Nei Duclós
Fez sol de rachar semanas sem fim, num calor insuportável.
De molho por vários motivos, me dediquei a compor alguns poemas, no clima
sombrio de uma época bruta e de sinistra claridade. Palavras de entrega e
reação ao ambiente complicado. Puro exercício de linguagem.
MATÉRIA PRIMA
Prefiro a paisagem, que é teu gosto
a gana de ser, que nos transcende
o corpo é detalhe , o que se mostra
é o sonho que gera o próprio rosto
Vai além dos olhos, da postura
é a matéria prima que se presta
à providência, que é divina
por ser do mesmo material de espuma
COM A LITERATURA
Chego aqui com a literatura
Musa e rebento, cama e armadura
Ela te escolhe, rude companhia
A palavra dita criada em oficina
ESCUTA
Quanto menos exijo da minha arte
mais ela se solta
Não é preciso dourar a pluma
que se basta na precisão do voo
Autoria é ave criada em cativeiro
seu movimento é tosco, pé sem rumo
Tropeça por sua conta, e cria laços
Deve deixar livre o compromisso
Sou eu que faço, mas o mistério do destino
é essa criatura que se mostra
consigo mesma, como concha oculta
no mar que guarda em sua escuta
ARGAMASSA
Retribuo o aceno
o abraço virtual, puro desenho
ambiente onde projetamos a utopia
o convívio, varanda ao abrigo do sereno
O beijo também pode ser poesia
Mesmo a distância dispõe do raro acervo
A identidade humana, essa argamassa
em que, operários, repartimos tudo
PRESENÇA DO POEMA
A sóbria presença do poema
Nenhuma sombra a lhe ferir o esquema
Moldura de um aço de teimosa têmpera
que impulsiona navios afogados no peito
Perfil de sonoridade extrema
A que não se escuta mas que no tempo vence
NO EXÍLIO
Sobrevivemos às nossas certezas
que eram o mundo conhecido, hoje extinto
Notamos com pesar o desperdício
o esforço acumulado em sacrifício
Nada restou diante da ruína
que projetou sombra onde havia vida
Como sábios sem uso abandonamos manuscritos
e nos recolhemos em sítios de exilio
Garças sobrevoam a planicie
Elas forjam um poema em papel de seda
Das antigas palavras
recolhemos o dom da profecia
LONGE PERTO
Não gosto ver de perto
o enrosco da tinta
em rugas de pincel
Prefiro o que forma
no olho aberto
Na tela que conjuga
a cor e o vendaval
Se estiver longe
enxergo
a magia que íntima
se costura
CULTIVO NO ESCURO
O clima do pais mudou
já não cabe a poesia
A palavra se recolhe
no silêncio da oficina
Talvez seja sua sina
cultivar em tempo escuro
a luz que fica muda
no olhar que já não brilha
DEMORA
Demoro para responder
Acham que estou morto
Sei o que dizem
mas não me importo
Será isso a morte?
Nei Duclós
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