31 de maio de 2017

DENSIDADE



Nei Duclós

Quisera ser mais denso
como a nuvem pesada
antes que chovas
quando carregas o rosto
em meio a dúvidas
e me perguntas em silêncio
o que jamais respondo

poderia assim molhar-te o beijo
que da janela assomas por acaso
escorrer até os pés com água escura
a que verte na gruta do teu tédio

Desejo impróprio, pura fantasia
do amor que não tem e pede espaço


PALAVRA É COMO CORPO



Nei Duclós

Palavra é como corpo
tem cicatriz de ferimento
Assim como as linhas do rosto
expressam a dor do pensamento

Não é para exibir o rumo do cruzeiro
que nos apresentamos com esta voz rouca
A roupa gasta, o passo meio bamba
e o olhar, que não enxerga tanto

É pura contingência, traida por um frouxo
de riso, uma fala manca
A falta que nos faz os que se foram

Por isso não recomendo a convivência
com quem, da guerra, se diz um veterano
Não há história que se sustente a pleno
se alguém se arriscar fora do cânone

É a solidão, fruto de quem move
uma porção de mundo, talvez sem importância
Mas que no fundo carrega o tempo longo
de um sonho humano, o amor que vinga tudo


30 de maio de 2017

COMPAREÇO



Nei Duclós

Compareço com todas as letras.
Nada deixo apodrecer nas gavetas.
Sou servo do tempo, não tenho transcendência
Aperto tua mão quando me despeço

Pertenço à nação que me viu pequeno
Cresci por acaso, mantive minha herança
Do berço trouxe a força da pertença
Sou o peregrino, cultivo a desavença
entre raiz e vento , entre o chão e a folha
Movimento a seiva em períodos de seca

Depois desapareço, fica a flor no deserto
O único rastro é o cacto na areia


28 de maio de 2017

OGRO



Nei Duclós

Todo trabalho do ogro
Em obscura oficina
Malhando durante o dia
Queimando cobre no escuro

Era para ser o encontro
Com alguém que compartilha
Hoje um acervo longínquo
Autores que se apropriam
Da atenção que ele dedica
Ao compor verso preciso

Que mistério desorienta
O que era posto em destino
Que cansaço experimenta
A musa bem definida
Ao escolher outro rumo
Depois de jurar o vinculo?

Será culpa do poema
Gestado em ambiente lúgubre
Ou a aparência do mestre
Aos cuidados da insolência?

Ele confia na sorte
E nenhum sinal escuta
O crocitar da surpresa
De tocaia em seus redutos

Quando enfim se resolve
Está só diante da lua


27 de maio de 2017

DAMOS EXEMPLO



Nei Duclós

Pequeno é o que vemos de cima
No topo da trilha, mirante em montanha
Nosso olhar é vasto no mundo mesquinho
O ar que escasseia nos inspira

No alto somos arautos da sabedoria
Repartimos a luz com quem vem da planície
Temos algo de sagrado, sacerdote e pitonisa

A ilusão se desfaz quando há poesia
E deixamos de lado toda soberba
Acendemos o fogo rodeados de magia
A que veste o espírito, não a que o condena

Abraçamos o sonho e não a maestria
Damos exemplo ao escolher o abismo


FIBRAS SOLTAS



Nei Duclós

Corte a corda e descubra
as fibras soltas em pânico
Quando se recolhem hirtas
em espirais de espasmos

Assim é a ruptura no amor
que parece firme
e amarra o laço
E quando algo interrompe
há esse redemoinho
dos momentos em comum agora sem espaço

É a contingência, mais do que o abandono
que define o fim, e nos põe na rua

Por isso perdoa quando há retorno
o que está disperso sempre se costura
Descobri que no primeiro encontro
dividimos uma senha, a mesma música