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Ao contrário de hoje, em que nenhum personagem é normal e todos cometem assassinatos impunemente em frente às câmaras e riem de maneira doente, em décadas passadas o cinema costumava curar a psicopatia. É o caso de Spellbound (Quando fala o coração , 1945), de Hitchcock, em que Ingrid Bergman é a psiquiatra que prova a inocência do amado Gregory Peck ao investigar as causas do seu desequilíbrio mental. A psiquiatria aí serve apenas como escada para uma história policial, em que o assassino é descoberto no final pela dedução da médica. Mas isso não é relevante. O que importa num filme é como ele se relaciona com o cinema e não com psicanálise, a História ou a literatura.
Existem muitas sintonias entre os grandes cineastas. É ponto pacífico que Cidadão Kane (1941), uma revolução na montagem, no uso da câmara, na iluminação, bebeu muito em Rebecca (1940). São dois filmes separados por um ano de realização. E há muito Kane em Spellbound. Costuma-se falar de clima, lentes, iluminação etc. Prefiro falar sobre cinema.
Em Spellbound, o mestre do suspense coloca o principal personagem do gênio Orson Welles no divã. Sim, Hitchcok analisa Cidadão Kane. Forçado? Sim, se levarmos em consideração a diferença brutal entre os dois personagens, o suspeito de Hitch e o magnata de Welles. O que um tem a ver com outro? Cinema. Se virmos duas cenas, uma em cada filme, saberemos como se relacionam. Inclusive possuem imagens quase idênticas: a do menino num trenó.
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A culpa e o assassinato travam a mente de Peck, que começa a sofrer de amnésia. Kane também tinha perdido contato com esse universo soterrado e só volta a ele quando já está condenado. Mas Peck tem a maravilhosa Bergman ao seu lado, lutando por ele. A vantagem é assombrosa. Quem resiste lutar para se curar e assim poder cair nos braços de uma criatura dessas? Kane só tinha uma amante frívola. Ninguém o salvou da derrocada e nem lhe deu a mão para resgatar sua vida. Foi-se lamentando a perda remota, que marcou sua existência. O suspeito de Hitchcock teve sorte e contou com apoio para poder estocar as cenas que o traumatizaram e assim pôde exorcizá-las.
É muito otimismo, pois sabemos que psicopatia tomou conta do mundo e hoje as sociedades globalizadas precisam de matadores e corruptos para fazer o serviço sujo. Acabou a época em que havia o conceito de normalidade. Foi-se embora o personagem muito comum desse tempo, o do policial honesto, modelo de uma sociedade organizada, que ajudava a recolocar as coisas no lugar. Havia a ingenuidade policial, mas não a brutalidade mental como temos a partir talvez de Callagham, de Clint/Siegel., dos 007, dos Mel Gibson, dos Missões Impossíveis etc. Temos Cage, Damon ou Denzel fazendo papel dos precários homens da lei a serviço da morte. Não podemos mais aspirar à cura. Isso é coisa do passado. Não há esperança no ser humano. Sabemos que somos assim mesmo. Ou, pelo menos, nos convencemos disso.
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O mundo hoje é mais Kane e seu momento terminal. E não a lua-de-mel de Gregory Peck, considerado o maior ator de todos os tempos em 1999 pelo American Film Institute, ganhador de cinco Oscar, e a magnífica Ingrid Bergman, a inesquecível. Como diz Cecília Meirelles no seu verso sempre lembrado: “Em que espelho ficou perdida a minha face?” Acho que foi nesse espelho, o dos filmes fundamentais do século 20. Lá, mora nosso rosto esquecido, Rosebud cravado no coração ainda humano.
Por isso respondo sempre da mesma forma a eterna pergunta: O que fizemos de nossas vidas? Fomos ao cinema.
RETORNO - O poeta Ronald Augusto colocou no Twitter ( @ronaldpoesiapau) o seguinte comentário sobre este ensaio: "Lindo texto sobre hitch e welles, leitura comparativa forçada e genial; coisa de quem vai ao cinema com ganas de ganhar e perder". Falei (@neiduclos) para ele que "poeta sempre entende primeiro". Grande Ronald.
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