11 de setembro de 2010

O TÚNEL


Nei Duclós (*)

Olho da varanda as pinceladas de nuvens escarlates, fiapos têxteis de açúcar, que raspam o chão celeste preparando-o para o anoitecer. É tênue essa divisória entre o verbo encarnado, espesso no espírito desatento, e o discurso, explícito nas ondas que chegam em forma de luzes em telas planas e côncavas, arrebentando os portões dos tímpanos, da paciência, do tempo. Envolvidos com a brutalidade do jogo duro, olhamos com desconfiança o som do poema, enredando-se como lã recém-nascida na pauta farpada dos arames.

O fato é que as palavras jamais se submetem aos nossos caprichos se não colocarmos os sentidos no lugar certo. Elas esvoaçam, traiçoeiras, enganando-nos com suas luzes de néon nacarado, pegajoso e triunfante. Proferimos frases como se fossem nossas, mas são apenas rebotalhos de bordados que a Musa, mãe da palavra, escolhe para seus enfeites. Precisamos olhar mais para o piso, onde está sandália de couro evolvendo o pé de uma fada, uma ninfa, um esconde-esconde de duendes. Devemos ter cuidado, pois acreditarão que deliramos e poderão nos internar, nós, os fabricantes de pó.

Porque é aéreo esse olhar dos meninos viajantes, os que ficam quietos no canto enquanto a algazarra toma conta do trem. Eles estão diante do enigma que é o vidro que transparece o pampa no outro lado da cerca e as imagens refletidas de personagens que os acompanham, todos pesarosos com os gritos da mocidade. Lá está a senhora de preto com chapéu redondo, compenetrada, tendo um véu marrom sobre a face de crisálida. Ou o comerciante que vai ver o filho juiz de direito numa roça qualquer aos pés das coxilhas.

Um dos garotos recolhidos estranha essas visões do passado, já que pertence à loucura que toma conta do ambiente, colegas fardados de calça curta azul marinho e camisa branca de mangas compridas. Ele passa a mão na gomina do cabelo e empurra o amigo que tenta levá-lo para o perigo, a plataforma onde ruge o monstro do trem em movimento. Mas ele quer continuar só, pois acreditou no guarda-volumes, que na estação assustou-o com a possibilidade de um túnel. Bobagem, disseram para ele, vagão não é tatu para andar debaixo da terra.

Mas ele sabe que virá. O arco da abnegação devota lhe enforcará os olhos e ele entrará naquele cilindro escuro, onde pontificam os fantasmas definitivos. Sou a Confusão, dirá um, e eu o Ideal, dirá outro. Vim para te arrastar nas corredeiras, diz a Aventura. Quero te mostrar uma coisa, segreda o João Ninguém. O menino aguarda esse momento com o terço na mão e já não escuta os solavancos da gurizada em festa. Ele está concentrado no que as palavras lhe revelam por meio de estalos, sinos, ruflar de folhas, penar de rostos vilanizados.

Quando enfim o trem sair para a luz, ele terá o pânico de ver o céu sendo pincelado por fiapos de púrpura, pois o mundo estará pronto para se desvencilhar do dia. A noite então, mortal e misteriosa, o atrairá com suas grandes abas. Mas ele não adormecerá, pois dentro de si ganhou de presente a chave que decifra a charada do verbo feito tambor, pétala que silencia.

RETORNO - (*)Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana

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