25 de agosto de 2014

RITO DE PASSAGEM EM ROMA




Nei Duclós

Há coisas que escapam ao autor de um filme, disse alguém num documentário sobre Stanley Kubrick que fisguei pelo exercício compulsivo do zap na TV a cabo.  Personagens que encontram saídas em momentos de desespero seria uma solução recorrente na obra do genial  cineasta. O astronauta que escapa pelo caos além de Jupiter em 2001 Uma Odisséia no Espaço, o menino que é jogado fora do hotel sinistro e que finge entrar nele marcando os passos na neve em O Iluminado, o médico que procura sair da armadilha em Olhos Fechados seriam esse detalhe comum na sucessão de obras primas.

Rever obras antigas nos dá ainda mais liberdade para enxergar o que não costumamos notar em épocas anteriores. Talvez até os detalhes que agora se tornam claros eram a intenção original do roteirista e diretor, ainda mais quando são gênios como Dalton Trumbo e William Wyler, que fizeram em 1953 essa joia que é Roman Holiday, com Gregory Peck e Audrey Hepburn. Mas vamos arriscar a ler com os olhos livres, passando por cima das inúmeras resenhas que se limitam a contar a historia do dia em que uma inocente e jovem princesa ficou 24 horas na mão de um inescrupuloso repórter veterano.

A soberba caminhada de Peck no final do filme, no ambiente majestoso do Palácio Real, se afastando do grande amor da sua vida e aguardando em vão que ela voltasse dos bastidores para abraçá-lo, revela o processo de ascensão e queda dos personagens envolvidos na armadilha do amor. Ele perdera a chance por ter mentido, mesmo que depois tenha se recomposto desistindo da reportagem. A princesa, por amá-lo, o perdoa, mas não volta para ele. Foi profunda a transformação da princesa em busca do amadurecimento, que estava exausta da velha monarquia com seus hábitos indecorosos e decadentes, onde precisava fingir de adolescente quando já era mulher feita. Ela encontrara o amor e a vida adulta nos braços do jornalista que a engana com um passeio que no fim era uma reportagem, um furo.Ele desperta, tarde demais, para o que sempre quis evitar: o sentimento. Ele também se transforma, mas tinha deixado escapar a oportunidade de viver a verdadeira nobreza, o amor.

O sentimento, laço no relacionamento entre pessoas, é mais importante do que os laços que unem os países, diz a princesa depois que volta da sua experiência, do seu rito de passagem . Ter dormido com o pijama no apartamento dele, sozinha pela primeira vez com um homem, tomar banho e ser xingada pela faxineira que a confundiu com garota de programa, fazem parte de um jogo sutil que o cinema perdeu nas ultimas décadas. O que temos hoje não é a sutileza das sugestões, mas o jogo bruto dos mecanismos sexuais entre todo tipo de agrupamento humano.

A corte (ou assédio) dos homens ao redor da belíssima mulher (Hepburn, absoluta rainha), a determinação dela de sair da casca e misturar-se ao povo, se livrando da herança que a engessava em roupas e hábitos torturantes, Roma em seu esplendor de monumentos e lugares onde todos se divertem, formam o encanto desse filme que trabalha uma diferença importante na abordagem da imprensa. A reportagem oculta do jornalista americano que finge apenas fazer as vontades de lazer da princesa, com o objetvo de faturar 5 mil dólares vendendo a matéria para uma agência de notícias, é no fundo o jornalismo que mergulha fora da aparência e captura o verdadeiro perfil da pessoa entrevistada. Enquanto a pompa da entrevista coletiva oficial da princesa para a nata do jornalismo mundial, no palácio, é apenas um amontoado de lugares comuns sobre política e comportamento.

Mas há também outro cruzamento. A garota espontânea que se revela para o repórter sacana amadurece e pontifica, na coletiva, sobre assuntos densos de uma maneira equilibrada. O bom senso da futura monarca, agora dona de si, contrasta com a desequilibrada adolescente que tornou-se madura num salto quântico pelas ruas de Roma e no súbito amor que veio junto. A reportagem casual revelando os bastidores de uma celebridade versus a declaração oficial da futura estadista a favor da harmonia entre as nações. Muitas leituras nesta obra encantadora em que Trumbo escreveu mas não levou o crédito por estar sendo perseguido pelo macartismo. E que Wyler vestiu de gala para ficar eterna e chegar até nós intacta em sua riqueza e diversidade.

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