31 de agosto de 2006

REALIDADE ENCANTADA




Este texto inaugura meu período como cronista diário, interino, na coluna do jornalista e escritor Sérgio da Costa Ramos, do Diário Catarinense, que estará de licença por duas semanas.

Nei Duclós

Há várias maneiras de "encantar" a realidade e a maioria delas incomoda o vizinho. Música alta, dosagens de álcool, drogas de diversos tipos: há uma fuga em massa para estados alterados da consciência, para usar uma expressão quase antiga, que pertence a esse passado próximo, que antecedeu a atual exaustão do mundo. Os tipos mais inofensivos de escape dos excessos do noticiário (essa mesmice embalada pelo tom novidadeiro) são os hobbys, mas parece que estes estão em desuso. Não há mais concentração para colecionar figurinhas e quando isso ocorre há uma decepção coletiva que joga os álbuns de volta ao buraco escuro de onde vieram.

Uma das formas mais poderosas de ver a realidade com outros olhos ainda é a busca de informações ocultas e isso nem sempre tem a ver com ocultismo. Garimpar o conhecimento desprezado, o livro jogado fora pelo tempo, o episódio obscuro da história, o enigma de uma paisagem assombrosa que incendeia a imaginação: esse é o caminho que mais frutifica ao optarmos por descolonizar o olhar, para usar uma expressão do antológico fotógrafo Walter Firmo.

É certo que essa atividade pode descambar para situações sem importância, como empilhar curiosidades ou usar o acervo acumulado para se diferenciar nas conversas. Mas o mais gratificante é que a caça de algo que passou despercebido, a nota de rodapé que abre uma porta infinita de possibilidades e especulações, nos ajuda a transcender esse hábito forçado de ter de encarar tudo da mesma maneira, todos os dias. Uma das mais fecundas atividades humanas hoje é peitar esse eterno presente, definido por uma série de forças do obscurantismo, como se ele fosse nosso único destino.

Um tema recorrente no cinema e na literatura é a viagem de volta às origens, quando se tenta resgatar o elo perdido, o deslumbramento da primeira visão do mundo, o ambiente que nos formatou nos primeiros anos. Essa viagem hoje é facilitada pela quantidade gigantesca de informações disponíveis, em que é possível reencontrar pessoas, lugares e reviver situações. Há o perigo de ser uma travessia saudosista, geradora de mais frustração, mas a busca pelas raízes pode transpor o umbral doméstico e encontrar, no Mito ou na História, territórios férteis para nele podermos habitar nosso coração.

Uma das minhas alegrias no longo período em que vivi em São Paulo era visitar os sebos perto das Arcadas, a Faculdade de Direito, no centro da cidade. Livrarias antigas com vários andares de obras perdidas faziam a festa da minha curiosidade. Aos poucos, fui perseguindo aqueles livros de uma só edição que deixaram de ter importância e que estavam à mercê das traças. As preciosidades forneciam a cola onde grudava acontecimentos conhecidos, que na superfície não faziam muito sentido, mas lá no fundo da estante ou da gaveta guardavam a chave de muitos enigmas.

O importante é não se conformar com o que sabemos ou vemos e encarar com ousadia o mistério, sem dar importância para as críticas. Pois sempre haverá quem diga que as coisas não são bem assim como você está percebendo, e que não é "bem por aí". O conceito de "por aí" é vasto e serve para desviar vocações, tirar o fôlego antes da alguma caminhada. Dê de ombros, como se dizia há tempos. Você está prestes a chegar ao deslumbramento.

RETORNO - 1. Algumas confusões de crédito estão pipocando. Minha crônica "O último Duelo" foi assinada por Jaime Ambrosio, por um erro da edição. A crônica de Maicon Tenfen sobre a Marquesa de Santos foi assinada por mim, também erro da edição, já apontado em Errata no último Donna DC. E hoje, na inauguração do meu periodo como interino, a crônica acima não tem meu nome no site do Diario Catarinense, mas isso será corrigido ao longo do dia. Na edição impressa, está correto. Saiu no caderno Variedades de hoje. 2. Imagem de hoje: Cacequi, de Anderson Petroceli.

27 de agosto de 2006

A SOLIDÃO DOS BRAVOS





Graças a José Onofre, consegui localizar meu filme favorito de Kirk Douglas. Trata-se de Lonely are de brave, com roteiro de Dalton Trumbo. É um filme que originou um gênero, um desdobramento do faroeste. É o cowboy que não se entrega à modernidade. Temos exemplo recente de Os Três enterros de Melchiades Estrada, dirigido e estrelado por Tommy Lee Jones e com roteiro de Guillermo Arriaga, o mesmo de 21 Gramas e Amores Perros. O cowboy vai para o México enterrar o amigo, conforme prometeu. Nos dois filmes, Jones e Douglas enfrentam a perseguição da moderna polícia, armada até de helicópteros.

Não conseguia localizar o filme, mas com a informação valiosa de José Onofre, de que o xerife que perseguia Douglas era interpetado por Walter Matthau, cheguei lá. É um filme inesquecível. A bravura, a solidão, a determinação. O ritmo, a grandeza, a direção coompetente, o roteiro esplêndido. Queremos filmes assim. Queremos nos sentir corajosos para enfrentar tanta barra.

Queremos ficar longe de outro tipo de filme. Uma flor de manipulação é Memórias de uma gueixa, lançado no início do ano no Brasil. Atrizes chinesas (entre elas a exuberante Gong Li, que aqui é destruída pela péssima direção) fazem o papel das gueixas japonesas, maquiagem equivocada e o pior: o caso de amor entre a gueixa e seu príncipe encantado só acontece depois que o coronel americano desfruta da pobre asiática. Os americanos não se enxergam.

No filme Olga, há qualidades. Jayme Monjardim é um diretor eficiente, sensível e especialista em relações amorosas. Sabe filmar gente se amando como ninguém. A seqüência da aproximação entre Prestes (Caco Ciocler, excelente) e Olga (Camila Morgado) é antológica. Mas em cenas de batalha ou bastidores da política, todo o cinema brasileiro está muito abaixo do que se consegue no cinema americano. Falta dinheiro e gente especializada. Por que não trazem os gringos? Para isso precisa trazer os americanos, e não para todas as outras coisas. Há rigor mortis nos diálogos políticos. Não há vida, como vemos nos filmes de outros países. Talvez porque não levemos a sério a política.

Olga é um filme que não leva a política a sério. Quem vence é o amor entre duas pessoas e seu fruto, a filha Anita, mais a mãe, Leocádia (com uma perfeita Fernanda Montenegro). E não o carisma de um líder, um processo histórico conturbado, uma luta entre ideologias. Outro equívoco é achar que Olga era idealista. Olga era marxista, anti-Hegel, portanto, racional, pragmática, objetiva. Ficam vazios seus discursos apopléticos pelo mundo melhor. Ela lutava para que a sociedade humana cumprisse seu destino, segundo a ótica teleológica marxista, ajudando a desencadear as forças sociais que fariam a revolução. Qualquer manual marxista explica isso, mas um filme é feito de versões, jamais de História.

Essa foi a intenção do filme, a de romancear, mas não se pode passar por cima de algumas coisas básicas. Apesar da vasta bibliografia sobre o tema, a cultura de massa pouco ou nada entende de marxismo. A exceção é Gillo Pontecorvo, em Queimada, que é uma aula de materialismo dialético.

A pior parte do filme é, claro, sobre Getúlio Vargas. Osmar Prado está ridículo no papel de um falso Getúlio.O sotaque gaúcho exagerado e forçado serve apenas para reafirmar preconceitos. O de que Getúlio tenha vibrado com o desterro de Olga para a Alemanha. Ou que Getúlio tivesse dado ordem direta para tanta tortura e crueldade. A prisão e a tortura dos insurrectos estava a cargo de Felinto Müller, que tinha contas a acertar com Prestes (assim como o atentado da rua Toneleros foi obra exclusiva de Gregório Fortunato e Bejo Vargas; só Lula pode não saber o que fazem ao seu redor; Getúlio não). A frase de que a heroína era um presente de Vargas para Hitler é de uma perversidade sem fim. Faz parte da campanha de calúnias contra o grande presidente e isso é tão poderoso que às vezes até o diretor ou o roteirista nem se dão conta da profundidade dessa infâmia. Apenas reproduzem o que é aceito normalmente. Trata-se de uma avalanche, que tem raiz na política e ganhou força na universidade e agora na cultura.

Em 1936, o Brasil tinha relações normais com a Alemanha, assim como todo o mundo. Não havia guerra contra o nazismo. Getúlio cumpriu acordos internacionais. O regime de Vargas não matou nem Olga nem Prestes, que saiu da cadeia dez anos depois. Assim como não matou outros presos ilustres, como Graciliano Ramos ou Monteiro Lobato. Já Vladimir Herzog, o filho da Zuzu Angel, o deputado Rubens Paiva e tantos outros...1964 deu um jeito.

No filme de Monjardim, o heroísmo de Olga está bem trabalhado, com uma Camila Morgado esforçada na sua performance sofrida. Essa coragem que deita raízes e serve de exemplo, mesmo que suas histórias, às vezes, estejam cercadas de interesses que extrapolam a produção cinematográfica.

24 de agosto de 2006

O QUE DIZ A CARTA TESTAMENTO





O mais asqueroso da atual ditadura, é que possibilita aos candidatos mentirem sobre suas convicções. O nome de Getúlio, por exemplo, anda na boca de quase todos. Até o Cristóvão Buarque, que sempre foi petista e de repente volteou-se para o PDT, diz que a carta testamento de Getúlio é uma bússola. Onde estava ele quando caluniavam o grande presidente? Exatamente no miolo do fruto maior dessa calúnia, o PT, que foi inventado para se apropriar da herança getulista. Para isso contou, o PT, com a ajuda da ditadura, que deixou para o trabalhismo apenas migalhas, lhe roubando a sigla histórica e arruinando-o na mais perversa e longa campanha de difamação da História do Brasil. Mas como hoje é 24 de agosto, data do suicídio de Vargas, vamos comentar um pouco a Carta testamento. O texto é perfeito, é uma aula de como deve ser um texto.

"Mais uma vez, a forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes".

O que diz Getúlio? Que era apenas um álibi todo o circo sobre o assassinato do Major Vaz (que segundo a principal testemunha, num depoimento para o Fantástico, foi de autoria do próprio Lacerda, que ao dar-se conta da besteira, deu um tiro no pé para livrar a cara). Não importava Vaz, Fortunato, Bejo. O que importava era atingir o presidente. E foi o que fizeram. Foi nesse episódio que a direita conseguiu convencer parte das Forças Armadas, que ficaram indignadas com o atentado contra Vaz, segurança de Lacerda na época.

"Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo".

