4 de abril de 2006

QUARTO DE DESPEJO





O título acima, do diário de Carolina de Jesus (foto), catadora de papel descoberta por Audálio Dantas, serve para definir a situação reportada por Cidade de Deus, o impressionante e premiado filme de Fernando Meirelles, que passou na Tela Quente da Globo nesta segunda. Com uma diferença: a pobreza se multiplicou junto com a barbárie Os motivos para o quadro exposto veio logo a seguir, no noticiário, que é a perda de tempo de sempre: os políticos envolvidos na disputa do butim. Eles não cuidam de suas obrigações pois estão profundamente ocupados em arrancar todo o dinheiro público para colocar em cofres, sótãos, cuecas, Suíça e novas campanhas. Os bairros, batizados de populares, são as sobras sociais onde se acumula o horror.

Ambientado nos anos 60 e 70, Cidade de Deus mostra um bairro que é a típica obra da ditadura, que construiu favelões compostos de casas alinhadas como se fossem um pombal, e batizaram isso de política pública. Lá abandonaram os migrantes, os despossuídos, os desempregados, os mortos vivos. O resultado é a fábula de Meirelles, cineasta maior, que fez uma obra impecável, onde se destaca a linhagem implacável do crime, que migra cada vez mais para as crianças, restos do massacre que empunham a morte cedo demais. O destaque é a seqüência dramática da festa de despedida de um traficante. O fim de uma longa amizade, destruída pela vontade de cair fora e pelo amor de uma mulher, é a devastação entrevista nas luzes de um delírio coletivo. O drama deságua na ruptura: acaba o pacto, começa a guerra total. É o lugar onde hoje nos encontramos.

Cidade de Deus é filme de mão cheia, perfeito. A tentativa de fuga é sempre abortada pela impossibilidade de uma saída. A população se perde no labirinto sangrento intensificando a violência, interagindo com o resto da sociedade de dois modos: pelo meio da troca de droga por dinheiro com os consumidores, e de dinheiro por arma com os policiais corruptos. A ausência da polícia é a sua presença ostensiva errada: a perseguição que inutiliza a chance de mudar, a parceria que poupa inutilmente a vida do bandido para o faturamento continuar; o interrogatório brutal que expressa o ódio de classe. A chamada sociedade normal também aparece no banco assaltado ou no bordel onde acontece um massacre.

Por ser sobre a guerra total, todos contra todos, Cidade de Deus é sobre a irresponsabilidade do Estado. A degradação humana é o dique que se rompe no bairro condenado. A destruição da família representa o fim daquilo que Marx e Engels notaram no Manifesto de 1948: como os laços familiares são fruto das laços econômicos, se não há mais emprego nem inclusão social não há mais família. O pai não sustenta o filho, que se solta no crime. A mãe tenta fugir em vão e toda a família seguirá pela mesma trilha. Ao mesmo tempo, a tentação facinorosa dos bandidos em formação reflete a falta de lei na sociedade normal.

A imprensa é apenas parte do mundo que exclui a favela. A exceção é Buscapé, o inesquecível personagem-fotógrafo, que protagoniza o impasse. Diante dos co-habitantes da favela, e de costas para a polícia, Buscapé conta apenas com a máquina fotográfica. É por ela que faz a opção, pois não pode compactuar com a violência dos dois lados. Ele foi atraído para essa situação quando tentou resgatar a galinha que tinha fugido do almoço. No cinema, como formataram os americanos, a galinha representa o Terceiro Mundo. Diante de um ato corriqueiro, pegar o bicho para ser comido pela quadrilha, Buscapé se vê entre dois fogos: a sociedade que exclui e mata, por trás, e seus parceiros de desgraça, à sua frente. Ele escolhe ser mídia e sobrevive para contar a história.

Filme de país sério, que decide se olhar de frente e falar tudo, com todas as letras e imagens. Foi por temor à concorrência que a Globo escolheu Cidade de Deus para a Tela Quente. Poderia aproveitar o embalo e erradicar as besteiras que costuma passar nesse horário. Por que não torna cativo este espaço para o cinema nacional? É a Caixa que está patrocinando o programa!

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