Nei Duclós
Encontrei o Amigo inteiro, instalado na Outra Vida. Ele já estava por volta de 40 anos, apesar de ter sido assassinado aos 26. No sonho, ou visão, segurava um grande chapéu de abas exageradas. Colocava a mão no alto, com o braço bem espichado, impedindo que o vento levasse para longe aquela monstruosidade. Estava cercado, como sempre, de várias pessoas. Parece que o grupo ocupava um conversível de luxo. Ele me olhou com o rosto impassível. O olhar era límpido, claro, solene, mas ao mesmo tempo expressava certa indiferença. Era, talvez, seu recado de superioridade diante de tanto mistério.
Ele sempre foi assim. Jamais se deixou abalar por coisa nenhuma. Pelo menos, não por muito tempo. Era suscetível, mas se reaprumava logo. Um dia veio me tirar da minha catatonia no quarto onde morava. Esparramado na minha cama, num calor insuportável, eu dormia ao lado da caixa preta que encerrava um tesouro: a máquina de escrever Smith Corona herdada do meu pai.
Correra o risco de perdê-la, quando o namorado da dona do lugar – um sujeito retaco, gringo, grosso e canalha – me pediu para usar a máquina. Era para vender, mas foi proibido pela mulher que entrou em desespero diante da minha credulidade. Eu realmente acreditara que o sujeito iria escrever algo. Além do mais, o escroque tinha um olhar gelado, azul e uma boca torcida. Mas graças à proprietária que não queria perder o hóspede, mantive a prenda em meu poder.
O Amigo veio me acordar batendo na janela. Queria me mostrar o estrago que sua namorada, agora ex, tinha feito no apartamento. Rato, porco, estava escrito a carvão em letras garrafais. Era a separação, mais uma, do conquistador serial, que deixava um rastro de corações partidos pelo caminho. Foi nesse apartamento pincelado pela dor do amor não mais correspondido, que o encontrei pela última vez. Bati na porta, ele abriu a janelinha de vidro e fez uma cara de desencanto, que era a nossa maneira de nos cumprimentar (pois, caras da fronteira como nós, jamais dão o braço a torcer para quem quer que seja, especialmente os amigos do peito). Era uma espécie de “que gente mandou o governo!” que meu pai usava para seus companheiros de pescaria. Ou seja, estamos bem por aqui, o que você veio atrapalhar? Depois desse anti-cumprimento, sempre havia a alegria do reencontro.
Saímos pela cidade, que estava forrada de out-doors estampando uma pessoa muito próxima e conhecida. Era ele. Fazia a pose que usávamos quando nos tiravam a foto do colégio. Sentado, com um leve sorriso, as mãos para frente, depositadas em cima da mesa, o Amigo olhava para a posteridade como se fosse um superstar. Estou me despedindo daqui, disse ele. Nada melhor do que deixar meu rosto pelas ruas.
Soube depois da tragédia, de maneira fortuita, conversando numa lanchonete com nossa amiga comum, que me deu a notícia. Chocado, procurei mais detalhes na imprensa da cidade da qual o Amigo se despedira de maneira tão explícita. Havia pouca coisa. Um revólver, um suposto suicídio. Tanta vida para se jogar fora assim? Ainda mais ele, que tinha vida saindo pelo ladrão. A reportagem só dispunha da foto da identidade. E foi com ela, tomando conta de quase toda a página (para compensar a falta de informação) que travei contato com o Amigo pela última vez.
Com exceção, claro, da visão que tive, da cena do grande chapéu do quarentão rodeado pelo seu grupo no conversível de luxo. Descobri que o espírito mantém a trajetória da vida e vai em frente, como se não tivesse havido ruptura. O que terá vivido nestas décadas todas? Estivera na queda do muro de Berlim? Assinara, quem sabe, um grande projeto de arquitetura numa das porções ricas da África? Estaria mesmo vivo aquele que se foi cedo demais?
Se alguém de nós sobreviveu, dessa geração nascida para o massacre, foi para contar a história. Ah, a sina dos narradores sem esperança, os que permanecem à tona, frios como um candelabro no inverno de um romance de segunda. Quem dera não tivéssemos tanta perda e não precisássemos lembrar os amigos que se foram numa poeira de nuvem, que o tempo traga com seus pulmões de ferro.
RETORNO - Conto publicado neste fim-de-semana no caderno Donna DC, do Diário Catrarinense. Também foi publicado, com algumas modificações, na edição deste mês do Jornal Vaia, de Porto Alegre.
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