10 de agosto de 2014

MEU PAI EM OURO PRETO



Nei Duclós

Soube tardiamente, quando fiz companhia a meu pai viúvo num insuportável verão da fronteira, que ele um dia tinha fugido para Ouro Preto. O motivo: era caçado por poderoso chefão de cidade vizinha à minha, pois cometera crime de alta traição. Moço muito bem apanhado, o garoto sentava praça na Brigada Militar, a força estadual gaúcha, aos 17 anos, mentindo que tinha 18. O “gato” (como diz a gíria futebolística) se justificava. Era preciso urgentemente para o ex-menino, pobre como Jó, um soldo e roupa, e como isto era escasso lá por perto de 1930, a Brigada servia, não só pelo rancho farto e o salário religiosamente pago, como também pelo uniforme de vistosos botões, que partia corações do mulherio carente daqueles ermos.

E onde está a traição? Já conto. Como já acontecia naquele tempo, o rapaz fora desviado de suas funções constitucionais para prestar serviço a um magano plenipotenciário, daqueles temidos, treme terra, que usava chapelão e capa até os pés, numa pré-estréia de Antonio das Mortes e dos seus desdobramentos, os vilões dos faroestes italianos de Sergio Leone, que chupou a idéia de Glauber. Pois bem, qual era o serviço? Ser motorista full time da grande beldade da cidade, o mulherão que ao ser descoberta pela gauchada endinheirada, acabou colhida com exclusividade por quem detinha cutelo e mando e, por tabela, a dose mais maciça de testosterona – pelo menos era o que aparentava.

Nem tanto. Bastou o sujeito se distrair com seus negócios, que não deveriam primar pela honestidade, para que o mulherão que vivia debalde em função de um único admirador, se engraçasse com o guri que estava tão próximo dela e detinha rosto sedutor e fino bigodinho. O mais atraente, imagino, é que ele fazia mais sucesso do que ela, a sétima maravilha tão cobiçada, nos caminhos de carro entre a casa de luxo montada em sua honra e as lojas de roupas caras no centro da cidade. Despeitada, talvez (não tenho detalhes, pois meu pai não me confidenciava nada) por esse sucesso, somada à falta do que fazer, a gataça deu em cima do menino. Este, não se fez de rogado e acabou engravidando o portento, para escândalo da sociedade local e dos bastidores da política e do judiciário, incluindo ricaços do estrangeiro, se é que argentinos e uruguaios possam ser considerados estrangeiros naquelas bandas.


Perseguido por capangas pelas ruas ermas e invernosas daquele lugar fatídico, meu futuro pai, então na flor da mocidade, decidiu escafeder-se no melhor estilo eternizado por Borges de Medeiros, o governador que imperou por décadas no Rio Grande do Sul: nem tão depressa que parecesse medo e não tão devagar que fosse encarado como provocação. E lá se foi ele Brasil afora e não sei porque cargas d´água acabou em Ouro Preto, talvez porque a jóia mineira fosse o exemplo mais bem acabado de lugar perdido nos confins do Brasil profundo, absolutamente oposto a tudo o que lembrava os redutos onde a cabeça do desavergonhado estava a prêmio.

Não se pode dizer que, por acidente, quase nasci mineiro, porque certamente meu pai se encantaria por uma pastora, musa inspiradora de árcades, e não por minha mãe, professora e funcionária pública de olhinhos puxados que fisgaram o conquistador para sempre.  Mas só sei que ficou por lá dois longos anos e desconheço, ou não me lembro, o que fazia para sobreviver, já que suas habilidades ainda estavam todas em potencial. Uma delas, a que se consolidou, foi a de próspero empreendedor cheio de idéias originais, como inventar um bazar que fazia a alegria dos correntinos com suas tralhas de pesca, anzóis, caniços, armas, tesouras, garrafas térmicas e cadeirinhas de alumínio de armar, uma novidade na época, excelente para a praia, que era para onde a argentinada se dirigia ao cruzar a fronteira.

Quando a poeira baixou, possivelmente porque o chefão tenha perdido seu cacife, meu pai voltou e radicou-se na cidade vizinha, onde nasci, a 200 quilômetros do crime perpetrado pela fraqueza da carne.  Foi quando soube que tinha uma filha, minha meia irmã, que Deus a tenha. Foi isso que realmente desencadeou a ira do chefão, pois o crime de alta traição tinha deixado rastro. Por esse detalhe tão importante, talvez, meu pai jamais tinha nos contado a história com todas as letras. Era para preservar o rebento, que acabou se formando em odontologia e morou sempre na capital do meu estado, com parentes nossos. Mas depois da morte da minha mãe, ficamos mais próximos e ele perdeu aquela ostentação de indiferença que me invocava, mas era apenas o aplomb de autoridade paterna, necessária para quem criou sete filhos com a mulher que levou ao altar, e mais a garota gerada na solteirice.

Meu pai era uma dessas figuras de grande presença nas ruas e casas. Com seu terno de linho, cabelo penteado para trás, sapato de verniz branco e marrom e um providencial 32 no bolso de paletó, era respeitadíssimo, não porque tivesse cutelo e mando, mas porque era simples, direto, franco e leal. Um homem que ao se for deixou saudade não só na família, mas nos protagonistas da cidade, que até hoje lhe prestam homenagens. Grande pai, que Deus também levou e que me outorgou a conduta da integridade para, quando houvesse chance, desmoralizar o poder que se impõe pela força , a injustiça e a crueldade.

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