Em cinco frases, Getulio resume a vitoriosa revolução de 1930, as leis do trabalho como antídoto à espoliação internacional, o golpe de 1945 que o tirou do poder e a eleição em 1950 pelo voto direto. São vinte anos de História, sob a ótica de seu principal protagonista, num só parágrafo. Para quem diz nada saber sobre esses acontecimentos, deveria seguir esse roteiro para aprender alguma coisa sobre o Brasil Soberano, o país inventado por Getúlio e destruído pela ditadura de 1964, que nada mais é do que a restauração da República Velha, o regime que foi derrotado em 30.

"A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre".

A criação das estatais como patrimônio do povo, que foi totalmente corrompido pela ditadura para depois ser entregue à sanha internacional pelo traidor FHC, aqui é colocada como fator de libertação. Ou seja, nada da imagem que foi formatada a partir de 64, de sistemas inchados e cabides de empregos. O mais terrível é que a Petrobrás, por exemplo, foi vendida em sua maior parte para o estrangeiro e todos fingem que ainda é a Petrobrás da origem, brasileira, nacional, soberana. A geração de energia, nicho estratégico, também acabou sendo partilhada pelos grandes grupos.

"Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder".

Ceder? Mas Getúlio não era o ditador infame que todos acusam? Como poderia ceder? Ah, se cedeu então é porque era falso, populista. É o que dizem dele. Não lembram que Getúlio trabalhava com as forças democráticas e quando interveio foi para se contrapor à extrema direita, como foi o caso do Estado Novo, que impediu que o Brasil se aliasse ao nazi-fascismo. Mas isso não dizem dele. Só vêem o pior. Uma coisa importante desse parágrafo é que a inflação destruía os valores do trabalho. Era uma pressão originada pelo status de colônia financeira e econômica do Brasil, situação que no final se consolidou a partir da troupe que assumiu as Finanças da ditadura, Bob Fields et caterva.

"Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida".

Getúlio unge o mito que o sucederá, por meio do sacrifício pessoal, o que o remete ao heroísmo clássico. Não estava brincando. Cumpriu a palavra.

"scolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão".

Esta é uma oração cívica do mais alto nível. Precisa ser dita em voz alta para entendermos toda a sua força e permanência. O mito é indestrutível. Servirá para se contrapor às armadilhas ideológicas da História, que, pelo menos no Brasil, é fonte de falsos mitos.

"Aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História".

Essa última frase é sem dúvida a mais célebre frase da história brasileira. Getulio saiu da vida vitorioso, consolidou o mito que sobreviveria a ele e enfrentou a morte com serenidade, sem medo. Ódio, infâmias e calúnias, que continuam até hoje, não abatem sua presença, cada vez mais requisitada, especialmente pelos seus inimigos, que jogam assim a última carta para tentar readquirir a confiança do povo.

Mas não conseguem nada. Conseguiram destruir o país. Bando de abutres. Levaram o país embora e nos deixaram as ruínas. Mas temos esta carta. Temos Getúlio. Viva o presidente Getúlio Vargas. Longa vida à sua herança. E que seja eliminada da boca dos chacais.

21 de agosto de 2006

BAINHAS, GOLAS E PUNHOS





Sentados no fundo do ônibus, olhando para a nuca dos passageiros, tem gente que consegue descobrir quem tem mulher e quem não tem. Quem tem mulher está com o colarinho certo. Não que esteja passado a ferro ou qualquer outra coisa. Mas não está enrolado, nem "comido" para dentro do pulôver. Mulher presta atenção nesse detalhe, não por ser dona de casa ou esposa dileta. Mas porque ela sabe o perigo que existe numa gola ou num colarinho sem essa pequena arte final. Vai chamar atenção das outras, que dirão: está para dentro, ou torto, deixa eu arrumar. Mais uma advertência: não que seu homem seja lá grande coisa, mas não é possível deixar de banda um sinal tão evidente de falta de mulher. Desmoraliza o gênero, ou parte dele.


Quando vestimos roupa nova, sempre tem um boi corneta para notar um defeito. Chegará perto e tocará no minúsculo espaço onde há algum fio solto, um pingo de alguma coisa. Pode ser homem ou mulher. Espírito de porco não faz diferença. Lembro das golas engomadas, para os bailes de gala, de Ano Novo ou debut, em que uma gravata borboleta era escoltada por duas pontas de lança, brancas como a geada que brotava quando a festa chegava ao fim. Mas a gola tinha uma parceria com os punhos, tão duros e alvos como elas. O máximo eram as abotoaduras douradas, que enfeitavam os pulsos no momento em que cumprimentávamos alguém ou tomávamos nossa primeira vodka.

Até hoje, bainha é um transtorno. Compra-se a calça certa e a bainha só ficará pronta no próximo inverno. A atendente solícita deixa cair sua cara no momento em que perguntamos se fazem bainha para hoje, ou seja, se o serviço vem acoplado com o produto, como diz qualquer manual de bom atendimento. Mas não. Ainda não resolveram problema tão básico. Fazem calças que sobram perna abaixo, ultrapassam a sola dos pés e se esparramam nos pisos lustrados das lojas. Depois que deixamos passar o longo intervalo entre a compra e a falta do produto, quando enfim a bainha está pronta, vamos então estrear a calça nova. Estamos tão fissurados que levamos a peça para casa e lá descobrimos que a bainha cobre o sapato e avança pelo taco. A calça então será comida bem naquela parte que denuncia seu uso prolongado. Às vezes a calça é nova e já está puída nessa linha que separa a vestimenta do chão.

Não existem mais golas ou punhos engomados e, acredito, nem tantas bainhas que sejam devoradas pelo passo desatento de maus compradores. Mas essas coisas me perseguem, como se o resto do vestuário não existisse. Por muito tempo deixei de usar fibra sintética, mas ultimamente me rendi à microfibra, que não precisa passar. Colocamos para secar e ela está intacta. As de algodão são renitentes e precisam de mão-de-obra especializada para ficarem usáveis. Mas no inverno nem precisa. Uma boa cobertura de lã sintética e um casaco escondem a camisa engruvinhada por baixo. O problema é que a gola fica de fora, a mostrar o quanto somos incapazes. Muitas vezes até a mulher cansa e nem dá mais bola. Então tá, vai assim. E lá vamos nós, freak brothers inauditos, a cachoalhar nossa eterna adolescência.

É que não pertencemos a esse mundo. Não damos bola para roupa e nem enxergamos moda que a outra pessoa veste. Sentimos a diferença brutal quando a roupa é nova, é verdade. É quando nos olham de alto a baixo com admiração. Se estivermos aos trapos, nem nos enxergam. Querem distância. O problema é quando chegamos no balcão com nossos usos e costumes, aos frangalhos, prontos para mudar de guarda-roupa, quando é preciso quebrar o gelo, convencer o cara ou a mulher que ficam ali esperando os clientes certos, de que somos esses uns, já que o dinheiro é o mesmo.

Não somos. Mal vestidos, não temos condições de comprar. Se comprar, compraremos errado. Ficaremos com a gola virada, a bainha comida. Por isso fique muito atento quando estrear roupa nova num evento. Vão achar mil defeitos nela, pois estão acostumados contigo, com teu desleixo e pouco caso. Vão querer lembrar a todos que não és o que parece , que em poucos meses aquele pequeno ponto errático, aquele defeito tão vistoso em dia de brilhareco, se transformará em tudo que estás vestindo agora.

Talvez a roupa nova e bonita, quando bem escolhida, ajude a revelar o que sonhamos ser. Mesmo que a maior parte do tempo fiquemos entregues à delícia de não passar uma camisa para sair, não desvirar a gola, livres de punhos engomados. Soltos, freak brothers impolutos, a assobiar aquela velha canção de Cat Stevens. Cante conosco: Morning has broken, like the first morning/ Blackbird has spoken, like the first bird/ Praise for the singing, praise for the morning/ Praise for the springing fresh from the world.

RETORNO - Esses discos de Cat Stevens! Em mil anos, não serão gravados outros iguais a esses. Cante, cante.

20 de agosto de 2006

MULAS PARA NOVA YORK





Cheguei a sugerir para uma grande rede de televisão criar um programa diário chamado Sundance Festival. Com mais de duas décadas, o evento inventado por Robert Redford revelou centenas de talentos e obras. Imagino que sejam filmes muito mais fáceis de pagar do que o festival de pontapés com que nos brindam em horário nobre (deve ser a mente dos responsáveis, essa de apostar no coice o que deveria ser manifestação do espírito). Como não me emendo, ainda escrevi para a organização do festival para que olhasse para o Brasil e pensasse em aportar por aqui, na TV aberta, alguns de seus assombrosos filmes, o que fatalmente redundaria em bons negócios. A resposta das duas investidas foi, claro, rosca vírgula rosca. Nunca sei o que é preciso fazer para implantar uma idéia dessas. Talvez ir a algum restaurante fino com a mala cheia de dólares e fazer pose de mafioso. Não entendo como as pessoas do ramo não conseguem bolar idéia tão simples.

A Band, por exemplo, se no lugar de ficar meses (que parecem décadas) mostrando o horrível Mandacaru, fizesse uma sessão diária, aí pelas dez da noite, com o Sundance Festival, arrasaria do Ibope. Ou mesmo o SBT, que perde tempo difundindo asneiras cinematográficas de gente se batendo sem parar. Imaginem um filme como Maria cheia de Graça(2004), do estreante Joshua Marston, californiano que começou como jornalista da Life em Paris, trabalhou como professor de inglês em Praga e se graduou em Chicago em ciências políticas, onde conseguiu o mestrado antes de formar-se como diretor de cinema na Universidade de Nova York.

No seu depoimento, incluído no dvd enquanto repassava o filme, Joshua explica como conseguiu realizar seu projeto, que levou cinco anos, e foi concluído graças ao apoio da HBO. O filme é uma porrada. Vejam o que diz a sinopse: "Aos 17 anos, Maria (Catalina Sandino Moreno) vive numa pequena localidade ao norte de Bogotá, na Colômbia. Ela e sua amiga Blanca (Yenny Paola Vega) trabalham em uma grande plantação de rosas, retirando espinhos e amarrando as flores, tarefa entediante que obedece a regras rígidas. As únicas diversões de Maria são o namoro com Juan (Wilson Guerrero) e as festas na praça do lugarejo. Certo dia, pouco depois de descobrir que está grávida, ela se envolve numa discussão e é demitida. Decidida a melhorar de vida e tentar a sorte na cidade grande, a jovem aceita a oferta de um conhecido: transportar heroína para Nova York em seu próprio estômago".

