Nei Duclós
Orson Welles, celebrado como o mais Cult cineasta do mundo,
costumava dizer que o cinema era John Ford, John Ford e John Ford. Revendo O
homem que matou o facínora (1962), sou tentado a achar que esta obra prima
supera Rastros de Ódio. Pode ser que seja só um entusiasmo de momento. Mas são
tantas as implicações dessa história narrada com a precisão do Mestre que devemos encará-la
como séria candidata a melhor filme de todos feitos até agora (de todos os
tempos não podemos afirmar, já que não somos donos do futuro). O que deve ser
destacado entre os inúmeros vetores desse drama, escrito originalmente por
Dorothy M. Johnson (autora também de Um Homem chamado Cavalo e A árvore dos
enforcados)?
Ter sido uma autora conta para nossa abordagem.
A narrativa divide as opções da garçonete analfabeta interpretada por Vera
Miles entre o homem autêntico do oeste (John Wayne) e o advogado do Leste que
acabou levando toda a fama (James Stewart). Ford cuida de seu tema favorito: a
formação de uma nação. Para isso existe o homem da lei que quer se impor às
armas e assim se contrapõe à cultura local, mas que no final é apontado como o
matador do facínora (Lee Marvin, antológico). Ele põe o chapéu de texano, força
no sotaque que não lhe é próprio e faz carreira brilhante na política, tudo às
custas daquele que ficou na sombra e que é o verdadeiro herói de Ford.
Não é a lei, a política ou a imprensa que fazem justiça. A
lei se deixa dominar pelas armas, a política pelo pragmatismo e a imprensa pela
mentira. Há inclusive uma distorção da célebre citação sobre fato e lenda. Costumam
dizer que Ford colocou no filme o seguinte: “Quando a lenda é melhor do que o
fato, publica-se a lenda”. Não é verdade. A verdadeira frase é esta: “Aqui é o
Oeste. Quando a lenda torna-se fato, publicamos a lenda”. É uma diferença
brutal. Se nenhuma dessas instituições sagradas da América faz justiça ao homem que ficou oculto, perdeu a mulher, queimou a casa de raiva por tê-la perdido
e jamais pôde dizer que fora ele o verdadeiro autor da façanha de ter matado
Liberty Valance, quem ou o que então pode colocar tudo nos eixos?
John Ford é do ramo. Quem faz justiça é o cinema. Porque,
claro, é de cinema que se trata, não de lei, ordem ou progresso. Ford,
portanto, não se coloca a favor de filmar a lenda como se fosse fato. Ele
denuncia a lenda que se tornou fato. E cria seu próprio mito, sua obra épica
que ensina a fazer cinema em cada detalhe. A cena fatal do duelo filmada na
linha normal da narrativa e depois quando é revisitada por outro ângulo, é a
lição seminal aprendida pelos cineastas como Robert Zemeckis em De Volta para o Futuro, em
que esse recurso é usado até a exaustão. Aliás, o terceiro episódio dessa saga
é puro Liberty Valance, a começar pela performance de Tom Wilson, o vilão perfeito
que imita em detalhes o facínora Lee Marvin.
Achei estranho que Steven Spielberg tenha atribuído, em
Always, a James Stewart uma fala que é
de John Wayne (“garota, você fica mais bonita quando está brava”). Ou não
entendi direito ou foi o que no jornalismo se chama uma barriga. A derrocada
pessoal de John Wayne,mordido por ter permitido que a mulher dos seus sonhos
tenha caído no colo do adventício (pilgrim, peregrino, forasteiro), coloca esse
grande ator entre os melhores do mundo. Costuma-se fazer pouco de Wayne por ter
sido reaça e tudo mais. Mas no cinema isso não importa. O que vale é o talento
dessa presença poderosa em muitos filmes importantes.
A autora de histórias de faroeste, Dorothy M. Johnson, teve
sua narrativa revisitada pelo veterano de guerra James Warner Bellah e o
jornalista Willis Goldbeck. John Ford só trabalhava com craques na matéria. Nos
seus filmes, a chegada de um trem numa pequena cidade (imitado por Sergio
Leone, seu pupilo explícito, em Era Uma Vez no Oeste) ou o encontro de
cavaleiros no deserto se transformam em momentos assombrosos de uma história
que empolga a cada minuto. Pena que isso tudo foi abandonado. Hoje temos a
forçada fake dos falsos épicos ou a performance cool das historietas
familiares. Nada daquele cinema que ficou para sempre como modelo mais perfeito
da Sétima Arte.
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