8 de janeiro de 2011

METALÍNGUA: O SEGREDO DA PEDRA


Nei Duclós

Poesia sofre de solidão, por isso se cumprimenta, aperta a própria mão num ritual aparentemente insano. Ou, como diz o poeta Alexandre Brito (Porto Alegre, 1959) no seu livro Metalíngua (Éblis, 29 pgs.): “Morde a si mesma com as gengivas de um velho diabo”. A metáfora é perfeita: desde as vanguardas do século 20, da lingüística, do estruturalismo, do concretismo, práxis etc. a poesia deixou de ser veículo de sentimentos, aventuras, discursos para ser apenas palavra diante do espelho. O hábito gastou os dentes da mágica, que insiste na pergunta: existe alguém mais bela do que eu? Sim, diz a imagem, existe, mas você, língua canônica, que se imagina completa pois abarca também as transgressões, não tem acesso.

É lá, na “fissura, a fresta, o desvio”, que a imprecisão do branco aguarda o lusco-fusco da escrita, compondo um “crepuscular alvorecer”. Na porta entre os mundos, o poeta tenta capturar o que não existe, e que não oferece enigmas. Lá, onde “o cerne de um talvez” é “feito de silêncio e sal”. Missão imponderável? Seria, se o poeta emudecesse com o desafio. Como professa, se entrega confiando que possa sentir além dos cinco sentidos, ele rasura uma “poética de arestas”, que funciona como “protuberância viva no desmesuradamente plano/a parte invisível do infinitamente dentro/ o quinto lado do triângulo”.

Qual o resultado dessa investida, quando o poeta cruza o umbral do impossível de ser percebido, apenas imaginado ( única liberdade da percepção)? Acontece o encontro do que não busca, ou seja “a palavra exata” ou “a liberdade selvagem do lobo/ instinto que se quer arte/perfeição do ovo”. Como pode encontrar sem buscar? Porque seria uma farsa procurar o que se espera nesse jogo bruto da palavra mordendo a própria cauda. É preciso abrir mão inclusive da surpresa, que em tese faria parte da “caligrafia do imaginário”. E palmilhar a sobra do mapa, onde o mistério mistura harpia e fósforo.

Alguns poemas atingem o alvo desse carrossel em buraco negro, permitindo que o poeta siga a pista dos “sulcos da caneta na página em branco” para resgatar o poema posto fora. Obra feita de ausências, que encarnam o indizível no ato de “virar uma esquina pelo avesso”, Metalíngua contém sua própria auto-realização. Não apenas nos poemas que pendem entre a pensata e o achado, mas também no posfácio, a cargo de outro militante dessa transvanguarda do século 21, Ronald Augusto. Ronald, autor de obra poética significativa, vê sincronicidade num trabalho que deixou de ser há tempos diacrônico, deixou de pertencer ao tempo para ocupar o espaço, simultaneamente com a escassez e o derramamento, sem a intenção de resgatar o que foi perdido ou deixado de lado na saga da poesia contemporânea.

Não é complicado. Basta ler o pequeno livro mais de uma vez e deixar-se envolver por “certos poemas”, que “são as pegadas de um naufrágio/nas areias do deserto de uma/ampulheta”. Trata-se de poesia autóctene, que não faz parte de espólios, mas apresenta-se encantada por uma linhagem, a do autor que não sossega e foi “cravar sua letra/ na pele de uma página/na bala de um obus/ no lombo de um desassossego”. Autor que enxerga a língua como uma “pedra feita de letras”, isolada, silenciosa, irregular, imóvel, indiferente.

É um objeto não catalogável, que não serve para “peso sobre papel”, nem “quebrará vidraças”. Mas convém, avisa o poeta, não subestimá-la.

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