Catalina foi indicada ao Oscar de melhor atriz, ganhou o Urso de Prata no festival de Berlim e o filme ganhou vários prêmios. É uma obra tensa, desesperada, absolutamente realista, que denuncia o tráfico do ponto de vista dos colombianos, vítimas e protagonistas de uma indústria poderosa global. Nunca ninguém filmou Nova York como Joshua. É completamente o oposto do que faz Hollywood, que tenta encher o lixo de glamour. Nosso olhar está colonizado pelo cinemão, tanto que nem conseguimos enxergar direito quando o próprio cinemão faz alguma coisa boa. Achamos que tudo é uma porcaria, quando não é. Mas o melhor do cinema está na produção independente. Numa locadora, o filme de Joshua concorre com as besteiradas. Ou seja, a tecnologia abriu um flanco poderoso na rede de distribuição e por isso o cinema deu um salto neste século. É um novo cinema, que nos deslumbra pela força, pelo detalhe, pelos talentos, pelas denúncias, pelas experiências. Tudo está sendo filmado, em qualquer parte do mundo. Precisamos ter olhos para ver e mente para enxergar.

Uma das vantagens de ver filme em dvd é escapar do desfile de nulidades que é o programa eleitoral. Sabemos quem são e o que fazem. Notamos pelas suas caras, roupas, pela propaganda, pelos carros de luxo em disparada pela cidade agitando bandeiras com números, já que os partidos estão queimados. Vote no número tal, e não no partido que está no noticiário policial. A ditadura mostrou a cara na atual fase do campeonato. São todos suspeitos.

RETORNO - Imagem de hoje: Catalina é revistada no aeroporto JFK.

19 de agosto de 2006

O CINEMA COMO ENCANTAMENTO





Cinema dá trabalho. É uma arte que convoca todos os ofícios e precisa das pessoas certas no lugar certo. No filme A encantadora de baleias (2003), temos exemplo de sobra dessa tarefa complicada. Começa pelo escritor que bolou a história, Witi Ihimaera. Ele estava no 33º andar de um edifício em Nova York quando ouviu um helicóptero. Olhou para baixo e viu uma baleia no rio Hudson. Isso carregou seus arquivos da infância e desse insight surgiu o filme. É um profundo trabalho de elaboração, que gerou uma fábula moderna e encantou a cineasta Niki Caro. Para escolher a atriz principal, Keisha Castle-Hughes (no papel da herdeira do mito fundador da sua aldeia, Paikea "Pai" Apirana), foi preciso testar milhares de adolescentes. Para complicar, Keisha (que foi indicada ao Oscar de melhor atriz) mentiu que sabia nadar. Na hora H, foi preciso usar uma dublê.

Tem mais. Como conseguir fazer a cena das baleias encalhadas? Basta pensar em algum alemão. Tudo o que precisa fazer e é complicado, pense nos alemães. Foi o que fizeram. Uma empresa de efeitos especiais da Alemanha construiu as baleias. E como escolher as baleias de verdade para as cenas do fundo do mar? Muita pesquisa até chegar ao ponto. Certo, agora a música. Lisa Gerrard compôs, dizem, a mais triste melodia do mundo, a partir do canto real das baleias. Ela foi fisgada pelo trabalho, pela tarefa árdua e gratificante que tinha pela frente. E, por cima de tudo, o orçamento, escasso. Era preciso fazer da forma mais econômica possível, sem comprometer a qualidade. Tudo isso desaguou num filme encantador, que passa por cima do conceito de clichê, pois consegue transcender a visão ideológica estreita, em que caíram alguns resenhistas.

CURSO - Os críticos de cinema se acham muito espertos. Estão sempre dando aulas de cinema e nem aproveitam o mais completo curso de cinema hoje existente: os extras, os making off, os depoimentos que acompanham a obra nos dvds. Os resenhistas ainda estão no tempo da pose intelectual diante da produção audiovisual, como se vivessem na época em que você ia ao cinema e se retirava para a máquina de escrever. Isso não é mais possível. Você precisa escutar o que dizem do filme, não apenas assisti-lo. Assim poderá ter parâmetros mais precisos para sua análise. Um dos crimes que se cometem é não deixar-se arrebatar. Encantar-se com o cinema parece ser pecado. Tudo tem a marca da maldade. Por quê?

APRENDIZ - Pois eu gostei do filme. Não é dos meus favoritos, mas respeito o trabalho insano de tanta gente e o resultado maravilhoso que conseguiram. A história lembra a sacada de Don Juan quando encontrou Castaneda. O velho bruxo achou estranho que todos os sinais do aprendiz se depositavam naquele cara vindo de Los Angeles (na verdade, vinha do Brasil). Por que não um aprendiz dali mesmo, do México? Pois Don Juan não deu bola e iniciou Castaneda nos segredos supremos. No filme, o velho não se dá conta que a herdeira está debaixo do seu nariz e que ele precisa entregar-se às evidências. Teima até o fim e quase mata a menina.

É o tema do obscurantismo. Você não reconhece o talento ou o destino alheio, portanto não sabe nada, está no meio da treva. O desprendimento da garota, seu amor pelo avô e sua certeza da linhagem a qual pertencia salvam a história. Pode ser confundido como algo politicamente correto e obsoleto. Para que raízes numa época tão global? Para que rostos se somos números? Para que preparar o corpo para a luta na época do arsenal nuclear? É só lembrar Einstein. Não sei como será a terceira guerra mundial, disse ele. Mas a quarta será a machado. Grande Einstein.

FÉ - A tribo Maori, que vive no leste da Nova Zelândia, acredita ser descendente de Paikea, o domador de baleias: eis um assunto magnífico para um livro e um filme, que tem aquele poder de encantamento raro e merece nossa admiração e nossa fé.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Keisha Castle-Hughes como a Encantadora de Baleias. para ela, nadar não era importante e sim atuar. 2. Urariano Mota nos fala sobre aqueles jogos de futebol do Recife da infância e adolescência no espaço Literário do Comunique-se. Uma de suas melhores crônicas. 3. Vi o copião do filme "As cartas do domador", de Tabajara Ruas. Um trabalho impressionante, fruto de muito suor e muito talento. 4. Uma crônica primorosa sobre a biblioteca do avô, de Ida Duclós em seu blog.

18 de agosto de 2006

DUELO DO OLHAR EM STALINGRADO




O duelo em Enemy at the Gates (Círculo de fogo, 2001), de Jean-Jacques Annaud, é entre dois olhares, duas percepções: a do atirador que vira herói em plena batalha de Stalingrado (Jude Law, perfeito), e o major alemão, professor de tiro e aristocrata, que veio para caçá-lo (Ed Harris, soberbo). Como mostra o filme no início, quando o menino dos Urais é treinado pelo avô para caçar lobos, o importante é atrair a presa e não ir atrás dela. Aguardar o momento certo, quando o inimigo se descobre, revela sua posição. Esse é o momento do tiro.

Melhor filme de guerra deste século, a obra de Annaud (O nome da Rosa) se fundamenta na alternância entre dois enquadramentos: o Close, que é entre dois adversários, peritos no ofício de matar à distância; e o Plano Geral, em que as batalhas são mostradas em movimento (quando aviões metralham barcaças, soldados apavorados avançam sobre as ruínas) ou em forma de pintura, inspirada na cena monumental de E O Vento Levou, quando a câmara se afasta e mostra Scarlett O´Hara no miolo do horror, entre centenas de mortos e feridos.

Annaud faz o movimento inverso: parte do plural para o singular. A cena nasce no mural de sangue e mergulha na cena íntima, onde conta a compaixão, o pânico, o desprendimento, a tesão, a esperança. Ele se aproxima do humano diante da morte, escudado por esplêndidos atores: Jude Law, como o atirador soviético Vasily Zaitsev; Bob Hoskins, como Kruschev, Joseph Fiennes, como o propagandista (diriamos hoje marketing) Danilov; Rachel Weisz, como a voluntária Tania Chernova; e o garoto Gabriel Thomson como Sasha.

Ed Harris, ao chegar ao set de filmagem, garantiu que aquele seria um bom filme: seus olhos azuis profundos, que deslumbram a câmara ao captar a frieza e a objetividade do caçador, fizeram os produtores respirar aliviados. O filme estava salvo, o recado (o duelo do olhar) poderia ser dado. Ed Harris não joga papel fora, faz tudo de maneira intensa. Está entre os maiores atores contemporâneos. No outro lado, está Jude Law, que já mostrara sua força em O Talentoso Ripley. E Rachel Weisz, magnífica, faz da mulher em combate um símbolo e uma advertência: já passou da hora de mostrar mais mulheres em campo de batalha, atirando e não chorando. Lutaram a vida toda, o tempo todo. A História apenas confirma. Basta o cinema ir atrás.

Diretor francês, personagens principais interpretados por atores britânicos, filmagens na Alemanha: eis um super-espetáculo que foge do enquadramento americano e nos brinda com o heroísmo russo na cidade que não poderia ser tomada, sob pena de decidir a guerra a favor dos nazistas. É sabido que os russos decidiram a paradae que os americanos mentem deslavadamente quando abordam esse assunto. Se mentem até sobre o Vietnam, que aconteceu nas nossas fuças, quando vimos os gringos se atirando nos helicópteros para fugir, imaginem o que não fazem com coisas acontecidas há décadas, ou mesmo...ontem.

A participação do Brasil Soberano na luta é uma página de heroísmo ainda não enfocada pelo cinema. Mas vem aí um trabalho que já está no ponto para ser filmado. Aguardem.

RETORNO - Na foto maior, o atirador soviético, interpretado por Jude Law, no momento crucial do filme, quando está diante do seu principal inimigo. Na foto menor, o inimigo nazista, interpretado por Ed Harris.

17 de agosto de 2006

AQUI, ALÉM DO MAR




No coração seco e enterrado, não há motivos para admirar o talento. É uma tragédia, pois as manifestações do talento são o único lugar que podem transcender essa vida de aniquilamento a que se dedicou a humanidade. Erradicar o talento é um ato facilitado por várias causas. Uma delas é a inveja (por que o Outro e não eu?), outra é a incompreensão (de onde vem esse dom?), mas a pior é a vontade de destruir o que pode desmascarar a mediocridade. É por isso que a mediocridade fareja o talento. É uma questão de sobrevivência. Qualquer manifestação da graça poderá acabar com o poder exercido pelos medíocres. O pior é que o talento não tem autodefesa, pois precisa de espaço e liberdade para acontecer. Por isso os gênios caem e só são considerados quando não oferecem mais perigo.

Mas há talentos tão vastos que conseguem em vida se impor, mesmo sofrendo o ataque severo da maldade. É que o esforço para fazer o próprio talento acontecer vem misturado com uma carga de ira justa, o que acaba derrubando paredes. A grande dificuldade não é reconhecer a genialidade, mas não admitir que o talento se espalhe por todo o canto. Cada um tem uma semente da grandeza, mas ela é continuamente assassinada. Ou então se manifesta de maneira precária. Ou é ceifada ainda em vida. Ou não desabrocha totalmente ou então consegue acontecer mas não tinha muito a crescer.

