudo a perder. Para resgatar o que se foi, é importante admitir o talento alheio, submeter-se à arte que vem de fora e que só vai te engrandecer. Ame o que se manifesta muito além do horizonte e traga para junto de você a força que despertará os talentos pessoais, escondidos e enterrados exatamente por essa decadência que é tentar derrubar o talento alheio. Veja Kevin Spacey cantando e dançando com Kate Bosworth, que faz o papel da esposa de Darin, Sandra Dee. E cante comigo: Somewhere beyond the sea/ Somewhere waiting for me...

RETORNO - Na foto maior, Kevin e Kate, interpretando Bobby e Sandra (na foto menor).

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