2 de julho de 2004

EU PODERIA SER ALGUÉM

A morte de Marlon Brando aos 80 anos nesta última meia-noite nos remete à sua cena mais famosa, praticamente sua herança mais importante: a cena em que reclama com o irmão que o obrigou a perder uma luta no clássico de Elia Kazan, Sindicato de ladrões (On the Waterfront). Eu poderia ter vencido aquela luta, pelo menos disputado de verdade e assim teria uma carreira digna e hoje não estaria na mão de bandidos, participando de assassinatos e roubos, nos diz o maior ator de todos os tempos. Sua vida foi uma saga humana de ascensão e queda. Ele nos deixa um exemplo de independência, vontade, luta e talento inigualável.

GÊNIO - Seu famoso discurso para o ator Rod Steigger é mais uma performance de gênio do que a confissão de uma derrota. É por isso, por ser a manifestação da garra lúcida de Marlon Brando, que o discurso ficou na história: "I cudda had class! I cudda been a contender! I cudda been somebody!" Eu poderia ter classe, ser um lutador, ser alguém. Mas aceitei as imposições dos que não queriam que eu cumprisse o destino, fui covarde no momento decisivo, não enfrentei o inimigo na hora certa. E o inimigo não era o meu adversário na luta que entreguei para que os outros ganhassem as apostas. Os inimigos eram esses mesmos, os jogadores que se adonaram da minha vida e hoje me tratam como lixo. A gana com que ele diz isso faz parte não só da história do cinema, mas da civilização. O que é esta vida senão a preparação, o enfrentamento e o rescaldo dessa hora fatal em que podemos decidir o destino? O filme de Kazan trata da nova chance, quando aquele que foi derrotado pela sua própria covardia tem a oportunidade de dar a volta por cima, enfrentar os tiranos e sair enfim vencedor, mesmo sabendo que jogou boa parte da sua vida fora. Eis outro motivo para a eternidade do discurso: se você encarar de frente a situação, dizer alto que perdeu aquela batalha, se souber enxergar o quanto perdeu, se não tiver a mínima piedade de si mesmo, se enfrentar seus fantasmas de cara limpa, se puder ver quem são os algozes que o levaram para o buraco, você terá a chance de resgatar a si próprio, desde que saiba a tragédia onde você vai se meter: como na primeira vez, você enfrentará a sua morte com essa decisão. Tens essa coragem? Não basta fazer o balanço do buraco onde você está metido. Não basta decidir enfrentar o horror mais uma vez. Precisa saber que, como antes, poderás morrer. Estás preparado?

LEGADO - Brando leva com ele interpretações imortais que nos fizeram saltar da cadeira, assim como Buñuel pulava diante de Antonio das Mortes. Lembro o dia em que apareceu todo fantasiado numa sessão das quatro (16 horas) no cinema de Uruguaiana e foi aplaudido de pé pela platéia deslumbrada e debochada. O filme era O grande motim e Brando extrapolou no exibicionismo. Já era então o gigolô da sua própria história, já detonava, jogava para o alto o que conseguiu com fúria. Já tinha destruído a atuação como era conhecida até então com sua magistral interpretação de um canalha violento em Um bonde chamado desejo. Já era o maior, por isso dava-se ao luxo de fazer o que bem entendesse, como extrapolar todas as despesas de uma produção, expulsar diretores para tomar o lugar deles. Decidiu até fazer um faroeste, o estranho A Face Oculta, onde passa o tempo todo explorando até o limite as possibilidades do seu rosto, do seu corpo e do seu gesto. Mas o mais impressionante ainda estava por vir. Foi quando fez O Poderoso Chefão e reiventou a profissão novamente. Todos imitam sua interpretação nesse filme, de maneira séria ou às gargalhadas. Seu sussurro manipulando pessoas e situações, suas bochechas inchadas, sua testa em V, sua concentração. Quem poderá apagar da memória essa criatura magistral? E, de lambuja, como diziam antigamente, ainda temos Apocalipse Now, em que só seu rosto dividido entre luz e sombra emitindo o som gutural da morte (o horror! o horror!) é a mais assustadora aparição de toda a história do cinema. Se houve grandeza nesta fase em que passamos sobre terra, Marlon Brando encarnou-a. E de maneira única. Parte depois de muito sofrimento. Pagou caro a conta cobrada por ter sido primus inter pares, o maior dos maiores, que deixa, sim, herdeiros, mas nenhum que chegue ou chegará aos seus pés, já que tornou-se referência. Mesmo agora, aparentemente imóvel na eternidade, jamais poderá ser alcançado por nenhum mortal. Cada vez que formos ver um filme seu, ele ficará cada vez melhor.

RETORNO - O texto acima está sendo publicado também no site La Insignia, graças ao escritor pernambucano Urariano Mota, colaborador que me apresentou ao editor, Jesus Gomez, autor de uma gentilíssima mensagem de boas vindas. É uma honra para mim estar no time de colaboradores dessa trincheira cultural e política, que merece ser visitada todos os dias.

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