O que é admirável na América é que o talento tem um lugar na sociedade, que vive (ou vivia, antes da era Bush) em função dele. Mesmo talentos meio apagados, como Bobby Darin, o cantor que começou com Splish splash e decidiu-se por canções clássicas mais tarde. Ele conseguiu se superar e vencer, mas morreu cedo, aos 37 anos, como conta Kevin Spacey, que levou 15 anos para concretizar seu sonho de criar Beyond the sea (Uma vida sem limites, 2004), uma cinebiografia fictícia. Kevin é um fenômeno. Ator de primeira, todos sabem que ele não canta ou dança à altura dos ídolos, mas ele canta e dança como grande ator que é e convence. Seu filme não foi bem recebido, deu prejuízo, o que é uma pena, pois é maravilhoso.

Sou suspeito. Não que gostasse de Darin assim do jeito de sua biografia me agradar. Mas o filme me revela uma pessoa completa, trágica, que sofreu e que cantou magníficas canções, a começar pela que dá título ao filme. Sou suspeito porque os musicais americanos me embalaram a vida toda. De Sweet Charity a West Side Story (obras-primas absolutas), e toda a galeria de Fred Astaire a Gene Kelly, fui levado pela mão para o corpo em movimento e as canções inesquecíveis. Kevin tem traços de Bob Fosse na direção e faz um filme todo ele baseado na técnica do distanciamento brechtiano, em que os atores narram seus personagens. Não entendo porque dizem coisas como Kevin está velho para o papel ou que ele não sabe cantar ou dançar. O cara é ator, será que não vão descobrir a natureza do ofício? Inclusive a idade e a performance ajudam no distanciamento: você sabe o tempo todo que é Kevin interpretando Bobby e isso é inteligente demais para os preguiçosos.

Aqui, além do mar, existe um lugar onde o talento se manifesta e onde é possível conviver. Não fosse o talento, estaríamos na idade da pedra. O mau uso da genialidade está deitando tudo a perder. Para resgatar o que se foi, é importante admitir o talento alheio, submeter-se à arte que vem de fora e que só vai te engrandecer. Ame o que se manifesta muito além do horizonte e traga para junto de você a força que despertará os talentos pessoais, escondidos e enterrados exatamente por essa decadência que é tentar derrubar o talento alheio. Veja Kevin Spacey cantando e dançando com Kate Bosworth, que faz o papel da esposa de Darin, Sandra Dee. E cante comigo: Somewhere beyond the sea/ Somewhere waiting for me...

RETORNO - Na foto maior, Kevin e Kate, interpretando Bobby e Sandra (na foto menor).

16 de agosto de 2006

O SONHO É VERMELHO





Vermelho é conflito, cor de sangue, e representa a ruptura com a realidade imposta e construída. Tanto no entusiasmo dos colorados, com a rubra vontade de vitórias na atual fase do campeonato, quanto nas bandeiras que foram alçadas nas revoluções, existe a mística de um sonho possível, que confronta o consenso.

No filme Adeus, Lênin (2004), a Alemanha Oriental desconstruída é recosturada por um filho fiel, que não quer ver a mãe sofrer com as mudanças ocorridas durante seu longo coma de oito meses. Filme de equilíbrio perfeito entre a ilusão e a avalanche das transformações, trata-se de uma ironia: o que era para ser mudança vira passado e o que era considerado ultrapassado e decadente arromba o muro com um movimento popular irreversível.

O diretor Wolfganger Becker, criado na parte ocidental da Alemanha, inverte o processo histórico para dar uma chance ao que se foi. É tocante esse drama carregado de comédia, que tem atores magníficos como o jovem veterano Daniel Brühl e a star revelada pelo regime deposto Katrin Sab.

Lênin ensinou como se faz: basta denominar a revolução democrática de revolução burguesa e dar um golpe de estado para implantar uma ditadura. Chamaram isso de socialismo, mas nada tem a ver. É ditadura mesmo, desmascarada pelo Tempo. Levou de roldão o sonho vermelho e hoje estamos na mesma, ou pior, do que antes de 1917. Tomar conta do aparelho do estado, coisa que foi feita no Brasil desde 1964, com radicalização nos últimos anos, é significativa de um golpe.

O filme apresenta duas versões da mentira: a que é mostrada para a mãe em estado terminal, e a situação familiar, em que um pai ausente no fundo é inocente do crime de ter abandonado a família. Apresenta também duas versões da verdade: a que existe nas ruas, nos prédios e nas pessoas, e a proposta de um socialismo para valer (aquele que está dentro da protagonista, que abraçou a causa sem saber que era mal vista até pelos seus pares). Neste caso, o socialismo é a infância da humanidade, identificada com o voluntarismo (fingido) dos escoteiros, e sua velhice, incorporada pelos militantes vetaranos que viram suas vidas escoarem pelo ralo.

Como este é um jornal movimentado, vamos a mais um poema inédito.

FLERTE

Nei Duclós

Sei que não mereço
mas ao te olhar
emagreço

Imagino o teu desprezo
mas nada pesa
o desejo

O coração ainda é o mesmo
Flutua quando estás
perto

Se me perguntas por quê
em vez de correr
escrevo

É para não mais te perder
minha quarta folha
de trevo

RETORNO - 1. Meu ensaio "O Poeta absoluto", sobre "A Imitação do Amanhecer", de Bruno Tolentino, está publicado com destaque na revista Cronopios, editada por Edson Cruz. 2. A imagem é da impressionante cena em que a mulher em estado terminal (Katrin Sab) se depara com a estátua de Lenin sendo removida por um helicóptero.

15 de agosto de 2006

CAIAM FORA





Enquanto a Caixa Econômica Federal, em vez de contribuir para a construção de uma ferrovia, por exemplo (ou mesmo uma rede de esgoto, por pequena que seja), ajudava nesta segunda-feira a sustentar o Steve Segal na Tela Quente da Globo, patrocinando uma obra que continha essa grande contribuição chinesa à cultura, que é o filme baseado nos pontapés, a Band difundia a arenga dos candidatos à presidência. Foram dois programas afins, em que a brutalidade bem remunerada assaltava a percepção pública em horário nobre. Para quê? Para provar que não somos uma nação. Heloisa Helena disse textualmente: "O MEU Banco Central vai ser autônomo, independente". Se for autônomo, como poderá ser dela?

Escooola, escooola, dizia Cristóvão Buarque, como se educação, sem políticas públicas que nos tirem do atoleiro, fosse resolver nossa falta de soberania. Um dos jornalistas da Band, notoriamente de direita, acusou o movimento dos sem terra de colocar fogo no campo. Certamente ele prefere a paz dos cemitérios, pré-MST, quando se matava a rodo e ninguém ficava sabendo. Agora é recíproco: tanto o latifúndio quanto o movimento emergente fazem parte desse complô contra a paz verdadeira. Tudo isso por falta do óbvio, daquilo que não foi enfocado de maneira séria no debate: livrar-se da pirataria financeira internacional e carrear os recursos para a nação exausta. Mas isso eles não vão fazer. Simples: porque os políticos que disputam a presidência, incluindo o presidente, não têm a mínima importância.

O poder está em outras mãos e sabemos quais. Quando vemos os juros escorchantes, os lucros exorbitantes dos bancos, a corrupção desenfreada (sim, pois toda essa tunga precisa da corrupção para existir) sabemos onde o galo canta e não é na urna.Uma coisa que chama a atenção são os gestos, principalmente os da boca. Eymael apertava a mão direita deixando o polegar um pouco para frente enquanto torcia a boca fazendo aquela cara que provoca engulhos: "Esse é meu compromisso", dizia, contundente. Heloisa Helena afinava ainda mais os lábios para demonstrar determinação. Num tom que parecia histérico, dizia que iria assentar um milhão de famílias a cada ano do SEU governo. Macaco Simão está certo: e se ela ganhar?

HH é o Lula que disse o que disse até se eleger e fazer tudo o contrário. Ele sabia que não poderia fazer nada do que prometia. Os políticos não fazem nada, a não ser disputar o butim, as sobras do que entregamos de mão beijada para os gringos. Vemos a inconsistência dos candidatos quando notamos os movimentos estudados da boca de Alckmin no momento em que, digamos, se expressa. Parece aquele movimento plantado pela computação gráfica nos lábios dos bebês ou dos bichinhos de estimação. Com isso ele quer dizer que é elegante, fino, prudente. Mas é apenas falso.

Meu texto O Falso Cinema de Autor parece que está incomodando. Tirei o brinquedo favorito dos pseudo, os que acham de Niro um grande ator, o Tarantino a coisinha de Jesus do papai e assim por diante. Não se conformam com opiniões contrárias. Querem o consenso. Mal sabem que apenas reproduzem o que se diz no marketing, que essas coisas que clonam a autoria cinematográfica são inventadas, enquanto os talentosos ficam à sombra. Eles agem em todas as frentes: não basta desviar os recursos das nações para os piratas, é preciso justificar, provar que cultura é um monte de gente se matando e se dando pontapés.

Pois o recado é simples, para todos os políticos e os adeptos do consenso forjado: caiam fora, nos deixem respirar. Precisamos sobreviver, acreditar que essa vida é um pouco mais do que ficar à mercê de tanta baixaria. Queremos arte, queremos pão. Queremos habitar nosso destino. Quero pegar um trem de Florianópolis a São Luís. Quero cruzar o pampa com um trem moderno. O pampa é plano, o que há? No século 19, os engenheiros brasileiros, como mostra Ida Duclós no seu blog, fizeram o que os estrangeiros diziam ser impossível: construíram a estrada de ferro Paranaguá, cruzando a serra maciça. Nossa modernidade, quem diria, foi no século 19!

RETORNO - Imagem de hoje: uma foto no centro de São Paulo, por Marcelo Min (que me enviou convite de casamento marcado para o despertar da primavera)diz tudo sobre a indignação popular. A postura, o olhar, a presença do protagonista: só os políticos não enxergam.

14 de agosto de 2006

LUZ DE INVERNO





No terminal do Centro da cidade, o assunto brandido por pessoas escandalizadas é o esforço permanente dos furadores da fila. Para alguns, ficar atrás de alguém e esperar sua vez é um ato de humilhação suprema. A pressa e a esperteza possuem álibis perfeitos para dar razão aos que atropelam os que se postam numa ordem lógica, agarrados ao que resta de consenso. Todos estão no mesmo barco, remoendo a impaciência e suspirando a expectativa de chegar logo em casa. Quem não se submete ao ritual, forjado pelo mau planejamento, se acha no direito de não obedecer. E os que sofrem com a transgressão alheia soltam o verbo, enquanto rugem os motores e a fumaça sufoca o ar gelado do Inverno tardio.

