24 de julho de 2004

REDAÇÕES, RUÍDOS E POETAS



Redação é um porre, mas não há trabalho melhor. Ficar o tempo todo confinado entre imensos janelões (como a do Estadão, na marginal Tietê), tetos escabrosos (como as da Lapa de Baixo, na Editora Três), colunas cheias de pastilhas (como na velha Folha, na Barão de Limeira), ou agora diante de telas luminosas (cavernas de Platão, como diz Marco Roza) é um ofício que te afasta do mundo, apesar de o mundo ser sua matéria-prima. A pior redação foi a da Record. O prédio tinha mil descaminhos para se chegar até ela, não haviam janelas nem nada que revelasse a vida lá fora. O telespectador sabe mais do que nós, dizia eu, provisoriamente colocado na direção do telejornal. Eles tem o zap e nós umas três ou quatro equipes para cobrir o mundo.

RASCUNHO - Recebo o magnífico Rascunho, o maior jornal cultural do país (cada vez mais só, agora que o grande Mais!, da Folha corre risco de vida), que tem belo texto do poeta Thiago de Melo sobre Pablo Neruda. É uma aula de História, que carrega palavras e climas perdidos, no tempo em que existiam poetas/bandeira, os que sintetizavam nações ou continentes, que fundavam países e marcavam épocas. Ficamos sabendo detalhes como a paixão de Neruda por Lord Jim, de Conrad. Emociona também saber que Neruda, desafinado e com voz nasal, cantava nos ágapes e era respeitado. Vá hoje abrir sua boca para tentar cantar qualquer coisa. Imediatamente surgem assobios demonstrando que você está com a melodia incorreta, ou cantam em cima do que você está tentando entoar, ou simplesmente começam a falar sobre outro assunto. Não há mais interesse nenhum pelo Outro, nem simpatia ou admiração. As pessoas com grandeza continuam raras, mas não há mais reconhecimento. Faz tempo que não vou a shows ou teatros. Desisti porque na platéia havia sempre inúmeros pretendentes ao estrelato que faziam de tudo para acabar com o brilho de quem estava no palco. Vi isso com a Gal, com o Muddy Waters e tantos outros. Por isso João Gilberto, o gênio maior, baixa a repressão. Não tem outro jeito. João Gilberto é a expressão máxima do silêncio necessário para existir música. Numa sociedade que privilegia o ruído, a falsa música é a que manda. Isso acaba se espalhando para todos os gêneros. Até mesmo Bob Marley e sua troupe jamaicana, que cheguei um tempo a aturar com simpatia, hoje me soa execrável, porque tem sempre alguém tentando impor para a vizinhança o som de lata do reggae, musiquinha gritada e chata. Nem falo na hecatombe cultural mundial, o rap, e na catatonia tecno.

POP - Os jogos da seleção tem impedido que eu veja direito o Meu Cunhado, no SBT (que é todo em cima da Família Trappo, com Bronco e tudo). Num desses programas (onde Golias mata a pau imitando Totó), havia uma seqüência regada pela versão brasileira de Suave é a Noite. Canção que embalou meus verdes anos nas noites de inverno, cantada por Moacir Franco. Pois o grande e genial cantor (e esforçado, e não péssimo, como já disse aqui, humorista) fazia dueto acho que com a Elza Soares, que distorcia a voz e espichava as silabas finais. Esse maneirismo já encheu. Para que se fazer de interessante na hora de cantar? Isso veio da música pop americana, que de tão pobre precisou que o ruído fosse espichado ao máximo para caber nos minutos regulamentares das canções populares. A gritaria pop, quando uma frase musical é repetida até a demência, me parece pior do que qualquer estação do inferno. Para que isso? Deixem Moacir Franco cantar como sempre. Não se trata de saudosismo, é sofisticação pura, é o Brasil de sempre entoando uma das mais belas melodias. É brega? Brega para mim é o esganiçar do vibrato final das frases musicais, acompanhado sempre de torcidinhas cool do nariz. A Leila Pinheiro, que destruiu toda a bossa nova com esse tipo de expediente, é um exemplo de como não saber cantar. A Marina, que encheu o saco nos anos 80 e 90 e graças a Deus está fora do circuito, é outra mala. Esses cantrizes e cantrozes são o exemplo do cárcere punitivo a que nos submetem pelo ouvido. Quando o alto falante da rua grita pamonhas, pamonhas, pamonhas, é sobre você que estão falando. Você é o play-ground dessa canalha. E agora ainda tem propaganda política.

FABULARIO - Mas me desviei do assunto. Por muito tempo impliquei com o Thiago de Melo porque ele abria os braços, solene, e usava aquelas batas brancas de profeta. Depois descobri que não era ele o problema, já que é um poeta que tem sua marca, com belíssimos trabalhos, como Faz escuro mas eu canto. Um homem perseguido politicamente e que nos traz a Amazônia, do Brasil soberano, merece respeito. Eu implicava com seus clones, com seus imitadores, que vinham com aquelas obras toscas intituladas fabulário, ou coisa que valha (acentuando sempre o áááriooo final), que até hoje me dão urticária. E o Thiago de Mello entra de contrabando nessa história, pois essas palavras estão mais linkadas a uma leitura tosca das boas traduções que ele fez do Pablo Neruda. Thiago traduziu Neruda e ficou abrindo os braços vestindo bata branca. Estava na dele, mas atraiu uma multidão de chatos, todos fazendo obras fabulárias. Haja saco. Saculário. Balançário. Purpuraaal. Coisas de pouetas, aqueles que estão sempre em busca do teu verdadeiro tu.

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