12 de abril de 2013

A MORTE DAS ESTRELAS




Nei Duclós

Toda vez que um de nós se acidentava – e isso ocorria a toda hora, principalmente comigo – minha mãe se justificava ao entrar no Hospital de Caridade (hoje em franco processo de desmonte em todo país, com objetivos torpes de privatização): “Eles nascem certinhos, doutor, mas aí ficam se estragando”, dizia ela. E me costuravam, deixando terríveis cicatrizes. Era o fim da lisura com a qual vim ao mundo. Eu já adquiria rugas na pele que iria degringolar ao longo da vida.


É mais ou menos isso que acontece no mundo. Não é por acaso que sentimos falta dos bons velhos tempos, que são sempre paradigmas. É que o universo, por natureza, é um processo de decadência, desconstrução permanente. Do Paraíso ao Apocalipse, do nascimento à morte, a lógica do sistema é exatamente essa: perder os atributos naturais e entrar em franca dissolução.  Para compensar tamanha tragédia, costumávamos imaginar um futuro utópico,que mais ou menos reproduziria o ambiente do início dos tempos. Hoje, vivendo o futuro que imaginávamos, a da família Jetson, vemos que ele não presta quanto qualquer outra época. O conforto, a paz, a harmonia, a tranquilidade em oposição ao caos e à queda, está tanto no início quanto estaria no fim, só que só num deles é real – no começo de tudo, já que o fim sabemos do que se trata.
Esse é o fato: não sabemos como era realmente no início e jamais saberemos como será no futuro, mesmo acertando várias previsões. Por isso fantasiamos, esquecendo que nossa infância também faz parte desse descenso humano. O que era perfeito para nós, que víamos tudo pela primeira vez, não passa de um truque dos sentidos: a primeira infância é quando enxergamos de fato, já que depois nossos olhos só lembram desse impacto. Ficamos cegos o resto do tempo. Mas imaginamos nosso passado como se tudo estivesse no lugar: a casa generosa que a todos acolhia, a família numerosa de inúmeras atividades, o quintal de canteiros e brincadeiras inesquecíveis, as reuniões dançantes onde podíamos agarrar as beldades da cidade, os filmaços que nos deslumbravam com os eventos do mundo próximo-distante, e assim por diante. Depois, nada ficou igual, perdeu o sabor e o sentido, mesmo que a mocidade tenha nos pregado boas peças, algumas ótimas.

Por um tempo nos enganamos de que tudo é obsoleto. Quando estamos na faixa dos 20 aos 50, fazemos parte da ilusão maior que é o presente desvinculado de todas as amarras. Mas basta sobreviver à tempestade para, a partir dos 60, procurarmos voltar para reencontrar a perfeição perdida. É inútil, pois nossos olhos não conseguem mais recuperar a emoção dos amores à primeira vista.

A arte e a literatura são os truques mais evidentes para instauramos outro tipo de Criação, tão perfeito quando seus modelos. Inventamos nações, pessoas, situações, histórias e despertamos o assombro das almas ainda intactas por meio das palavras, cores, formas. Na cultura clássica, a exuberância dos quadros e dos livros eram a imagem e semelhança do Genesis de um deus, o autor, o artista, onipotente, que sobrava em suas invenções. Com as vanguardas do século 20, que desbastavam os excessos em favor de uma arte e uma literatra mínimas, procurou-se a autenticidade de um presente que é sempre frustrante.

Vivemos hoje no impasse entre resgatar a hegemonia das criações que sobram em grandeza e beleza, a opção mais atenta à experiência humana, escassa, precisa, contundente e radical. Dá para servir aos dois senhores? É possível combinar o claro / escuro nessas duas pontas de um novelo complicado? Seja qual for a resposta, a verdade é que continuamos em direção à morte das estrelas, prevista pelos físicos.

É quando nem o pó restará e nossa memória deixará até de ser um suspiro na paisagem zerada. Estaremos assim cumprindo o destino dessa loucura que é a trajetória entre a perfeição e a decadência, entre nascimento e morte. De seres precisos, viramos seres imprecisos. Navegar tem necessidade dessa precisão, dessa certeza, dessa matemática, dessa música das esferas. Viver sofre essa imprecisão do caos que se esgarça até virarmos o ponto final de uma crônica absurda.