Voltar do trabalho se transforma assim num pesadelo, como se vivêssemos numa megalópole. Há uma capacidade extrema de experimentar o caos. Onde quer que exista um aglomerado de pessoas convivendo no país continente, o óbvio expõe suas vísceras. O noticiário é uma procissão de erros cometidos pela nação que perdeu seu rumo. Há uma exaustão, fruto da certeza de que não temos condições de resolver problemas básicos. Estamos tão desunidos que até mesmo um gesto de boa vontade acaba sendo engolido pela espiral da infâmia. As exceções são gotas no oceano. Sobra espaço para a demagogia bem remunerada.

Mesmo a indignação se volta contra nós. Nada mais desconfortável do que uma pessoa xingando a situação em que todos são responsáveis, pela omissão, pela truculência ou pela falta de canais adequados para se levar uma reivindicação a bom termo. Fazemos aquela cara que olha intensamente o vazio enquanto o próximo se esgoela. Sim, concordamos que a razão está do nosso lado, mas o que fazer com a razão se o absurdo plantou raízes em todas as manifestações da vida? Queixar-se é algo mal visto, pois a reclamação acaba se somando às dores de cabeça que precisamos enfrentar. Ficar calado, que tudo isso passa, pelo menos até chegarmos ao destino, é a opção mais evidente, e aparentemente razoável.

Mas o círculo se fecha no Inverno que pressiona a cidadania contra o muro. Num relance, vejo os rostos transidos de frio, enrolados em mantas, com o olhar duro. Estamos exilados das promessas de Verão, e das amenidades da meia estação. A luz que chega pela manhã dourando pássaros sob o céu azul, com cheiro de casca de laranja, não se sustenta até o final do dia. Há um ocaso de temores no trânsito cada vez mais denso. O noticiário espalha os sons na varanda. Montamos uma rede de promessas, porque o dia seguinte estará nos aguardando com sua dança.

Também procuro alguma coisa nas primeiras notícias antes da chegada do sol. Vejo pessoas bem postas, com suas roupas graves, seus rostos de pedra, sua dicção oblíqua, falando de problemas que parecem pertencer a um outro planeta. O recorrente desse conteúdo são leis que se confundem e depois se negam, são vontades nunca resolvidas. Nos livros, mergulho em textos impressionantes de talentos que jamais dão as caras na televisão. Por que há esta compulsão de mostrar sempre as mesmas figuras, enquanto a grossa lava da nossa inteligência queima as entranhas da nação silenciosa?

Nas programações noturnas e milionárias, ou mesmo nos fins de semana, é raro encontrar um programa cultural visitando a sala das famílias. Há gente demais dançando, tanto na ficção quanto nos palcos diante de auditórios em febre. Por que dançam de maneira tão intensa, sempre da mesma forma, a transbordar quadris e rostos de risos programados? Por que há tantas perguntas sem importância para respostas que nada nos dizem? Por que perdemos tempo, se o país fabricante da ruína pede socorro? Desconheço os motivos. Talvez seja esse silêncio, talvez esse Inverno que é véspera de voto, talvez aguardemos o Verão com sua grandeza.

Seria uma injustiça ao Inverno depositar nele toda nossa dor. Por isso lembro as manhãs de nevoeiro e geada, quando, à espera do sol, resgatamos o amor que salva, o sonho que jamais nos abandona e a força que carregamos não como um fardo, mas como sopro sobre a vela desta viagem que é pura convocação da divindade. Talvez, calados, aguardemos um milagre. Mas não será a palavra, habitada e livre, que irá nos redimir antes que seja tarde?

RETORNO - 1. Imagem de hoje: "Paisagem", de Ricky Bols. Artista da pesada, Ricky Bols tem blog de primeira. 2. A crônica acima foi publicada no caderno Donna DC, do Diário Catarinense, em 13 de agosto de 2006.

12 de agosto de 2006

O POETA ABSOLUTO





Pela mão do soneto, Bruno Tolentino leva a poesia brasileira contemporânea ao esplendor em A Imitação do Amanhecer .(Resenha publicada neste sábado, 12 de agosto de 2006, no caderno Cultura, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

O melhor poeta do Brasil contemporâneo são três: Ferreira Gullar, Mario Chamie e Bruno Tolentino. Suas obras possuem o mais precioso instrumento da língua: a espiral iluminada e infinita em torno da criação, que semeia e deveria alimentar a produção literária do nosso tempo. Escrever, hoje, passa, obrigatoriamente, pela senda aberta por eles na selva escura da dúvida e do horror, caminho que redime a nação sufocada pelo ruído e a decadência. Gullar, pelo mergulho crítico na vanguarda a partir dos anos 1950; Chamie, pela construção de uma poderosa arquitetura da linguagem, fonte do avanço que nos liberta de múltiplas amarras; e Bruno Tolentino, por gerar um renascimento a partir da mimesis dos clássicos, tanto no seu monumento, O Mundo como Idéia (Globo, 2004), quanto no seu mais recente lançamento, A Imitação do Amanhecer (Globo, 328 páginas), conjunto de 538 sonetos onde a filosofia, a história e a poesia se completam para recompor a essencial armadilha do instante, a eternidade.

Todos os três possuem a maldição de ficar à sombra, apesar da notoriedade. Não são autores de versos sorridentes, de que nos falava Torquato Neto. Jogam pesado, no melhor dos sentidos. Tanto o Poema Sujo de Gullar, a Lavra lavra, de Chamie, quanto a desconhecida e polêmica poesia de Tolentino compartilham uma espécie de esquecimento no país martirizado pela indiferença, a ditadura e a ignorância. Bruno é o exemplo maior desse exílio. Inconformado com a destruição do Brasil, ele voltou de longa temporada na Europa (para onde foi depois de se destacar, em 1960, como brilhante autor estreante) com o verbo solto e caiu no redemoinho de infâmias soprado pelo vendaval ideológico, cultural e político. Foi acusado de retrógrado, direitista, megalômano e, para intensificar sua indignação, tornou-se pessoalmente insuportável, pelo menos para seus adversários. Mas nada disso tem importância diante do que ele nos apresenta agora, este livro soberbo, que precisa não apenas ser lido e relido, mas estudado, compreendido, letra a letra, sob pena de ficarmos alheios ao resultado supremo gerado pelo talento.

Como um só poema sinfônico em três movimentos, A Imitação do Amanhecer parte do encontro de um par de amantes em Alexandria, ponto nodal da cruz Oriente-Ocidente, e se derrama sobre o mistério que a memória apascenta como pastora de um caos temporal. Seria injusto, pela perfeição da obra, que não admite tropeços, destacar versos, partilhá-los como se estivéssemos numa vitrine a expor uma caixa de ressonâncias ocultas. Tudo é claro, equilibrado e profundo no desdobramento dessa perseguição que o autor comete diante da sua presa. O poeta são as mãos do gato a enovelar-se no sem-fim, e seu pulo, apesar de previsível (por ser anunciado por ele mesmo), salta sempre sobre o abismo. Mesmo correndo o risco dessa imperdoável injustiça, podemos iluminar, como um spot no palco nu, algo que ele nos traz:

"Existe sempre, estátua a estátua, nesse amor, como um exílio incontentado que alucina a boca seca e vai secando, como a cor desabrigada, o lado agreste da colina. Lado lunar do sol que tudo contamina com a iridiscência, o fogo-fátuo do esplendor sem sombra, sem depois nem antes, sem supor a seqüência do grão, a esmola peregrina que há de morrer para doar. Esse prazer, dom do beijo de estátua, euforia do mármore e capitel da dissonância que há no ser, atem-se à alma apenas, desdenha ser a árvore e, lenha ainda, acende só por acender, Alexandria, a imitação do amanhecer".

Essa falsa alvorada, que existe por força da vontade humana, tanto no gesto quanto na voz que o escala, que o aborda sem jamais desistir de tentar decifrar (ou pelo menos sugerir) o mistério, é a liga de uma poesia que presta tributo ao clássico, mas não se omite ao lidar com as ruínas do discurso.

Bruno Tolentino se assume carioca e gruda, assim, sua origem e identidade ao estro canônico, de origem camoniana, crestado pelas lições de mestres como Borges, Pessoa, Machado de Assis (entre muitos outros), e abraçado à erudição da melhor poesia inglesa e dos parâmetros filosóficos e literários da Grécia antiga. Uma resenha, não só pelo espaço exíguo, mas pela natureza frágil de ser escrita logo após a leitura, é apenas um aceno na noite estelar de tão portentosa poesia. O que encanta é que Bruno Tolentino não optou pela palavra avara nem sucumbiu às enchentes da leitura fácil. Ele temperou o aço do verbo na sua forja, que é mistura de número e cristal, e que tem de fluido apenas os trajetos da luz, da alvorada ao ocaso e, principalmente, essa chama inventada pela exata noção do desaparecimento humano, fonte de sua perenidade.

Esgrimindo, com elegância, o equilíbrio entre o rigor e a ambição poética desmedida, Bruno se sai bem da batalha e exibe o design ao mesmo tempo limpo e ardente de um especialista. "Abandonei Alexandria e a vida toda ela me andou buscando, convidando-me à boda de um par indistinguível perpetuando o enlace em que às vezes eu via, vislumbrava uma face, um gesto, e, de repente, como a cabeça roda, não via nada, ou via a desaparição, o impasse..." No fundo, todo livro é um jogo de sedução. Você é arrancado do seu lugar confortável, em que as coisas estão no lugar, distribuídas mais pelo desconhecimento e a preguiça do que pelo esforço, e é jogado no vórtice de uma paixão sem limites, que tanto pode ser o verso urdido pelo gênio, a metáfora que se desfaz no momento em que é enunciada, e a evocação de um espírito livre que se recusa a morrer.

Muito mais pode ser dito dessa viagem sem fim nem volta que começa pedindo para o leitor reparar "como crescem espigas entre escombros humanos", e termina com a constatação de que "se algo perdeu-se foi como o grão, entre a seara e a colheita". Mas o que deve ser destacado é que este é um divisor de águas. Ficou impossível ignorar Bruno Tolentino e sua obra, que se espalha por outros livros além dos citados. Se alguém usá-lo como medalha para exibir cultura, ou como penduricalho ideológico, releve. Insuportável não é o poeta, mas o que se faz com sua obra atualmente. Para virar essa maré, só partindo do porto de Alexandria como Odisseu em busca do sagrado. Pois se o Belo foi deixado de lado pela sordidez do mundo transformado em mercadoria, A Imitação do Amanhecer prova que ele continua vivo e pronto para o bote. Era preciso que um poeta viesse resgatá-lo, raptando a alma como um souvenir e voando pela janela como um pássaro de luz.

RETORNO - Marco Celso Huffel Viola, o Grande Poeta Oculto, mostra definitivamente a cara com sua nova editora Alegoria. Está lançando seis livros de poetas como Affonso Romano Santana, Adelia Prado e Arnaldo Antunes. Um dos livros é do próprio Celso, Viver a paixão de cada passo. Celso agita o mundo cultural com seu talento, sua radicalidade, seu fôlego e sua ética.

