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Nei Duclós
Tenho escutado horrores sobre o departamento de arte. Depois que o acesso ao lápis virou lugar comum, todo mundo se transformou em desenhista. A tecnologia colocou à disposição os mais completos programas de diagramação e paginação, mas esqueceu de avisar que existe um ofício por trás da ferramenta. Use o cepilho para aplainar uma tábua e verás a coisa torta que você vai conseguir. Mas como bastam alguns clics para enquadrar o texto em algo soberbo e colorido, então o costume é desprezar aqueles que abriram mão das galerias para descobrir nas letras, impressos, ilustrações, o equilíbrio necessário para que a direção não nos fuzilasse no dia seguinte ao fechamento.
O editor de arte é o exercício pleno do poder. O título é de três linhas, me dizia um deles, na Abril. Ele nem sequer prestava atenção no redator. A primeira linha é de sete toques, a segunda é de onze e a terceira é de oito. E te dava as costas. Tinha mais o que fazer. Essa matéria está estourando e não temos tempo para colocar no tamanho. Vou cortar pelo pé, diziam os diagramadores da Folha de S. Paulo. Por que meu texto entrou pela metade? A foto estava boa, reclame com teu editor. Desconfiado por natureza, o cara que senta atrás da prancheta e agora na frente da tela com todos os recursos não faz amizade no primeiro instante. Ele sabe que em qualquer pepino ele será o primeiro suspeito. A entrevista terminou com uma pergunta. O original do revisor está com visto e está certo. A que horas chega o artista?
Ele sabe também que dificilmente será lembrado pelos colegas que prestam atenção apenas nas letrinhas. Esses fingidos cercam a arte para conseguirem o máximo de resultados para reportagens toscas. Querem que a arte salve a falta de informação ou de talento. Por isso o editor de arte é uma estátua de Rodin num circo de cavalinhos. Todos rodam pelo mundo afora, menos ele que sabe ser o guardião de um estuário, para onde confluem todas as palavras. O mutismo também tem a ver com a síndrome do palpite que assola as redações. Todos têm uma idéia genial sobre o aproveitamento do troço que eles produzem, mas nada entendem de identidade visual, de peso das imagens, de seqüência. E ainda ficam horas para inventar algumas legendas e títulos, como se isso fosse o parto da montanha mágica.
Quando os textos eram coisas impressas em papel sedoso e duro, e que precisavam ser colados com grude comum numa grande folha, o diagrama (ou algo que valha), aconteciam episódios impensáveis hoje. Os donos do jornal que, deslumbrados, faziam o past-up da primeira edição. Era vê-los gordinhos e engravatados brincando de fazer jornal. Deixa eles, me dizia o diretor de redação, descobriram a pólvora, daqui a pouco cansam. O diagramador que colocava parágrafos de ponta cabeça e descobriram que ele era analfabeto. O poderoso que arrancava as notas da Ilustrada xingando o autor do textículo, furioso com a falta de conivência com a necessária auto-censura. O recado que foi posto sem querer na maçaroca que o pobre diagramador formatava como coluna social e que provocou um escândalo sem limites. O responsável pela arte não lia as notas, claro. O que estava no bolo, publicava.
Pelo silêncio, todo editor de arte é um pensador. Mas alguns são fundadores de uma escola filosófica, como foi o caso de Reginaldo Fortuna, com quem fiz uma news-letter por dois anos. Fortuna era conferencista, pois já estava na idade memorialística quando me aproximei dele. Mas escutava como ninguém. Quando falei o que esperava do pequeno jornal ele me cravava aqueles olhos pequenos de quem enxerga o milímetro torto de um fio e dava uma piscada. Era o sinal de que tinha captado e que faria o certo, ou seja, como bem entendesse, e isso iria me agradar, como realmente não só agradou, como deslumbrou. Fortuna inventou a diagramação enxuta que mais tarde os softwares providenciaram. Fazia isso no olho e na mão, conceituando o tempo todo.
Eu fazia uma diagramação suíça, na linha reta, no Pasquim, me contava ele em intermináveis papos depois de nossas reuniões de trabalho. Aí vinha o Jaguar e dava uma esculhambada em cima, colocava o Sig, essas coisas. Dava certo. O importante é que a arte obedeça aos fundamentos. A partir disso você cria o que quiser. Senão vira carnaval, não funciona. Ficava esperando minha reação. Eu só ouvia, imóvel. Ele continuava: Por que um livro tem margens ao lado dos textos? me perguntava. Para colocar o dedão, o polegar, para que a pessoa possa segurar o livro sem atrapalhar a leitura, dizia Fortuna, leitor assíduo de Gutemberg, o pai de todos. Fortuna era admirador dos argentinos que vieram para o Rio mudar as artes gráficas no Brasil. Admirava seus mestres e os citava sempre.
Na época em que trabalhamos juntos fortalecemos uma amizade que tinha apenas sido ensaiada na época da Ilustrada (quando ele era o editor de arte do Folhetim). Fortuna estava praticamente fora do mercado. Ninguém importante (com a chave do cofre) telefonava para ele. Era o tempo das barbaridades inspiradas pelo USA Today. E nas revistas, era costuma entortar as fotos. Ninguém vira a cabeça de lado para ver ou ler, dizia ele, que implicava com essa mania confundida com criatividade. A arte não podia provocar torcicolo no leitor. E o olho humano é traiçoeiro, dizia. Lemos da esquerda para a direita e não de cima para baixo, então por que colocar título na vertical? Era moda.
A moda agora é o flash, a porção cineasta da editoria de arte. Você visita o site e fica esperando o artista fazer suas demonstrações. Prefiro o fundo creme, a imagem fixa e limpa, o texto preto no branco, a elegância do maranhense Fortuna, que se foi prematuramente, no auge dos seus projetos. Fui avisado com algumas horas de atraso, pois os acontecimentos se atropelaram. Peguei o metrô (trabalhava na avenida Paulista) e desci no cemitério da Consolação.
Custei a descobrir o local. Todos já tinham ido embora. O sol forte batia nas flores, nos recados, nas saudades, nas orações recém feitas. Eu estava lá, no meio de um mar de sepulturas, diante de um jazigo oculto, desconfortável com a presença do sol quase a pino. O choro veio descontrolado, porque eu sabia que sentiria falta daquela voz ao telefone, me dizendo tudo o que eu precisava saber sobre imprensa, arte, diagramação, redação, sacanagens do mercado e tudo o mais. Fortuna era o conferencista de uma amizade preciosa, a pessoa que sabia tudo e que representa não só seus pares (todos seus discípulos de uma forma ou outra), mas principalmente os veteranos que fizeram História e para os quais temos uma dívida impagável.
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Poucas pessoas compareceram ao lançamento do seu livro Acho tudo muito estranho. Fortuna não era da moda. Tinha atingido a eternidade.
RETORNO - 1. Este texto foi publicado hoje no espaço Literário do Comunique-se (link ao lado). 2. Imaginem a figura da foto como seu colega de trabalho: momentos memoráveis. 3. O desenho é uma pequena mostra do talento infinito de Fortuna.
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