Nei Duclós
Soube tardiamente, quando fiz companhia a meu pai viúvo num
insuportável verão da fronteira, que ele um dia tinha fugido para Ouro Preto. O
motivo: era caçado por poderoso chefão de cidade vizinha à minha, pois cometera
crime de alta traição. Moço muito bem apanhado, o garoto sentava praça na
Brigada Militar, a força estadual gaúcha, aos 17 anos, mentindo que tinha 18. O
“gato” (como diz a gíria futebolística) se justificava. Era preciso
urgentemente para o ex-menino, pobre como Jó, um soldo e roupa, e como isto era
escasso lá por perto de 1930, a Brigada servia, não só pelo rancho farto e o salário
religiosamente pago, como também pelo uniforme de vistosos botões, que partia
corações do mulherio carente daqueles ermos.
E onde está a traição? Já conto. Como já acontecia naquele
tempo, o rapaz fora desviado de suas funções constitucionais para prestar
serviço a um magano plenipotenciário, daqueles temidos, treme terra, que usava
chapelão e capa até os pés, numa pré-estréia de Antonio das Mortes e dos seus
desdobramentos, os vilões dos faroestes italianos de Sergio Leone, que chupou a
idéia de Glauber. Pois bem, qual era o serviço? Ser motorista full time da grande beldade da cidade, o
mulherão que ao ser descoberta pela gauchada endinheirada, acabou colhida com
exclusividade por quem detinha cutelo e mando e, por tabela, a dose mais maciça
de testosterona – pelo menos era o que aparentava.
Nem tanto. Bastou o sujeito se distrair com seus negócios,
que não deveriam primar pela honestidade, para que o mulherão que vivia debalde
em função de um único admirador, se engraçasse com o guri que estava tão
próximo dela e detinha rosto sedutor e fino bigodinho. O mais atraente, imagino,
é que ele fazia mais sucesso do que ela, a sétima maravilha tão cobiçada, nos
caminhos de carro entre a casa de luxo montada em sua honra e as lojas de
roupas caras no centro da cidade. Despeitada, talvez (não tenho detalhes, pois
meu pai não me confidenciava nada) por esse sucesso, somada à falta do que
fazer, a gataça deu em cima do menino. Este, não se fez de rogado e acabou
engravidando o portento, para escândalo da sociedade local e dos bastidores da
política e do judiciário, incluindo ricaços do estrangeiro, se é que argentinos
e uruguaios possam ser considerados estrangeiros naquelas bandas.
Perseguido por capangas pelas ruas ermas e invernosas
daquele lugar fatídico, meu futuro pai, então na flor da mocidade, decidiu
escafeder-se no melhor estilo eternizado por Borges de Medeiros, o governador
que imperou por décadas no Rio Grande do Sul: nem tão depressa que parecesse
medo e não tão devagar que fosse encarado como provocação. E lá se foi ele
Brasil afora e não sei porque cargas d´água acabou em Ouro Preto, talvez porque
a jóia mineira fosse o exemplo mais bem acabado de lugar perdido nos confins do
Brasil profundo, absolutamente oposto a tudo o que lembrava os redutos onde a
cabeça do desavergonhado estava a prêmio.
Não se pode dizer que, por acidente, quase nasci mineiro,
porque certamente meu pai se encantaria por uma pastora, musa inspiradora de
árcades, e não por minha mãe, professora e funcionária pública de olhinhos
puxados que fisgaram o conquistador para sempre. Mas só sei que ficou por lá dois longos anos
e desconheço, ou não me lembro, o que fazia para sobreviver, já que suas
habilidades ainda estavam todas em potencial. Uma delas, a que se consolidou, foi
a de próspero empreendedor cheio de idéias originais, como inventar um bazar
que fazia a alegria dos correntinos com suas tralhas de pesca, anzóis, caniços,
armas, tesouras, garrafas térmicas e cadeirinhas de alumínio de armar, uma
novidade na época, excelente para a praia, que era para onde a argentinada se
dirigia ao cruzar a fronteira.
Quando a poeira baixou, possivelmente porque o chefão tenha
perdido seu cacife, meu pai voltou e radicou-se na cidade vizinha, onde nasci,
a 200 quilômetros do crime perpetrado pela fraqueza da carne. Foi quando soube que tinha uma filha, minha
meia irmã, que Deus a tenha. Foi isso que realmente desencadeou a ira do
chefão, pois o crime de alta traição tinha deixado rastro. Por esse detalhe tão
importante, talvez, meu pai jamais tinha nos contado a história com todas as
letras. Era para preservar o rebento, que acabou se formando em odontologia e
morou sempre na capital do meu estado, com parentes nossos. Mas depois da morte
da minha mãe, ficamos mais próximos e ele perdeu aquela ostentação de
indiferença que me invocava, mas era apenas o aplomb de autoridade paterna, necessária para quem criou sete
filhos com a mulher que levou ao altar, e mais a garota gerada na solteirice.
Meu pai era uma dessas figuras de grande presença nas ruas e
casas. Com seu terno de linho, cabelo penteado para trás, sapato de verniz
branco e marrom e um providencial 32 no bolso de paletó, era respeitadíssimo,
não porque tivesse cutelo e mando, mas porque era simples, direto, franco e
leal. Um homem que ao se for deixou saudade não só na família, mas nos protagonistas
da cidade, que até hoje lhe prestam homenagens. Grande pai, que Deus também
levou e que me outorgou a conduta da integridade para, quando houvesse chance,
desmoralizar o poder que se impõe pela força , a injustiça e a crueldade.
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