11 de agosto de 2006

HÁ TEMPOS






Nei Duclós

A memória da ponte me alimenta
O horizonte embala o contrabando
O Cruzeiro aponta a lua cheia

Hoje a infância é faca pelo avesso
Correnteza recorda o fio do remo
no recorte do rio, margem de bolo

Na calçada ecoa o esconde-esconde
Não há como enganar o diabo rengo
O revólver descarrega o Ano Velho

Na janela do trem cruza uma estrela
Esporas sapateiam na varanda
Um enrosco de açoite ronda o vento

Habitantes expulsos do poente
O espelho metralhado pelo rosto
O terror sabe a senha do fandango

Era o resto de antigos combatentes
Farelos de luz cobriam ponchos
Mapa embaralhado de rebenques

Comboio cerca o trilho da inocência
A História engatilhada pelo assombro
surra de ancestrais, cabo e sargento

Quando a cidade caiu a seu comando
a paisagem era eterna, havia tempo
O cartucho do passado estava cheio

(Do livro Partimos de Manhã, inédito)

RETORNO - 1. Este poema foi brindado pelo mestre Moacir Japiassu na sua festejada coluna Jornal da ImprenÇa desta semana, no Comunique-se. Os versos iniciais serviram de epígrafe para a coluna e o poema completa foi reproduzido no seu Blogstraquis. 2. Ida Duclós pesquisa a memória familiar e chega até os planos do engenheiro/estadista André Rebouças, no belo blog Nada a ver. Ida é também a autora da matéria de capa da revista Empreendedor deste mês, que está chegando às bancas. 3. Cícero Galeno Lopes, contista e professor doutor em Literatura, faz apurada análise da obra-prima de J.A. Pio de Almeida, As Brasinas, que será publicada em revista acadêmica em breve.4. Imagem de hoje: Sentimento gaúcho, de Felipe Constant.

10 de agosto de 2006

EIS REDENTOR, UM FILME E TANTO




Rodeei, desconfiado, várias vezes pelo dvd de Redentor, o filme de Cláudio Torres, antes de ceder à curiosidade. Tem ator global demais e parecia à primeira vista uma comédia ligeira. No making off, depois que vi o filme e fiquei impressionado, alguns participantes juram quem é feito mesmo para rir, mas os sites de cinema batizam de maneira certa: é drama, e dos pesados. Confunde porque ele é protagonizado por Pedro Cardoso, atualmente nosso comediante maior. Mas é drama, todo ele calcado em Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder. É a mesma história: o cara está morto e conta porque morreu. E morreu porque , escritor (no caso do filme brasileiro, repórter), se vendeu para alguém. Em Redentor, para o amigo da infância. Na obra-prima de Wilder, para a estrela decadente. Não se trata de um remake, uma refilmagem, mas o aproveitamento e adaptação de um mote: a lucidez provocada pela corrupção. O arrependimento vem do desastre, da queda, que leva à denúncia. Torres encontra em Wilder o mestre para abordar o Brasil de Sergio Naya,o construtor da Barra da Tijuca que caiu em desgraça. Claro que com outro nome, bem parecido, Saboya.

Redentor é um filme crespuscular. É sobre a morte de uma civilização, a do Brasil, que se transformou num porão mal assombrado. Disseca o passaporte para a violência, a esperança, pois é a boa fé sem cidadania que alimenta os tubarões da construção civil, da polícia e da política. É um filme que não brinca de fazer cinema. Faz de maneira convincente, com suas cenas fortíssimas, como a final, quando uma pessoa pode ser jogada no abismo. Há interpretações excelentes em todos os níveis. A mais brutal é de Miguel Falabela, o herdeiro corrupto que coloca o amigo na cadeia, se mistura com o tráfico de drogas e acaba sendo pressionado para se arrepender. Falabela tem um carisma e uma concentração que cinzelam a tela. Mas ele não esta só.

Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Stenio Garcia, Paulo Goulart e Camila Pitanga invadem a narrativa com fúria, ressentimento, dor, desesperança. Nada é pequeno em Redentor: cenários como Brasília sob a bomba atômica, ratoeiras em forma de edifícios, coberturas amaldiçoadas, lixos, cadeias pútridas. Há gritos, estertores, num clímax operístico permanente, como se estivéssemos diante de Terra em transe, de Glauber, e Pedro Cardoso fosse tão surtado quanto Jardel Filho, falando com Deus e exercendo vingança. É um mergulho doloroso no Brasil e não pode ficar preso a uma estante da locadora. É preciso levá-lo pra casa e navegar na sua agonia lenta em direção às profundezas do Mal.

O povo contaminado pela ditadura financeira, os aproveitadores que fazem qualquer coisa para livrar a cara, o jornalista que pensa poder escapar da arapuca, tudo nos leva de roldão neste filme surpreendente, uma super-produção embalado pelo som do Guarani, de Carlos Gomes. É, como disse alguém, o nosso Ben-Hur: o herói que ficou desaparecido nas galés volta para a grande corrida de bigas. E acaba como William Holden, morto na piscina no filme de Wilder. Deitado sobre sacos de lixo, de gravata desapertada, esse Pedro Cardoso hilário e tocante, como um Macunaíma revisitado, nos leva pelos becos de uma tragédia, o Brasil que perdeu o prumo e berra diante da catástrofe.

Eis Redentor, um filme e tanto. Marca do que melhor podemos produzir nesta retomada cheia de gás.

RETORNO - Fernanda Montenegro e Pedro Cardoso em Redentor: uma visita ao país-porão.

9 de agosto de 2006

NÃO EXISTE BAIRRO NOBRE





Repetem todos os dias que os atentados atingiram bairro nobre de São Paulo. Li no mês passado que os moradores de um desses locais afamados se uniram para remendar as calçadas, que não viam reforma há mais de 40 anos (certamente, desde 1964). A poluição, a insegurança, o barulho não permitem que tenhamos qualquer coisa parecida com a corte do Luis XVI em nossas cidades terminais. Mas a mídia faz noticiário ao som de violinos, como se houvesse nobreza na urbanidade detonada.

O bairro da Liberdade, tão famoso, não tem casas japonesas. São as casas comuns em ruas e avenidas comuns onde foram plantados aqueles postes vermelhos. Vá até a Liberdade e imagine aquilo sem o enfeite. Verás qualquer lugar do país. Ao redor da Parati preservada do século XVII, há a verdadeira Parati: igualzinha a qualquer cidade brasileira. Tem supermercado, banca, ônibus, camelô, oficina, carro a sair pelo ladrão. É um país de viração, onde tudo é provisório. Não há como ganhar dinheiro, que fica estocado em meia dúzia. Vejam os ilustres policiais de Curitiba arrancando o aparelho de som em pleno Jornal Nacional. Dali a pouco chegam os donos, desesperados. As autoridades, com o som surrupiado no carro, fazem aquela cara mascadora de chiclete, olhando para o vazio. Conhecemos essa cara. Diz: estou aqui cumprindo minhas oito horas.

Os carros novos são as carruagens do país em chamas. Quadrilhas bem vestidas e toleradas batem ponto roubando no centro da cidade. Estão também cumprindo suas oito horas. Acabaram com o emprego para colocar no lugar a ação criminosa. Esse era o plano. Para as favelas, criança esperança: como as mucamas, os carregadores, os passeadores de cachorro deixaram de lado as drogas e estão aqui, neste noticiário milionário, sustentado pelo sistema financeiro, agradecidos por terem a chance de dizerem com certeza na frente das câmaras. Essa-gente é mesmo um encanto. Os pobres adoram fazer seu papel de pobres.

As favelas não são bairros nobres, portanto devem ser bairros plebeus, ou senzalas. Nelas não vive gente-bem, os bons. Estes se refugiam em edifícios que imitam a nobreza nos nomes e nos apliques de gesso no hall de entrada, onde cães ferozes e guardas, que depois planejam os assaltos contra os próprios clientes, te recebem com cara de nojo, rosnando. Bairro nobre é assim: está cheio de casamatas. As carruagens entram e saem dos espaços guardados pelos portões gigantescos. Mas o dinheiro migrou, então muitos casarões viraram centrais de eventos de multinacionais. Ferraris estacionam na porta. Já estive em vários desses eventos. Ficam em bairros nobres. Sempre que eu ia lá, achava que ia encontrar a Maria Antonieta.

RETORNO - O quadro é de Goya, a corte é de Carlos IV. Nobreza é outra coisa.

8 de agosto de 2006

A DITADURA CONTINUA


Com seu penteado de Palhaço Bozo, seu ar pedante e o sorrisinho ostentando uma falsa inteligência , Arnaldo Jabor faz o serviço sujo: coloca Lula como representante de um getulismo tardio (segundo suas próprias palavras no Estadão desta terça-feira). Tardio é uma palavra cool, muito considerada em certos meios. Houve uma época em que tudo era tardio, a começar pelo capitalismo. Bozo acha que o atual presidente exerce fascínio sobre os intelectuais por ser populista. É exatamente o contrário. Lula foi a solução contra o que chamavam de populismo getulista. É o anti-Getúlio e seu fascínio veio exatamente por encarnar o anti-getulismo. Lula é populista não por clonar Getúlio, mas por combatê-lo. Foi para isso que foi inventado e colocado no poder. Ele é fruto de uma operação bem sucedida entre o coronelato civil, os pseudo-intelectuais e a ditadura da época militar (hoje estamos na fase civil). O populismo, como disse aqui várias vezes, é uma invenção da direita. Foi criado para varrer o trabalhismo das urnas, via Jânio Quadros e mais tarde, Collor e Lula.

Jabor já tinha escrito a fala do PCC, e não por acaso sua crônica foi considerada de fonte legítima, da liderança do crime organizado. Vocês conhecem esse texto, coloca o crime como a ultra-modernidade contra o estado burocrático, pesado e...populista. Por muito tempo ele combateu o Estado, ajudou a destruir a nação com sua argumentação pseudo- moderna, em que tudo deveria ser privatizado para acabar com as tetas e sanguessugas. Vimos onde tudo isso foi parar.

Agora dá voz ao que ele chama de o Mesmo, que seria o atraso e o primitivismo do Brasil. Combate o atual presidente depois de passar anos babando o ovo de FHC. Só saltou fora quando o pseudo-intelectual babão deu com os burros n´água. Aí vale queimar. O cara já estava estirado mesmo. Sua pregação tem um único objetivo: a volta do tucanato ao poder. Serve, portanto, à atual política café com leite, de eternização do Mesmo. Alimenta o sistema, a ditadura, que precisa dessa oscilação entre partidos para fingir que temos democracia. Lula já queimou todos os seus cartuchos. É hora dos fãs da privatagem voltar.

