15 de janeiro de 2012

GOGOL: A HIERARQUIA SOCIAL NA ORIGEM DA INSÂNIA


Nei Duclós

No extraordinário Diário de um louco, de Gogol (1809 – 1852), funcionário público pobre e medíocre faz um esforço para se adaptar à irracionalidade da hierarquia social por meio da lógica das representações. Ter um título de nobreza, casar coma filha do chefe, usar uniforme de general são objetivos que poderão levá-lo à superação da sua situação miserável . Mas ele se defronta com círculos concêntricos indevassáveis de poder: a caratonha inflexível e muda do manda-chuva, a perseguição do chefe de seção, o cerco bocejante dos outros funcionários que procuram cair nas boas graças do topo da pirâmide, a superficialidade e indiferença da donzela rica que o pobretão cobiça para subir na vida.

Ele assim transgride a lógica oficial por meio de seu próprio raciocínio e percepção desvairada. Sente-se superior por pretensamente pertencer à nobreza. Vai atrás de informações valiosas sobre a beldade devassando a correspondência dos seus cachorros, e não há nada mais hilário e impactante na literatura mundial do que a leitura dessas cartas miúdas que acabam sendo rasgadas furiosamente pelo protagonista, que se vê retratado nelas de maneira ridícula. Imagina-se com um uniforme de gala trespassado por faixa azul do generalato. Convence-se que é o rei da Espanha no trono que está vago e por isso confecciona um manto com suas roupas puídas e fora de moda.

O insano está pleno de si, pois tem bases sólidas para pensar assim. Ele vê que há corrupção generalizada nos trâmites dos papéis burocráticos. No fundo debocha da falsa erudição do chefe, que ostenta grossos volumes estrangeiros que jamais lê. Sabe que a coquete não passa de um frívola ignorante que só se preocupa com roupas caras e a vida mundana das festas. Todo o edifício social está fundado em mentiras e seria o único a dizer a verdade? Ele apenas guarda para si as revelações que saltam a seus olhos e reviram seu mundo interior, já que obedece a um circuito criminoso de divisão de renda. Se faz parte dessa loucura, porque não atingir um patamar superior? Isso lhe parece justo.

Ao se insubordinar contra a injustiça, vendo que toda sua argumentação bate de frente no muro que a riqueza levantou para se separar da pobreza, ele opta pela transgressão,único caminho que poderá levar sua ilusão a uma realidade. Acaba no hospício, onde é tratado a chicote e aos pontapés. Mas ele vê a nova moradia como a própria Espanha sobre a qual deve reinar e os castigos físicos como rituais tradicionais de iniciação ao trono. A megalomania, que é a metástase do ego desencadeada pela sedução dos poderes, o devora até sua mais íntima condição, a de filho desamparado.

É implorando proteção da sua mãe que o funcionário público medíocre termina seu diário, depois de não conseguir romper os pesados níveis da estratificação social. O engessamento granítico faz parte do sistema. Lembro dois exemplos recorrentes. O de Charles Chaplin, que foi tratado como inferior socialmente na Inglaterra para onde voltou para uma visita que imaginava gloriosa, pois tinha ficado milionário. E o do Poderoso Chefão III, em que o mafioso descobre que é apenas laranja de uma máfia maior e que manda no mundo.

Gogol, que faz parte da assombrosa safra de geniais escritores russos do século 19, é nosso contemporâneo.

RETORNO - 1. Li Diário de um louco na seleta Obras Primas do Conto Russo, da Livraria Martins Editora, numa edição de 1964. 2. Imagem desta edição: retrato de Gogol, tirei daqui.

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