Nei Duclós
Friends, sitcom de David Crane e Marta
Kauffman, é uma república mista de adolescentes tardios, que adiam a
maturidade protegendo mutuamente, por meio de molecagens, seus hábitos infantis
sobreviventes na sociedade do espetáculo e do consumo. Todos se unem contra
adventícios, ameaça à solidez do grupo e que podem introduzir uma cunha fatal
no comportamento neurótico, aparentemente confortável. Há uma gradação da
irresponsabilidade cultivada numa vida que deveria ser adulta.
O mais baixo escalão dessa situação limite que encantou o
público de 1993 a 2004 e é reprisada todos os dias no canal da Warner, é Ross (David
Schwimmer), que desmoraliza a formação acadêmica (é palentólogo) com uma
obsessão ególatra faminta de apoio e afirmação a cada gesto. Trapalhão, não
assume a paixão por Rachel por ser sinônimo de casamento e filhos. Circula ao
redor da amada dispersando-se em casos sem futuro e a toda hora se entregando a
regressões. Ele ainda acredita que seu cãozinho Chi chi foi realmente para o
sitio, como mentiram seus pais, e não morreu, como de fato aconteceu.
Um grau acima, igualmente naif, é Phoebe (Lisa Kudrow),
ex-menina de rua que combina uma burrice posuda com um cinismo hilário.
Pretendendo ser correta para contrabalançar seu passado de transgressões,
empresta a barriga para uma parente ter um filho e é uma espécie de guardiã do
espírito do grupo, não admitindo defecções. Acha que faz música, para desespero dos
ouvintes e finge que não vê o desconforto que causa com seu comportamento
compulsivo.
Na sequência vem Joey (Matt LeBlanc), um idiota fortudo
eternamente em testes de interpretação, que cai em tentação homossexual com
Ross como representação dessa fuga permanente da relação com consequências,
como a reprodução (pelo menos é assim que é colocado no sitcom). Joey é a
ignorância ágrafa, não lê nada e age intuitivamente, o que consolida a postura
da equipe em relação à impermeabilidade ao mundo exterior. Aparentemente todo o
grupo é in, mas no fundo formaram uma barreira que impede qualquer mudança de
atitude coletiva.
Rachel tem um pé no amadurecimento, mas a toda hora é puxada
para a infantilidade. Disputa guloseimas roubadas com outros elementos do
grupo, finge que não se abala com a ruptura com Ross, tateia uma atividade
remunerada como garçonete trapalhona do Central Perk, o bar onde todos se
encontram etc. Rachel é a bonitinha da classe e mantém seu impasse amoroso
tentando ser conselheira do amado perdido disfarçado em pura amizade. Ela
exerce o papel de convencimento grupal, de que todos estão a fim de sair
daquela situação, mas no fundo gostam e fazem tudo para permanecer no atraso.
Chandler (Matthew Perry) parece ser o
mais equilibrado, mas faz concessões a todas as cretinices dos seus
companheiros, servindo de escada para a falsidade dos namoros, até cair nos
braços da líder de Friends, a chef Monica (Courteney Cox), enfim uma relação
amorosa duradoura que rompe o círculo granítico da república interminável. É
hora de desfazer o acordo e todos vão para seu lado. Chegam os casamentos, os
filhos e a maturidade. A neurose hilária permanece como um momento da vida em
que a cidadania desfeita pelo conforto acha que pode dribar a barra pesada da
vida.
A vida não faz graça com ninguém. Não adianta se
enquadrilhar. Nem se agarrar à síndrome de Peter Pan, que se recusava a
crescer. O sucesso da série tem a ver com essa identificação com multidões
de adultos e ainda saudosos da infância. Mas também com a arte da comédia baseada em alguns
cânones. Phobe tem tudo de Stan Laurel, com seu ar permanente de pisco-ísco
poético e atrapalhado. Joey, Ross e Chandler são uma espécie de Três Patetas que
vivem grudados se agredindo mutuamente. Monica é a chance do pastelão, a
comédia tradicional que usa a comida para lambuzar a cara dos protagonistas.
Rachel é a graça da comédia romântica, que se mantém à parte de quem mais ama
exatamente por estar próximo demais, e no fim acaba se rendendo às evidências
dessa relação que parece ser de berço.
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