O Estado precisa se fortalecer. Malha ferroviária moderna agora. Serviços públicos de limpeza pública, infra-estrutura, educação e saúde. Renegociação da dívida interna e externa, juro baixo, intervenção nos lucros do sistema bancário, fim dos impostos sobre emprego, fortalecimento das leis trabalhistas e guerra total à porcariada chinesa. Combate frontal ao crime organizado, ao tráfico de drogas e armas e à impunidade. Fim da censura à imprensa. Redistribuição dos canais de televisão. E incentivo aos serviços voluntários.

Mas o que vemos na campanha? A culpa é sua, não, é de vocês! Fulano disse que disse. Mãos limpas. Nosso partido sim é que é o bom. E por aí vai. Ninguém agüenta mais. Tudo fica igual porque a razão é surrupiada pelos bem-falantes, que nas redes de monopólio deitam e rolam. Irrita o que dizem e os trejeitos que fazem, como esse Bozo sem compostura, considerado a coisinha linda da mídia metida a besta.

RETORNO - A foto é de Marcelo Min.

6 de agosto de 2006

VER, EM STEVE SPIELBERG





Guerra dos Mundos, de Steve Spielberg, é uma charada cinematográfica que propõe o verbo ver como a chave do enigma. Os invasores surgem no olho do furacão. Descem até suas máquinas enterradas no chão, ou seja, onde não eram vistas, apesar de estarem situadas bem no miolo da civilização (Nova York, Boston, especialmente a América). Para escapar, era preciso não ser visto. Para evitar que eles avançassem sobre o olhar inocente, foi preciso tapar os olhos da criança. Quando as máquinas emergem do solo, a população inteira está de olho no que está acontecendo.

A fabulosa seqüência inicial, quando Tom Cruise (esse ator correto e talentoso, apesar das inúmeras bobagens das quais participou) procura ficar perto dos acontecimentos, de olhos bem abertos, assim como o resto dos habitantes do seu bairro, diz tudo sobre o filme. Em nenhum momento se desvia o olhar, só para fugir. Escapar é ficar longe do alcance daquele olho gigante da máquina invasora. A solução do enigma fica a cargo de Tim Robbins, impressionante como sempre (não lembro de nenhuma performance ruim desse grande ator): quem sobrevive, nas ambulâncias onde trabalha, são apenas aqueles que ficam olhando firme para o para-médico. Olham e pensam, diz o personagem de Tim, um sobrevivente que, para escapar, se esconde num porão, procura ficar invisível.

Mas ele comete um erro: quer enfrentar o inimigo poderoso com as velhas armas, com as lições da América pioneira. Tom Cruise também comete o mesmo erro, pois coloca uma arma na cintura, que só serve para apontar contra seus semelhantes, jamais para o invasor, que não é atingido pelas armas tradicionais. A bola de beisebol que quebra a vidraça no início do filme, fruto do desentendimento entre Tom e o filho, abre um olho no vidro. É quando o pesadelo começa: alguém nos viu esse tempo todo e vai atacar. Qual a saída, além de ficar fora do alcance do olhar mortal? É enxergar o que não é visto a olho nu. É lá, onde mora a resistência, oculta por bilhões de anos de evolução genética, que está a força para derrotar os aliens.

A verdadeira guerra é entre o mundo visível e o invisível. Ou entre o mundo oculto que de repente mostra a cara e o mundo aparente e explícito (para os olhos) da vida diária. A guerra inverte a percepção: o que estava fora do olhar torna-se hegemônico, e a civilização que nos conforta com suas coisas visíveis praticamente desaparece.

Na cena impressionante em que um periscópio vivo e em forma de cobra tenta enxergar quem se esconde no porão, os seres de outro planeta ficam olhando para uma foto. Passam de mão em mão. Eles enxergam apenas o visível. Não ver o que está sob a toca do universo invisível foi a sua ruína. Tom só enxerga a dimensão real do perigo quando a câmara de televisão mostra como os invasores agem: descendo pela luz (visível) eles chegam até a máquina (oculta) e fazem a perseguição com um grande olho central dominando as ações, e olhos acessórios por meio dessas cobras/periscópios que rastreiam os habitantes apavorados.

Um detalhe, também na primeira seqüência: o olhar catatônico de quem viu demais nos remete aos filmes de zumbis e de invasão de alienígenas dos anos 50 e 60. É uma referência, e uma explicação, para esse olhar sonâmbulo, zumbi, que permeou nossa infância. Ver torna-se um pesadelo e o choque desse contato transforma os humanos em seres pasmos diante do inimaginável.

Li algumas críticas sobre o filme e os equívocos são recorrentes. Primeiro, acusam Spielberg de americano. Mas o que ele mais poderia ser? A antropologia nos ensina que precisamos analisar os fatos e as culturas nas suas especificidades. Spielberg jamais será outra coisa do que um americano. Também dizem que ele usou o velho truque do deus ex-maquina, a intervenção que vem de outro lugar, para resolver o problema. É exatamente aí que reside a qualidade do filme: a coerência com que ele desenvolve e cria o desfecho da trama é que importante. Também invocam outros filmes como melhores do que este. Quando lançou Tubarão e suas outras obras, caíram de pau em cima dele. Agora invocam o que malharam para criticar este Guerra dos Mundos. É muita estreiteza de visão.

Spielberg é um criador poderoso e nos legou imagens que vão ficar para sempre. Guerra dos Mundos é um filme assustador que merece ser visto pelo que ele é: um exercício em cima da mais importante vetor do cinema, que é o verbo ver. Ver, em Spielberg, neste filme, é uma porta para a sua permanência como cineasta do primeiro time. Americano, por certo. Profundamente comercial, naturalmente (o que é coerente com sua cultura). E com a força e a profundidade dos verdadeiros criadores. O que não é pouco, dada a enorme quantidade de asneiras com que nos brindam todos os dias.

RETORNO - Imagem de hoje: Tim Robbins, Tom Cruise e Dakota Fanning no porão em "Guerra dos Mundos": o susto de ver demais.

5 de agosto de 2006

BLOG ESTÁ NA MODA





Capa da revista Época, os blogs emergem como o grande assunto do momento. Diz a matéria que 54 milhões de americanos lêem blogs, ou seja, todo dia vão lá para ver se há conteúdo novo. Existem as estrelas brasileiras, entre elas Noblat e Interney (do qual não tinha ouvido falar) e Rosana Herman, que publica crônicas semanais no espaço Literário, do Comunique-se. Mas ainda é costume, na mídia, enfocar o blog como se fosse um diário. Blog é ferramenta, pode servir para qualquer coisa. Aqui no Outubro, serve como suporte para um jornal, o Diário da Fonte, que existe há quatro anos. Não se trata de meu querido diário, mas colocar no ar todas as pautas encobertas pela mídia tradicional, e misturar os assuntos como bem nos aprouver. Isso não torna o blog algo a ser considerado como uma coisa menor. No Brasil, tudo é reduzido à relação senhor/escravo. Vemos isso nos jornais: os blogs dos jornalistas (com algumas exceções, como o do Josias, da Folha) são apenas o refresco, o plus. O objetivo é manter o poder das redações tradicionais e enquadrar a mídia blog na periferia, na superficialidade. Isso não acontece nos Estados Unidos, onde as coisas são levadas a sério. Aqui, na ditadura, blog é ameaça.

SCRIPT - O espaço Literário, do qual participo sempre às quartas-feiras (ultimamente, tenho divulgado lá uma série de poemas, dando um tempo na prosa, memórias e contos) realiza velho sonho dos jornalistas brasileiros que divulgar suas produções sem a interferência da imprensa que fazem para viver e por vocação. Nos Estados Unidos, há muito que essa dicotomia foi resolvida. Leio sobre John Berendt, autor do best-seller (por quatro anos na lista) Meia-noite no jardim do bem e do mal. Ele é jornalista de revistas importantes e começou com um artigo antes de transformar a história da pequena Savanah, na Georgia num livro que acabou nas mãos de Clint Eastwood. Muitas produtoras de filmes já estão comprando ou compraram editoras inteiras. Há uma voracidade por textos, narrativas, histórias, scripts.

Dá para viver de escrever por lá, enquanto aqui pagamos o pato de sermos uma sociedade sem fundos, incapaz de produzir seus roteiros originais, pelo menos na maior parte do tempo. Vi pessoas morrerem sem realizar o simples sonho de publicar um livro. Não dá para entender, porque o que vem de porcaria das editoras é impressionante. Conheço pelo menos meia dúzia de livros que deveria ser editados, mas o que tenho em cima da minha mesa na revista onde trabalho são uma tonelada de papel sem conteúdo. Pouca coisa boa chega às nossas mãos. E nas livrarias, o que tem de bom normalmente é caríssimo.

LIVRO - O blog é um drible no sufoco mas não é sua solução. Um livro é imbatível, amigável, para ser consumido com prazer, quando há texto bom. Ler no micro é uma pedreira. Quando ao artigo é longo, imprimo para ler depois. Meus bolsos ficam cheios desses papéis impressos, que se espalham pela casa. Tive uma percepção melhor, por exemplo, do melodrama serial de Luis Antonio Giron, O Crítico Imaginário, que está no seu décimo capítulo no Literário, quando imprimi todo o texto e levei para casa. O narrador é um personagem incrível, jornalista que escreve necrológios e resolve mergulhar na juventude de Qorpo Santo. E a história toda é saborosíssima, com o humor pontuando uma tragédia, o de não termos cultura, ou pelo menos colocarmos a imitação da cultura em destaque. O Literário está servindo para disseminar entre os jornalistas uma produção que estava na sombra e também para que o exercício da literatura avance. Há um espaço para debates muito mal aproveitado. Normalmente há o silêncio montando guarda, algumas agressões, e comparecimentos esparsos. Deveria ser ocupado com míni-resenhas, interação com os autores etc. Mas isso ainda vai acontecer em melhores condições do que atualmente. Por enquanto, é um grande avanço.

RETORNO - 1. Marcelo Min vai casar! Em setembro, no início da primavera. Ontem ele me ligou para informar o evento e dizer que sua agência Fotogarrafa vai de vento em poppa. Grande Min. Felicidades. Min foi o cara que me falou da existência do blog. Seu Footogarrafa é absolutamente pioneiro. Mas isso não aparece na mídia tradicional. 2. Imagem de hoje: Clint Eastwood, John Cusak e Alison Eastwood no intervalo da filmagem de "Meia-noite no jardim do bem e do mal".

