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8 de maio de 2006
VINÍCIUS DE MORAES: A SÍNTESE DA PAIXÃO MORENA
Nei Duclós
Soneto é paradoxo: apesar do destino traçado em quatro estrofes, se desdobra. Quer tocar o outro lado, sem perder a forma. Por isso seu capricho é repetir-se dizendo coisas novas. Território ideal para Vinícius de Moraes, poeta plural que no início de carreira possuía de herança apenas a letra morta de antigos sonetos: amada noturna, de carne branca ao luar, imutável e única. Clima de culpa, doença, desmaio, fastio. Um fardo romântico de palavras funcionando como um baú de ossos: pálida, fria, lúbrica, devoção.
Desarrumar esse espólio com algumas provocações foi sua grande emoção aos 24 anos. Em 1937 começou a rimar ciúme com estrume, bela com cadela (1). Procurou enfrentar o paradoxo: amor, se é fugaz, pode ser profundo? Se o presente é tudo, é possível ser eterno? São contradições que a modernidade do poeta não resolve na primeira tacada. Ao contrário: carregado pela tradição, Vinícius precisa optar dolorosamente.
Foi assim que, em 1938, do momento imóvel se fez o drama (2). É o fim de antigos laços, a vida torna-se uma aventura e o poeta despede-se, mais do que da amada, de toda uma velha poesia. É chegada a hora de não temer mais o fim da madrugada. Não é mais preciso fugir ou esconder-se. "Ela despertará sob o meu beijo/enquanto a treva se desfaz lá fora" (3). O dia ilumina o amor com todas as suas contradições. O que era pesado, triste, se revela complexo, estranho, real. Os gemidos, antes desolados, possuem agora um calor rude. "Amamos, vagamente surpreendidos/pelo ardor com que estamos unidos/Nós que andávamos sempre separados" (4).
Em conseqüência o poema, que era pálido, se torna translúcido. A fraqueza enfrenta a escuridão, a palavra perde a saudade e, enfim: a "mulher me ama e me ilumina" (5). Assim o sol - o amor, no espelho de metáforas do jovem Vinícius - começa a passear pelo corpo branco da amada. Há, porém, dois problemas: tanto a mulher, objeto de desejo, quanto o poeta continuam presos ao passado. "Como ocultar a sombra em mim suspensa?" (6), pergunta-se.
É o momento de uma nova dolorosa opção: romper o cerco da treva significa um desenlace espiritual? É possível amar intensamente longe de antigas obsessões e arrancar pureza à carne intransigente? "Brancas trevas" (7) espicaçam o poeta nessa fase. Quem resolve o novo paradoxo é a própria poesia, através de uma obra-prima: o amor, já que não pode ser imortal, torna-se infinito(8) e o verbo, então livre de culpa, pode unir-se à natureza.(9). E definir Vinícius, identificá-lo: "Nasço amanhã/Ando onde há espaço/Meu tempo é quando" (10).
Tendo encontrado o seu caminho e sem ter jogado fora totalmente suas heranças - pois as coisas que passam urgem e o que é morto vibra - Vinícius atinge finalmente a maioridade. Aos 41 anos: "Nascemos para o sol: és mocidade /em plena floração, fruto sem dano" (11). A nudez da mulher amada agora é diferente da nudez lunar. "Uma mulher ao sol, eis todo o meu desejo" (12). A chuva e o vento cedem "à pura claridade/do sol do amor intenso". A conseqüência de tanta iluminação no corpo branco da amada só pode ser uma: a "rosa morena". Todas as cores, unidas, leva a mulher morena ao "branco negrume do meu leito em chamas"(13). Mas, se a natureza salva o amor e provoca a síntese da paixão morena, a maldição do poeta criado na penumbra não o abandona. Ele tem ciúmes da terra, do ar, do fogo e da água que tratam sua amada sem muita cerimônia. E, apesar do amor sem culpa e da mulher morena e linda, existem ciladas contra a luz: "Descubro meu reflexo obscuro/num soneto de espumas inexatas". Num dos sonetos inéditos (existem, neste lançamento, nove), ele identifica-se com a treva e a mulher (a baiana Gesse, em 1971) com a luz(14).
Esse novo paradoxo produz o poente, a morte. Para nós, órfãos de Vinícius, iluminados pelo seu exemplo e coragem, é impossível evitar a saudade. Resta-nos acompanhar sua trajetória da treva para o sol nestes sonetos ontológicos, viajar nas paisagens contraditórias de sua poesia. E morrer de amor pela palavra, resgatar sua emoção, fazê-la ocupar seu espaço. Em vez de pó, pólen.
1. Soneto de Devoção e Soneto de Identidade, 1937
2. Soneto de Sepração,1938
3. Soneto de Oxford,1938
4. Soneto de Agosto, 1938
5. Quatro Sonetos de Meditação,(II),1938
6. Soneto de Véspera, 1939
7. Soneto de Londres, 1939
8. Soneto de Fidelidade, 1939
9. Soneto da Rosa, 1944
10. Poética (1),1950
11. Soneto da Maioridade, 1954
12. Soneto da Mulher ao Sol, 1956
13. O Espectro da Rosa, 1958
RETORNO - O Diário da Fonte está mais devagar nas edições, por problemas técnicos. Enquanto isso, coloco o texto acima, que foi capa do Caderno 2, resenha publicada em 18 de maio de 1981, no jornal O Estado de Sáo Paulo e está no meu site.
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