3 de agosto de 2006

"DEPOIS DA TEMPESTADE VEM A AMBULÂNCIA"





A boutade do frasista Vicente Matheus, que serve de título para a edição de hoje, nos remete ao assunto medicina no Brasil em cacos. Alguns médicos salvaram minha vida, mas não é disso que estou falando. Não tenho ido a médico desde que fiz uma bateria de exames e fui enxovalhado, xingado, desprezado e acusado de tudo que é coisa. Você é isso e aquilo e está assim porque não passa disso e daquilo. Paradigmas da virtude e do bem estar, os sujeitos por trás da mesa nada sabem sobre você e apostam no que temos de pior. Médico não deveria focar na doença, no erro. Eles fazem isso para lavar as mãos. Já que és um sujeito terminal , o que a medicina fizer será lucro e se nada adiantar, bem, pelo menos tentamos. Eles precisam ver o paciente como uma pessoa saudável, que cuida de si e que, se está com algum problema, é porque houve desvio do percurso, precisa de um esclarecimento, mas jamais deve ser tratado como um marginal. Mas eles apenas refletem o ódio ao cidadão, cevado pelo poder público, haja visto o escândalo dos sanguessugas. Desviam verba logo de onde, de um serviço do qual não dispomos, o de ser recolhido em casa, na emergência, por uma ambulância.

TRAGÉDIA - A indiferença é a grande tempestade que se abate sobre nós. Recebo fotos de crianças estraçalhadas no Líbano, enquanto o presidente que lançou o fogo sinistro aparece sorrindo em frente às câmaras e seus adversários não cessam de lançar também suas bombas. Não se trata mais de ódio, mas de indiferença. A única ligação que tínhamos com o Outro eram a cultura, a arte e a religião, que foram erradicadas ou contaminadas pelas obsessões. O melhor da criação humana é a diversidade, é prestar atenção na vida alheia, não no sentido de saber para falar ou fazer mal ao semelhante, mas descobrir o eterno no instante, tema do livro poderoso de poesia que estou lendo e que daqui a pouco direi qual é. O espírito humano precisa da transcendência para sobreviver. "Pintamos nosso corpo para nos diferenciar dos bichos", dizia Stênio Garcia desempenhando o papel de índio no filmaço de Hector Babenco, Brincando nos campos do Senhor. Vi há décadas Stênio Garcia na peça Cemitério de Automóveis em São Paulo e vejo hoje na série Carga Pesada. Um dos nossos grandes atores, está mal aproveitado, assim como Othon Bastos, que nos dói ver em tantas novelinhas das seis. Dêem uma chance à arte e coloquem esses atores em algo realmente grande, para que todo o povo se emocione de verdade e não apenas verta lágrimas diante de scripts pífios e falas insossas. É indiferença demais. E ninguém reclama.

ESTANDARTE - Falei em Vandré e na pesquisa redescobri Porta Bandeira, sua clássica marcha rancho, que deveria ser cantada pelo povo em cordão delirante todos os carnavais. "Eu vou levando a minha vida enfim, cantando, que canto sim e não cantava se não fosse assim, levando para quem me ouvir, certezas e esperanças para trocar, por dores e tristezas que bem sei, um dia ainda vão findar, o dia que vem vindo e que eu vivo para cantar, na avenida girando estandarte na mão para anunciar". Vandré era a anti-indiferença. Nós o perdemos, depois do mistério de sua prisão e desaparecimento por algum tempo. Assim como perdemos Cat Stevens, autor das mais belas canções dos anos 60 e que virou fundamentalista.

FILME - Perdemos muita coisa, perdemos tudo. A poesia nos largou de mão quando descobriu que não estávamos mais disponíveis para o que realmente importa. Ela tem a aparência de um anjo. Caídos na beira do caminho, vemos esse anjo se afastando. Suas asas parecem meio crispadas, como se denotassem irritação celeste pelo nosso tombo voluntário. Destroem um país e mudamos de canal. Alguém dá um alô e viramos a cara. O noticiário passa como um filme/pesadelo de uma vida inteira diante dos nossos olhos. Que aconteceu conosco nesta altura do campeonato? Me incluam fora disso, como diria Vicente Matheus.

RETORNO - Imagem principal de hoje: Rua, de Marcelo Min. O Olhar Absoluto nem precisa ir ao Líbano para fotografar crianças desprezadas. Aqui mesmo é o canal. Logo abaixo, poster do filme de Babenco e mais um por-de-sol de Anderson Petroceli.

2 de agosto de 2006

VOTAR EM QUEM?





Há uma campanha na MTV a favor o voto nulo, e que convoca a mocidade para agredir os políticos. Há uma acusação recorrente contra o crescimento de Heloisa Helena, a de que estaria a serviço da direita. A indignação popular, no lugar se ser conduzida pelos partidos, está a cargo de uma parte da mídia. E a possibilidade de uma candidata fora das cartas marcadas da sucessão começa a incomodar. Manifesta-se assim o voto útil, o atual voto de cabresto. Você não tem escolha. Se anular o voto ou optar por um candidato nanico, estará ajudando a eleger o tucanato, desde que haja o consenso de que o atual governo é uma opção de esquerda, o que já foi negado pelo próprio presidente.

A campanha segue seu curso com suas distorções. Primeiro, para se candidatar, o presidente não teria que se desincompatibilizar, como fazem os governadores? Não entendo porque o presidente não passa o cargo. Pois fica explícito que tudo o que faz é parte da campanha. É canhão contra baioneta, para usar uma metáfora do meu poema No Mar, Veremos. Sinto que há perplexidade geral. Depois dos escândalos, da frustração que foi este governo, e diante da possibilidade de os tucanos voltarem com suas boquinhas tortas e moles, a arengar pseudo-modernidades, e diante da incapacidade de partidos menores se articularem em favor de uma alternativa concreta, fica o impasse.

Não entendo também porque o Roberto Freire tucanou. Por mera oposição ao governo? E porque o Cristóvão Buarque insistiu em se candidatar, se não acredita em suas chances. Por que não deixou a vaga para alguém nitidamente trabalhista? Quando afinal o PDT vai acreditar na própria força? Para mim, há um boicote. Quem dirige o PDT não quer que o partido deslanche. É um erro antigo. Há uma juventude focada no trabalhismo, militante. Parte dela chiou com a candidatura Buarque, mas em vão. Vejam o caso da Heloisa Helena. É uma defecção do PT, fica falando em consultar a sociedade quando a hora é de agir prontamente, como no caso da segurança, e está aí, crescendo. Um trabalhista convicto teria grandes chances. É preciso se desvencilhar da herança pesada do anti-getulismo, essa campanha difamatória de décadas, que começou na velha UDN e atingiu o esplendor nos acadêmicos que forjaram o conceito de populismo no Brasil.

Como vêem, não tenho candidato. Tenho votado em trânsito nas últimas eleições, pois ainda não transferi meu título. Em princípio, todo mundo deve votar conforme seu coração e consciência mandam. Vote tucano, PT, Helena, Buarque, Luciano Bivar e sei quem mais, mas vote conforme ache. Não se deve pensar em esquerda ou direita, pois uma chapa que se elegeu como o anti-PSDB fez o que fez, então tudo está liberado. Fazer o jogo da direita é o mais velho truque dos oportunistas. Votar não é fazer o jogo da direita. Votar é ajudar a inventar uma democracia. Enquanto houver voto de cabresto, essa sucessão café-com-leite tucano-petista não terá fim e não teremos democracia.

Quando à ira popular contra os políticos, é mais do que justa. Se não é mensalão é sanguessuga. Não se levanta um muro, não se pinta uma escola. Tudo escoa pela publicidade. Isso é mais do que sabido. Qual a saída, me perguntou um amigo. Sei lá. Eu voto em trânsito. Não anulo, não faço jogo da direita nem ajudo a eleger meliantes. Consultem a sociedade.

RETORNO - Imagem de hoje: Sufoco, de Marcelo MIn.

1 de agosto de 2006

VANDRÉ DEBAIXO DO TAPETE

Diário da Fonte



No final da programação de domingo, a Globo veiculou a solenidade do Premio Tim. O homenageado era Jair Rodrigues e suas interpretações. Dois filhos de Jair entram no palco para cantar a música Fica mal com Deus, de Geraldo Vandré. Um bate com as mãos espalmadas, morde o lábio inferior, dobra os cotovelos e dá uma dançadinha estalando os dedos. Já sabemos como é essa coreografia. O outro faz mais ou menos a mesma coisa. E cantam a música de Vandré como se fosse uma coisa qualquer. Para começar, não foi dado o crédito. O nome do autor não aparece na tela. Ou seja, empurraram Vandré para baixo do tapete. O sistema de televisão que sustenta a atual ditadura não brinca em serviço. Não pode deixar que escape qualquer nesga do Brasil soberano. Na música em questão, a letra diz a certa altura: "Vida que não tem valor/ Homem que não sabe dar/ Deus que se descuide dele/ Um jeito a gente ajeita/ Dele se acabar". É poesia guerreira, contra a opressão. Fala em eliminar os responsáveis pela má distribuição de renda (os que não sabem dar). É uma carga explosiva demais para ser suportada pelos prêmios sustentados com dinheiro público. Por isso ela é embalada em interpretações artificiais.

SOLENE - Vandré canta essa música com solenidade, com grandeza. É a voz de uma convocação. Nunca deu reboladinha em cena, nunca deu uma viradinha de rosto para o lado para fazer charme, como acontece agora. Tenho visto cantoras de todo mundo. Todas cantam do pescoço para cima. As brasileiras, muitas delas, rebolam quando cantam. O Brasil precisa mostrar que é sexy. É uma afirmação infantil da sexualidade. Expropriaram a grandeza do país, a seriedade, a sobriedade. Tudo é piada e festa. É um coletivo abrir de pernas. Jô Soares, no tempo do SBT, estava em cima dos acontecimentos, fazia programa em função dos fatos. Hoje o mundo explode e ele está encarcerado na fórmula não tenho nada com isso. Como está fora do noticiário, fica fazendo piada suja, em sua maioria. Acha isso muito engraçado, mas é patético. O "Fala, garoto" do Sergio Groismann no SBT era interessante, dava voz a uma juventude calada à força. Foi para a Globo esconder-se na madrugada do fim de semana, fazendo apenas entretenimento. O sistema de monopólio não brinca sem serviço. Ana Maria Braga incomodava na Record? Joga a apresentadora para as oito da manhã. Faustão fazia um programa escrachado na Band, o "Perdidos na noite"? Transforme o dito no porta-voz da mesmice gritada, para preencher o vazio interminável das tardes de domingo. É assim que funciona. Tudo para debaixo do tapete.

RASPA - Eliminam a arte da programação e depois empurram um monte de gente numa noite de gala, como neste Prêmio Tim (quanto custa em publicidade a implantação de uma tele?). A maioria permanecerá inédita. Há o cuidado de distribuir galardões para figuras carimbadas e incensar alguns novatos. Outra coisa que me chamou a atenção foi essa história de Jair Rodrigues ser precursor do rap, com o "Deixe que falem" e o "Zigue zague". Anacronismo puro. O samba falado é antigo e nada tem a ver com o rap, rep, rip, rop. Tem coisas que me dão calafrios. Como a hegemonia do rap e a presença de DJs em apresentações musicais. DJ agora é instrumentista ou intérprete? Parece que é. O fato é que degringolamos de maneira completa. Ficamos mal com Deus.